O automonitoramento das barragens é o prenúncio da tragédia. Entrevista especial com Bruno Milanez

Rompimento da barragem de Mariana, em 2015 | Foto: Antônio Cruz - Agência Brasil

20 Fevereiro 2019

A Barragem I, em Brumadinho, Minas Gerais, fez despencar sobre centenas de vidas não somente os rejeitos minerais que compõem a lama tóxica que invadiu a cidade, mas também o fracasso do sistema de automonitoramento como regulador da atividade mineira. Em menos de cinco anos, três barragens romperam: Herculano Mineração (2014), Fundão (2015) e Barragem I (2019). “Nos três casos, os auditores (ditos independentes, mas escolhidos e remunerados pelas empresas mineradoras) atestaram a estabilidade das barragens poucos meses antes delas colapsarem. Isso mostra que o sistema de automonitoramento é ineficaz e coloca em dúvida todos os atestados de estabilidades emitidos no estado”, destaca o professor e pesquisador Bruno Milanez, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Não obstante o impacto irreversível das vidas humanas e animais ceifadas instantaneamente, o drama ambiental da lama tóxica das barragens de rejeitos que rompem permanece por longos períodos. “Dentre os [impactos ambientais] mais comumente mencionados estão a contaminação dos recursos hídricos, escassez hídrica devido ao rebaixamento do lençol freático, poluição do ar, poluição sonora e vibração associada às explosões”, explica o entrevistado.

Se há algo em que a direita neoliberal e a esquerda neodesenvolvimentista dão alegremente as mãos é em relação à pauta da extração mineral, como historicamente podemos perceber no Brasil. “A proposta desenvolvimentista nos anos 1940 já bebia do passado colonial brasileiro e encarava o extrativismo mineral principalmente do ponto de vista da geração da renda mineral. (...) A proposta de reforma do código mineral no Brasil, iniciada em 2009, mantinha a mesma tradição”, pontua Milanez.

Diante toda a tragédia, do ponto de vista concreto houve um arrefecimento, pelo menos momentâneo, na agenda do atual governo em relação à mineração. “Devido ao seu posicionamento claramente contrário aos direitos territoriais de populações tradicionais, esperava-se que, com sua posse [de Jair Bolsonaro], o setor se mobilizasse para finalmente conseguir passar no Congresso Nacional uma lei que regulamentasse a mineração em Terras Indígenas. Com o desastre em Brumadinho, é de se esperar que esses planos sejam paralisados, ao menos momentaneamente”, projeta o pesquisador.

O que os episódios envolvendo as mineradoras no país deixam claro é a necessidade de se repensar o paradigma da extração mineral, de modo que as chamadas “externalidades”, ou seja, os efeitos colaterais previstos, inerentes à atividade mineira, sejam internalizados pelas empresas. “Discutir o modelo passa, entre outras coisas, em romper com o fetiche de que um mineral precisa ser extraído apenas ‘porque ele está lá’. (...) Ela [a mineração] necessita de ações coordenadas de políticas que forcem as empresas mineradoras a internalizar os custos que, hoje, externalizam para a sociedade (na forma de contaminação, risco etc.)”, assevera.

Bruno Milanez (Foto: Poemas)

Bruno Milanez é graduado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Engenharia Urbana pela Universidade Federal de São Carlos e doutor em Política Ambiental pela Lincoln University. Leciona na Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O tema das barragens tem ocupado a agenda pública nacional. Mas o que, de fato, se sabe sobre a situação das barragens de Minas Gerais?

Bruno Milanez – Depois do rompimento das barragens da Herculano Mineração (2014), Fundão (2015) e Barragem I (2019), acredito que ninguém tem a capacidade de dizer que conhece a real situação das barragens em Minas Gerais. Nos três casos, os auditores (ditos independentes, mas escolhidos e remunerados pelas empresas mineradoras) atestaram a estabilidade das barragens poucos meses antes delas colapsarem. Isso mostra que o sistema de automonitoramento é ineficaz e coloca em dúvida todos os atestados de estabilidades emitidos no estado.

De acordo com notícias vinculadas pela mídia, ao menos no caso da Barragem I, um dos auditores da empresa Tüv Süd afirmou ter se sentido pressionado para atestar a estabilidade. De forma semelhante, e-mails entre técnicos da Tüv Süd mencionam que os técnicos da empresa estariam sofrendo chantagem (blackmail) da Vale.

Nas duas últimas semanas esse sistema foi posto à prova e não resistiu aos primeiros testes. Na madrugada do dia 08 de fevereiro, moradores que viviam a jusante de barragens da Vale (Barão de Cocais) e ArcelorMittal (Itatiaiuçu) tiveram que ser evacuados de suas casas. No caso da Vale, foi necessária uma determinação de técnicos da Agência Nacional de Mineração - ANM para que fosse iniciada a evacuação. Poucos dias depois, em 16 de fevereiro, moradores do distrito de Macacos, em Nova Lima, também foram evacuados, depois que a empresa auditora se recusou a atestar estabilidade.

Esses eventos mostram as fragilidades inerentes do sistema de automonitoramento.

IHU On-Line – Há outras regiões no Brasil ameaçadas de impactos ambientais e sociais devido à mineração?

Bruno Milanez – Apesar de não se reconhecer como tal, o Brasil é um país minerador. Somos o segundo maior exportador de minérios do mundo. É possível encontrar atividades de grande mineração em quase todos os estados do Brasil. De acordo com dados da ANM, os cinco principais estados minerados no ano de 2018 foram Minas Gerais, Pará, Goiás, São Paulo e Bahia. É importante frisar que esse ranking é por receita gerada e não pelo volume de minério retirado ou pelos impactos gerados.

Uma condição para a exportação é a mineração em grande escala, também chamada de megamineração. Onde há megamineração, necessariamente há impactos ambientais e sociais relevantes. Não é possível uma empresa transformar uma montanha em um buraco sem causar impactos ambientais, por mais que ela utilize tecnologias para mitigação.

Sobre os riscos, eles são os mais diversos. Dentre os mais comumente mencionados estão a contaminação dos recursos hídricos, escassez hídrica devido ao rebaixamento do lençol freático, poluição do ar, poluição sonora e vibração associada às explosões. Para além desses, há ainda conflitos fundiários, principalmente na definição das áreas de servidão. É importante notar também que há impactos associados à infraestrutura de apoio (por exemplo ferrovias, minerodutos e portos) que atendem às empresas mineradoras. Por fim, há ainda questões associadas à mobilização e desmobilização de trabalhadores na abertura ou expansão das minas que podem levar contingentes de milhares de trabalhadores para viver temporariamente em pequenas cidades, criando sobredemanda por moradia ou por serviços públicos (como saúde e saneamento). Ainda, é comum a geração de problemas associados à violência, exploração sexual e abuso de álcool e drogas.

IHU On-Line – Até que ponto o mercado financeiro influencia a exploração mineral e o extrativismo primário e até que ponto é o Estado seu incentivador?

Bruno Milanez – O Brasil entrou atrasado na dinâmica da financeirização do setor mineral. Como, historicamente, grande parte da mineração brasileira era desenvolvida pela Vale e ela sempre contou com forte apoio de bancos públicos, não se criou a tradição de obtenção de recursos junto ao mercado financeiro, como pode ser encontrado no Canadá ou na Austrália.

Isso, porém parece começar a mudar no passado recente. A partir da modificação na orientação econômica do Estado brasileiro e a redução da participação estatal no financiamento de atividades econômicas, percebe-se um aumento da busca de recursos no mercado financeiro internacional por parte de mineradoras. Por exemplo, em 2018, existiam mais de 60 projetos minerais que eram, ao menos parcialmente, financiados com recursos obtidos na bolsa de Toronto, Canadá. Essa é uma tendência que, até o rompimento da Barragem I parecia que iria se consolidar, mas que agora precisamos reavaliar.

O Estado brasileiro participa ativamente desse processo, buscando estimular a entrada de investidores internacionais, muitos baseados em recursos do mercado financeiro. Uma das estratégias é o envio de representantes governamentais para eventos como o Brazilian Mining Day na convenção da Prospectors & Developers Association of Canada, um dos principais eventos no mundo para captação de investidores do setor de extração mineral.

IHU On-Line – A impunidade aos crimes ambientais e humanos levados a cabo pelas mineradoras é um fator que torna o chamado “risco do negócio” mais atrativo ou mais repulsivo para os investidores?

Bruno Milanez – Ainda não tenho uma leitura clara sobre isso e não consigo perceber como investidores leem esse sinal. Por um lado, pode-se gerar a impressão que o Brasil é o lugar para se fazer projetos que sigam parâmetros pouco rigorosos de segurança, o que reduziria os custos de instalação e operação e poderia tornar os investimentos mais rentáveis. Por outro lado, pode ser interpretado que a falta de um controle efetivo por parte do Estado, misturado com a negligência de parte do corpo técnico que atua no país, tem grande potencial de resultar em catástrofes como essas, que vêm se repetindo nos últimos anos. Mesmo que os investidores tenham a percepção de que não precisam temer multas ou a justiça brasileira, o risco de ter as operações interrompidas e de perderem o capital investido nas instalações pode ser suficiente para eles deixarem de se interessar em investir no Brasil. Entre um cenário e outro, existe a possibilidade de o Brasil criar uma imagem que passe a atrair apenas os investidores mais ambiciosos e gananciosos, e que estejam dispostos a correr tais riscos.

IHU On-Line – Historicamente qual tem sido o papel do Estado em relação ao extrativismo primário? O que se pode esperar do atual governo?

Bruno Milanez – A proposta desenvolvimentista nos anos 1940 já bebia do passado colonial brasileiro e encarava o extrativismo mineral principalmente do ponto de vista da geração da renda mineral. A criação da Companhia Vale do Rio Doce e a exportação de minério de ferro foi moeda de troca para garantir recursos para, entre outras coisas, a construção da Companhia Siderúrgica Nacional. O papel histórico da Vale sempre foi abastecer o mercado global de minério, contribuindo para a manutenção da inserção subalterna do país no comércio internacional.

A proposta de reforma do código mineral no Brasil, iniciada em 2009, mantinha a mesma tradição. Esse debate foi principalmente motivado pelo alto preço dos minérios naquela época, quando o governo buscava formas de estimular a extração mineral, buscando aumentar sua participação na captura da renda gerada. A mesma prioridade foi mantida nas alterações implementadas no período Temer, com as mudanças no Código realizadas em 2017 e 2018. Se por um lado elas buscavam criar medidas para facilitar a expansão do setor, por outro, aumentavam a arrecadação na forma de royalties (embora não tenham modificado as isenções fiscais concedidas à exportação de minérios).

Após a mudança de governo, em 2019, não era clara a postura do executivo em relação à mineração. Apesar da relação pessoal do presidente com a atividade de garimpo, ele não havia elaborado nenhuma proposta concreta para o setor, além de alguns comentários genéricos sobre a extração de nióbio.

Devido ao seu posicionamento claramente contrário aos direitos territoriais de populações tradicionais, esperava-se que, com sua posse, o setor se mobilizasse para finalmente conseguir passar no Congresso Nacional uma lei que regulamentasse a mineração em Terras Indígenas. Com o desastre em Brumadinho, é de se esperar que esses planos sejam paralisados, ao menos momentaneamente. Por outro lado, a nomeação do almirante Bento Costa Lima Leite para Ministro de Minas e Energia sugere que haverá estímulo à extração de urânio no país, apesar de todos os problemas ambientais e de saúde pública associados a essa atividade no município de Caetité, na Bahia.

IHU On-Line – Passados pouco mais de três anos do desastre em Mariana, em termos de impactos sociais e opinião púbica, o que o crime da Vale em Brumadinho tem de diferente em relação ao episódio de Mariana?

Bruno Milanez – O rompimento de Fundão, em Mariana, foi o maior desastre da história da mineração em termos do volume de rejeito liberado e da extensão impactada. Entretanto, nem os tomadores de decisão, nem a opinião pública absorveram de forma efetiva a grandiosidade desse desastre. Tanto que, após os primeiros seis meses, a tragédia somente era lembrada em seus aniversários, quando se constatava que o Rio Doce continuava contaminado, as famílias desabrigadas ainda não haviam sido reassentadas e as pessoas impactadas não tinham sido indenizadas. Talvez o único aprendizado com o rompimento de Fundão tenha sido que barragens de rejeito precisavam de sirenes e de planos de emergências, embora esses não necessariamente precisassem funcionar.

Brumadinho mostra para a sociedade brasileira uma face ainda mais cruel da mineração. Se as mortes de todas as pessoas desaparecias forem confirmadas, esse poderá ser o segundo maior desastre da história da mineração em termos de óbitos. Colocando o Brasil, novamente, em destaque mundial em termos de tragédias do setor.

Mas não é só isso que chama a atenção para o rompimento da Barragem I. A proximidade temporal e geográfica entre os dois desastres escancara como parte considerável de nossa sociedade foi casuísta com o caso do Rio Doce e não aprendeu que existe um risco estrutural de desastres associados à atividade de extração mineral.

De certa forma, esses dois ingredientes combinados tornaram a comoção pública e a cobrança ainda maior em 2019. Se por um lado empresas e governos pouco aprenderam com o caso da Samarco, a sociedade civil organizada e os movimentos sociais, que estiveram profundamente envolvidos nas atividades de acompanhamento dos impactos ao longo do Rio Doce, mostraram uma grande capacidade de aprendizado e organização. Assim, rapidamente, aspectos institucionais como financiamento de campanha, porta giratória, lobby das empresas foram explicitados em diferentes meios de comunicação, chamando a atenção para a captura regulatória e para a necessidade um maior controle social sobre empresas e governos como única forma de diminuir o risco de novos desastres futuros. Todavia, a garantia de que tais mudanças ocorrerão não está dada, e elas somente se concretizarão caso a sociedade se mantenha atenta e ativa na cobrança de tais modificações.

IHU On-Line – É possível pensar em políticas sustentáveis de transição econômica para as regiões onde predominam a exploração mineral? Quais?

Bruno Milanez – Organizações como o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração, o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) vêm há anos defendendo a necessidade de se discutir o modelo mineral brasileiro. Discutir o modelo não quer dizer ser contra toda forma de mineração, nem questionar a necessidade da atividade. Discutir o modelo significa exatamente questionar a forma de se minerar e como definir prioridades, múltiplos usos dos territórios e a extração mineral. Discutir o modelo passa, entre outras coisas, em romper com o fetiche de que um mineral precisa ser extraído apenas “porque ele está lá”.

Devido ao meu entendimento do conceito de sustentabilidade, eu considero a ideia de uma “mineração sustentável” como um oxímoro, uma contradição em termos. Mas acredito que seja possível e necessário pensar em uma transição. Eduardo Gudynas fala na necessidade de os países latino-americanos romperem com o modelo de extrativismo depredador, caminhar em direção a um extrativismo sensato e, posteriormente, quem sabe, alcançar a extração indispensável.

Essa mudança, porém, não ocorrerá de forma natural, nem movida por uma mão invisível. Ela necessita de ações coordenadas de políticas que forcem as empresas mineradoras a internalizar os custos que, hoje, externalizam para a sociedade (na forma de contaminação, risco etc.), possibilitem a criação de áreas livres de mineração, deem às populações poder de veto sobre projetos extrativistas em seus territórios, ou de estabelecimento das escalas e ritmos de exploração, garantam condições adequadas de saúde e segurança dos trabalhadores, revertam os subsídios tributários, entre outros.

A criação de um caminho de transição é possível, mas isso não quer dizer que ela seja fácil. Esse caminho só poderá ser construído quando a sociedade se organizar de tal forma que consiga modificar a correlação de forças na capacidade de influenciar as decisões governamentais. Essa organização não ocorreu com o rompimento de Fundão, quem sabe poderá surgir a partir do desastre que ocorreu em Brumadinho.

 

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