O bolsonarismo: uma concepção autoritária em formação. Artigo de Daniel Aarão Reis

Foto: José Cruz | Agência Brasil

10 Março 2021

A eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República do Brasil, em novembro de 2018, surpreendeu e criou um estado de perplexidade e desorientação sobretudo no campo das esquerdas, mas também entre forças de centro e das direitas democráticas.

 

O presente artigo tenta contribuir para a compreensão do fenômeno, articulando-se nas seguintes seções: (1) Contexto internacional da ascensão das extremas-direitas; (2) A ascensão da extrema-direita no Brasil; (3) O caráter da extrema-direita brasileira; (4) A construção de alternativas democráticas.

 

A análise é de Daniel Aarão Reis, professor na Universidade Federal Fluminense (UFF), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 09-03-2021.

 

Eis o artigo.

 

O contexto internacional da ascensão das extremas-direitas [i]

 

O crescimento das forças políticas de extrema-direita e de diversos tipos de regimes autoritários é uma tendência mundial desde fins do século XX e inícios do presente século.

 

No cerne do processo encontra-se o que se convencionou chamar de revolução digital ou informática que tem mudado radicalmente os padrões civilizatórios da humanidade. À semelhança da chamada revolução fordista que, na virada dos séculos XIX/XX, transformou em profundidade as sociedades humanas, a civilização da informação, produto da atual revolução, tem igualmente produzido efeitos sociais, políticos, culturais e econômicos desestabilizadores.

 

No quadro da nova revolução, destacam-se alguns aspectos na economia e na sociedade: a aceleração, desde os anos 1970, das desigualdades sociais e econômicas (T. Piketti, 2014); a partir dos anos 1980, a consolidação da hegemonia do capital financeiro, com ênfase para os capitais especulativos e os paraísos fiscais libertados de anteriores legislações restritivas; o enfraquecimento das regulamentações que regiam os movimentos internos e internacionais de capitais e mercadorias; a privatização de setores econômicos e serviços públicos, mesmo dos que eram até então considerados estratégicos aos interesses nacionais; a fragilização correspondente da capacidade de intervenção e controle dos Estados Nacionais; desde os anos 1990, o surgimento de novos setores/atividades dinâmicos, como, entre outros, a informática, a biotecnologia, a robótica, a inteligência artificial, de alto nível de monopolização ou oligopolização, com impactos radicais na área das comunicações (internet, mídias sociais, etc.); a realocação internacional da produção industrial mundial e o declínio acelerado do peso demográfico das classes operárias nos países capitalistas mais poderosos; a desarticulação e a precarização dos mercados de trabalho (uberização) e das instituições sindicais tradicionais; o surgimento de novos polos de desenvolvimento (Índia, China) e de megamercados regionais, alterando o equilíbrio instaurado no pós-Segunda Guerra Mundial.

 

Os regimes de democracia representativa têm sido incapazes de lidar com os desafios decorrentes destas mutações. As instituições políticas e jurídicas perdem credibilidade ao não atender às demandas sociais. Entre os jovens e as classes populares acentua-se o desinteresse em relação aos processos eleitorais e a desconfiança em relação a um sistema político criticado como ineficaz, corrupto e desmoralizado (S. Levitsky e D. Ziblatt, 2018 e D. Runciman, 2018). Trata-se de um processo em curso desde os anos 1960/1970, quando passaram a emergir como protagonistas das lutas políticas, movimentos sociais que não se deixam enquadrar pelos jogos institucionais ou/e eleitorais (D. Aarão Reis, 2018).

 

 

Instaurou-se uma “sociedade da insegurança” (N. Fraser, 2007). Os que perdem posições ou não conseguem mantê-las, as grandes massas de assalariados ou dos que vivem do próprio trabalho, sentem-se amedrontados. As referências culturais que pareciam sólidas desmancham no ar. Ações terroristas, desde 2001 (T. Ash, 2011); crises econômicas e catástrofes naturais acentuam uma atmosfera de incertezas e angústia.

 

As forças e os partidos políticos reformistas, democráticos ou socialistas não têm conseguido apresentar propostas que sejam capazes de reformar as estruturas políticas e econômicas, diminuir as desigualdades sociais ou/e questionar a hegemonia do grande capital financeiro [ii]. Encolhidos nas fronteiras nacionais perdem capacidade de enfrentar fenômenos que se desdobram globalmente e não conseguem controlar ou atenuar os efeitos destrutivos da revolução em curso.

 

Têm sido assim identificados, com ou sem razão, como sócios de regimes incapazes de defender as grandes maiorias, o que se tornou particularmente evidente no enfrentamento da crise econômica de 2008, quando o custo de superação de seus efeitos desabou nas costas dos trabalhadores assalariados (A. Przeworski, 2019).

 

É neste quadro geral de desespero que se reforçam as tendências e propostas nacionalistas e autoritárias de direita, num processo de reação nacionalista [iii], quase sempre expressas através de organizações ou partidos de extrema-direita [iv].

 

O fenômeno Donald Trump nos Estados Unidos, o crescimento das forças de extrema-direita na Europa Ocidental (Itália, França e Inglaterra) e Central (Hungria e Polônia), na Ásia (Índia e Filipinas) e na América Latina (Chile, Colômbia e Brasil) atestam a existência do processo. Uma de suas principais particularidades é que tais forças não se confrontam abertamente com as instituições democráticas, mas as instrumentalizam, corroendo-as por dentro, desfigurando-as. Combinam eficazmente o recurso à opinião pública e o uso intenso das chamadas mídias sociais no quadro de opções nacionalistas, antidemocráticas e conservadoras do ponto de vista social e religioso [v].

 

 

A ascensão da extrema-direita no Brasil

A vitória de Jair Bolsonaro insere-se neste quadro internacional. É a expressão brasileira destas tendências.

 

Para compreendê-la, uma vez contextualizada no plano internacional, proponho a articulação de três temporalidades: na longa duração, o estudo das tradições autoritárias de direita no país; na média duração, a deterioração do sistema político entre a promulgação da Constituição de 1988 e as eleições de 2018; na curta duração, a incidência da campanha eleitoral e seus efeitos.

 

As tradições autoritárias de direita: a longa duração

 

São densas as tradições autoritárias de direita no Brasil. Entre outras, destacam-se o racismo; as desigualdades sociais; o patrimonialismo e o mandonismo; a exploração sistemática do anticomunismo; a discriminação de gênero e os regimes democráticos fechados e elitistas.

 

Examinemos cada um destes aspectos.

 

As relações escravistas, antes de serem tardiamente abolidas, disseminaram-se por toda a sociedade (escravismo doméstico ou de proximidade), gerando desprezo pelo trabalho manual e relações hierárquicas. O processo peculiar de miscigenação, apresentado como antídoto à discriminação racial, apenas disfarçou formas onipresentes de racismo, evidenciadas, entre outros índices, nas desigualdades de emprego, de renda e de educação; no uso e abuso da violência policial; na população carcerária. Um racismo estrutural. E estruturado [vi].

 

 

As desigualdades de toda a ordem não foram atenuadas pelo progresso econômico, registrado entre 1930 e 1980. Mesmo as políticas de redução da pobreza, quando formuladas e aplicadas (2002-2010), reproduziram padrões brutais de desigualdades regionais e sociais, configurando amplas maiorias numa condição de cidadania de segunda classe, cujos direitos, embora proclamados em leis e mesmo na constituição, não se concretizam, a não ser muito parcialmente, na prática social.

 

O patrimonialismo e o mandonismo, fundamentos da Ordem agrária, ancorados longe no passado colonial, conservaram grande força. Em artigo recente, o antropólogo Roberto Da Matta referiu-se “ao colonialismo autoritário e burocrático, radicalmente católico e anti-igualitário”, combinado a “laços de puxa-saquismo com punhos de renda, irmão de um desumano escravismo negro”. [vii] O processo de urbanização não dissolveu sua força e incidência, nem a República, proclamada em 1889, foi capaz de neutralizar seus efeitos. O acesso limitado à plena cidadania – apesar do que dizem os textos legais – reproduz a preeminência das relações pessoais em detrimento de códigos legais impessoais.

 

A discriminação de gênero persiste, evidenciada em altos índices de violência doméstica e de estupros [viii]. Os avanços no sentido da emancipação da mulher são muito recentes, datando dos anos 1970, salvo o direito de voto, assegurado desde 1934. As desigualdades profissionais e de renda, o limitado acesso aos níveis mais altos de prestígio social e de remuneração, a criminalização da interrupção voluntária da gravidez atestam a subordinação violenta da “segunda metade do céu”.

 

O anticomunismo tem uma longa história no país. Esteve presente nos anos que assistiram à irrupção da revolução soviética. Seria retomado com imensa ênfase depois da insurreição revolucionária liderada pelos comunistas, ocorrida em novembro de 1935, servindo, um pouco mais tarde, como principal pretexto para o golpe de 1937, que instaurou a ditadura do Estado Novo, entre 1937-1945.

 

 

Como um espectro, condicionaria a sociedade brasileira nos anos 1950 e, em especial, na conjuntura que precedeu o golpe civil-militar de 1964, quando, mais uma vez, seria uma bandeira central para a unificação das forças golpistas, permanecendo vivo ao longo da ditadura, até 1979. Durante todos estes anos, mobilizadas pela Igreja Católica, as forças conservadoras – e, às vezes, até mesmo partidos de esquerda – acionariam permanentemente o comunismo como um espantalho, um perigo imediato, ameaçador, pondo em perigo as instituições e a própria vigência da “civilização cristã” no país [ix].

 

Nestas condições, as instituições democráticas não poderiam mesmo se consolidar. Uma república proclamada através de um golpe de estado, o permanente monitoramento do regime político pelos militares, a seletividade elitista na atribuição da cidadania, a extensão soluçante e limitada dos direitos civis, políticos e sociais, os principais saltos econômicos registrados sob dominação de regimes ditatoriais (1937/1945 e 1964/1979), tudo disso deixou marcas profundas nas tendências políticas de direita e de esquerda. O reconhecimento de amplos direitos data apenas dos últimos anos do século XX (Constituição de 1988), mas muitos dispositivos legais existem apenas no papel.

 

A combinação destes aspectos na longa duração estruturou uma sociedade marcada pelas desigualdades, hierarquia, violência, intolerância e discriminações (L. Schwarcz, 2019 e H.Starling, 2019).

 

Sem embargo, foi notável como amplos círculos – políticos e intelectuais – tenderam a subestimar a força destas tradições e a considerar a democracia brasileira como “consolidada”. Um caso típico de cegueira política e histórica.

 

Nunca foi tão urgente como hoje superar este equívoco.

 

Vários historiadores, desde os primeiros anos deste século, têm chamado atenção para as “relações complexas” que se estabeleceram entre as ditaduras e a sociedade, evidenciando como aquelas não foram produto apenas da vontade das classes dominantes e da repressão, (ressalvado o papel fundamental desta última), mas contaram, sob hegemonia do grande capital financeiro, com apoios transversais em todos os níveis da sociedade. Efetivamente, em torno dos dois regimes ditatoriais que se impuseram no país no século XX (1937-1945; 1964-1979 [x]), foi possível construir não raro um consenso social significativo, o que oferece subsídios para a compreensão da instauração quase pacífica de ambos e dos processos também pacíficos de sua superação. Importantes pesquisas têm demonstrado a adequação desta interpretação[xi].

 

Considerar as tradições autoritárias para compreender a atual ascensão da extrema-direita não deve conduzir, porém, à sua absolutização [xii]. Apesar destas tradições, maiorias expressivas elegeram à presidência da república o sociólogo de centro-esquerda Fernando Henrique Cardoso (1994/2002), o líder operário, Luiz Inácio Lula da Silva (2002/2010) e Dilma Rousseff (2010/2016), ex-militante da luta contra a ditadura. Em outras palavras: as tradições autoritárias condicionam opções, mas não as determinam automaticamente. Como gostava de dizer o intelectual israelense, Amoz Oz: “o passado nos pertence, não pertencemos ao passado”. As tradições, embora poderosas, não podem expulsar a política da história. A longa duração não exclui a avaliação da média e da curta duração. Cumpre agora analisar estas últimas.

 

 

A média duração: a grande conjuntura 1988/2018

 

Tornou-se comum denominar o período que se inaugurou com a aprovação da Constituição de 1988 como “nova república” [xiii]. Segundo os adeptos da denominação, ela teria entrado em crise com o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e sido definitivamente enterrada com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018 [xiv] (A. Alonso, 2019 e E. Solano, 2019).

 

Aceite-se ou não a periodização, o fato é que a grande conjuntura entre 1988 e 2018 oferece uma plataforma interessante para avaliar as circunstâncias e as opções que levaram à perda radical do prestígio de um sistema político que parecia tão promissor em fins do século XX. Trata-se de uma reflexão importante, eis que a vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro está intimamente vinculada à desmoralização do sistema político atual.

 

Entre outros aspectos, o que marca a trajetória da nova república, do ponto de vista político, ressalvados os anos presididos por Collor de Mello [xv] é a preeminência da polarização entre o Partido da Social-Democracia Brasileira/PSDB e o Partido dos Trabalhadores/PT [xvi]. Os dois partidos encarnaram as aspirações reformistas no sentido da construção de uma sociedade democrática e menos desigual.

 

A visibilidade, o prestígio e o poder adquiridos por eles corresponderam a políticas de defesa dos interesses das grandes maiorias. Entre muitas outras, o controle da inflação, empreendido nos anos de governo do PSDB e as políticas de distribuição de renda e as chamadas afirmativas contra o racismo, implantadas nos anos de governo do PT, em particular nos mandatos de Lula (2002/2010). Tiveram impacto positivo na redução dos índices de pobreza, mas não alteraram o padrão das desigualdades sociais que se mantiveram ou até se ampliaram. Entretanto, o ímpeto reformista dos dois partidos foi se arrefecendo, configurando-se, em ambos os casos, um “reformismo mole” (A. Singer, 2012).

 

Fez parte deste processo o pouco apreço por uma política ativista de memória, capaz de suscitar debates sociais e políticos a respeito do período ditatorial, características e legados, bem como a ausência de um debate socialmente amplo sobre direitos humanos e a condenação veemente de crimes contra a humanidade, cometidos pelo Estado brasileiro durante as ditaduras do século XX (D. Aarão Reis, 2019ª). O inventário das cicatrizes deixadas pela ditadura deixou de ser feito, com evidente prejuízo para a consciência cidadã [xvii].

 

 

Ao perderem as eleições para o PT, em 2002, o PSDB e seu líder, Fernando Henrique Cardoso, já registravam um considerável desgaste. Alianças consideradas sem princípios com partidos e grupos notoriamente conservadores e corruptos haviam corroído sua aura reformista e inovadora. Nada, no entanto, que ameaçasse sua posição de polo insubstituível nas lutas políticas institucionais.

 

Quanto ao PT, já no primeiro governo de Lula, escândalos de corrupção e principalmente o abandono de propostas reformistas mais consistentes começaram a abalar o prestígio e a colocar em dúvida os compromissos políticos do partido e do presidente. Entretanto, as dúvidas pareceram superadas com a reeleição de Lula (2006), e ao longo do segundo mandato (2006/2010), quando o país viveu momentos de intensa euforia social e política, o que se confirmaria com a eleição de Dilma Rousseff (2010). A nova república parecia segura e não poucos celebravam a consolidação da democracia no Brasil, chancelada internacionalmente com a aprovação do país como sede da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas de Verão (2016).

 

A partir de 2010, no entanto, começaram a se fazer sentir os impactos da grande crise econômica mundial de 2008, muito subestimados e por isso mesmo mal atenuados ou controlados. Num quadro de agravamento das contradições, demandas sociais explodiram em vários níveis: por emprego; por serviços públicos de qualidade; por políticas de combate à corrupção, cuja existência tornou-se assunto nacional a partir de sucessivos escândalos envolvendo empresários e políticos; por políticas positivas em relação à segurança que, nas cidades, se tornava uma questão maior para todas as classes sociais.

 

As grandes manifestações de 2013, politicamente plurais, revelaram uma profunda insatisfação e desconfiança em relação aos partidos e lideranças políticas, expressas por multidões nas ruas e praças públicas.

 

Entretanto, face a este conjunto de desafios, PT e PSDB mostraram-se incapazes de oferecer propostas construtivas e credíveis. Enredados em suas querelas e jogos de poder, perdida sua vocação reformista original, era como se estivessem distanciados da sociedade, sem nexos com os problemas que atormentavam as pessoas comuns. Começou a brotar a ideia de que o sistema político já não funcionava a contento. Falido? Alguns começavam a dizer que estava podre.

 

Foi numa atmosfera de exasperação de contradições, condições propícias para a emergência de lideranças salvacionistas, outsiders supostos ou reais, que se abriu o ano eleitoral de 2018[xviii]. Ainda não estavam, porém, dadas todas as condições que ensejariam a vitória de Jair Bolsonaro.

 

Elas aconteceram na campanha eleitoral, na curta duração. Daí porque ser tão importante analisar esta temporalidade. Em caso contrário, como já se disse, a política seria expulsa da história.

 

 

A campanha eleitoral de 2018: a curta duração

 

A análise da campanha eleitoral, na temporalidade da curta duração, é indispensável para a compreensão da ascensão da extrema-direita ao governo pelo voto.

 

Em pesquisas realizadas em 22 de agosto, menos de dois meses antes do primeiro turno, Bolsonaro ainda se mantinha em 22% das intenções de voto, e poucos acreditavam que fosse capaz de alcançar patamares muito mais altos. Daí a quase três semanas, em 10 de setembro, ele ganhara apenas mais 2 pontos, chegando a 24% das intenções de voto [xix]. Em outras palavras, apesar das tradições autoritárias e do desgaste do sistema político, não havia ainda certeza, muito pelo contrário, a respeito do sucesso da candidatura salvacionista de extrema-direita.

 

Que circunstâncias e opções conduziram à sua vitória?

 

De um lado, as esquerdas democráticas subestimaram o seu potencial de crescimento. Não conseguiram unir-se, dispersando-se em candidaturas rivais. Além disso, o PT recusou-se a avaliar a onda de fundo antipetista que permeava a sociedade, muito forte entre as classes médias, mas alcançando também camadas populares. Descartou assim a hipótese de apoiar um candidato de outro partido. E manteve durante longo e precioso tempo, em movimento suicida, a (anti) candidatura de Lula, ilegal na medida que ele fora condenado em segunda instância pela Justiça [xx].

 

Quando o partido, finalmente, resolveu apoiar formalmente a candidatura do ex-ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, o fez com ressalvas, apresentando-o como se fosse um peão de Lula. Tolhido pelos erros e inconsequências do PT e de Lula que sempre se recusaram a produzir qualquer tipo de autocrítica, Haddad não conseguiu apresentar propostas para neutralizar ou conter a corrupção em larga escala e a insegurança nas grandes cidades, dois grandes temas da campanha eleitoral, explorados de forma tosca, mas eficaz, pelo candidato de extrema-direita. Entre os dois turnos, Haddad recuperou terreno, cultivou personalidade própria, formulando propostas objetivas e convincentes, mas já não houve tempo político para reverter os resultados desfavoráveis.

 

Quanto ao PSDB, naufragada com a candidatura de Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo e um dos líderes mais importantes do partido. Montando poderosa frente partidária, dispondo de vultosos recursos financeiros, agrupou muitas forças de centro e das direitas democráticas. Imaginava-se que a disputa tenderia a ser, mais uma vez, entre ele e o candidato do PT [xxi]. No entanto, em amplos contingentes do eleitorado, prevaleceu a percepção de que, para derrotar o PT, Bolsonaro reunia melhores condições do que Alckmin. Houve, assim, nas três últimas semanas da campanha, um trânsito maciço de votos para o candidato da extrema-direita, garantindo sua vitória.

 

 

O vitorioso não se beneficiou apenas dos erros adversários. A partir de suas bases mais radicais, nas forças armadas e policiais [xxii], soube construir alianças surpreendentes e diversificadas. Escolheu como seu ministro da economia um empresário vinculado à especulação financeira que lhe abriu as portas para uma aliança com os capitais financeiros. No campo da economia também estruturou apoios entre os empresários ligados à exportação de produtos agrícolas, o chamado agronegócio, e com garimpeiros e madeireiros comprometidos com a devastação das florestas e com a abertura de fronteiras agrícolas.

 

Definindo o juiz Sergio Moro como ministro da Justiça, ganhou a confiança de todos os que consideravam a corrupção e a segurança grandes problemas nacionais [xxiii]. Explorando uma pauta conservadora do ponto de vista dos costumes, teceu laços com as igrejas evangélicas, com crescente força no país [xxiv]. Tais alianças seriam potencializadas pelas bancadas parlamentares ruralistas, armamentistas e religiosas, ditas BBB (do boi, da bala e da bíblia), conformando apoios eficazes na campanha eleitoral.

 

Restaria ainda mencionar duas importantes referências: o atentado sofrido por Bolsonaro, em 6 de setembro de 2018, que lhe permitiu afastar-se dos debates onde suas performances o desfavoreciam [xxv] e a organização e intensa exploração de uma sofisticada rede de comunicações, acionando de modo profissional as chamadas mídias sociais, seja para divulgar propaganda positiva, seja para disseminar falsas informações (fakenews).

 

Combinaram-se, assim, como sempre, erros (dos adversários) e acertos que beneficiaram o candidato vitorioso.

 

A elucidação das razões da vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro passa, assim, pela compreensão do contexto internacional, do qual ela é a expressão brasileira, e pela articulação de três temporalidades: as tradições autoritárias de direita na longa duração; o desgaste do sistema político na média duração; e os erros (dos adversários) e acertos (próprios) da campanha eleitoral, na curta duração [xxvi].

 

Cumpre agora discutir melhor o caráter desta vitória e do governo liderado por Jair Bolsonaro desde 1° de janeiro de 2019.

 

 

O caráter da extrema-direita brasileira

 

A vitória de Jair Bolsonaro, como já referido, suscitou um clima de grande perplexidade. Como é usual, as primeiras explicações e interpretações procuraram no passado paralelos ou fontes para entender o fenômeno.

 

Alguns afirmaram que o Brasil teria voltado aos anos 1960 e estaria na iminência de um golpe de estado, como em 1964. Outros preferiram ver semelhanças com a conjuntura que levou à promulgação do Ato Institucional n° 5, editado em dezembro de 1968, que radicalizou a ditadura então existente [xxvii]. Numa incursão a um passado mais distante, foram invocadas as experiências do movimento integralista brasileiro nos anos 1930, da ditadura do Estado Novo e, num plano mais geral, formularam-se associações – controvertidas – com o fascismo italiano e mesmo com o nazismo alemão, como se verá adiante.

 

Tais interpretações merecem discussão. Entretanto, como estou convencido de que a ascensão atual da extrema-direita no Brasil constitui um movimento original e ainda com perfil não consolidado, cumpre, antes de tudo, descrever o fenômeno para melhor captar sua especificidade e empreender, se for possível, sua conceituação.

 

 

Conforme esboçado na análise da campanha eleitoral a vitória de Jair Bolsonaro deveu-se à articulação de uma frente heterogênea que pode ser apresentada em forma de círculos, hierarquizáveis de acordo com a fidelidade a Bolsonaro.

 

Um primeiro círculo – núcleo forte e bastião do pensamento da extrema-direita – é constituído pelos oficiais das forças armadas, em particular do exército, mais os oficiais e suboficiais das Polícias Militares, da ativa e da reserva [xxviii]. Jair Bolsonaro, através de longa carreira parlamentar, projetou-se não apenas como representante dos interesses corporativos destas gentes, mas também como um dos únicos políticos, e com grande audácia, a resgatar em chave positiva a experiência da ditadura, inclusive seus métodos violentos de torturar e matar adversários.

 

A pauta da defesa dos costumes conservadores é outra importante referência a fidelizar estas bases a Bolsonaro, pois, em comum, cultivam o conceito de guerra cultural ou guerra híbrida, a ser travada contra os agentes – instituições e partidos – acusados de promover a destruição das tradições, da moral estabelecida, dos bons costumes e das tradições políticas e éticas da nação. Ingredientes importantes nesta perspectiva são as críticas ao globalismo, ao enfraquecimento dos estados e culturas nacionais, e aos novos métodos – encobertos e camuflados – através dos quais operariam novas e velhas esquerdas em sua luta permanente pelo controle da sociedade e do poder. Tais referências não podem ser nem exclusivamente nem principalmente atribuídas a Olavo de Carvalho, cujas manifestações caricaturais não deveriam servir para encobrir núcleos de formulação mais consistentes, que elaboram tais ideias há muitos anos no interior das, e protegidos por estruturas institucionais das forças armadas.

 

Foi no interior do estado maior do Exército que se formou uma equipe, ainda nos anos 1980, devidamente autorizada pelo ministro da arma, general Leonidas Gonçalves, que formulou volumoso livro, com um resgate da ditadura em chave positiva, enfatizando-se o papel dos militares como tutores da república e as sucessivas ameaças empreendidas pelas esquerdas no sentido da dissolução da nacionalidade brasileira. O texto, intitulado Orvil (anagrama de livro) só foi publicado mais tarde (L. Maciel e J. C. do Nascimento, 2012), mas se constituiu, desde então, numa referência para a extrema-direita militar e civil.[xxix].

 

Um segundo círculo, não menos importante, é constituído por setores populares de classe média, alguns com afinidades profissionais (pequenos empreendedores, caminhoneiros, taxistas, etc.), articulados pelas novas mídias sociais (whatsapp, facebook, twitter, youtube, blogs, etc.), financiadas, em grande parte, por empresários bolsonaristas. Os valores compartilhados de extrema-direita compreendem, entre outros, o recurso à violência para matar criminosos comuns, o conservadorismo social, o ódio às lutas identitárias, etc.

 

Têm sido importantes nas ações de ruas e na intimidação de adversários, mas seus níveis internos de organização ainda são precários. Neste segundo círculo também poderiam ser incluídos as milícias. Constituídas por ex-integrantes das polícias militares, além de criminosos comuns, elas vêm ganhando força ao longo do atual século em algumas grandes cidades. Disputam espaço com facções de criminosos comuns no controle de atividades ilegais e semilegais e extorquem comunidades de diversos tipos, periféricas às grandes cidades, vendendo proteção em troca de segurança. A despeito de sua autonomia enquanto organizações criminosas, aparecem como um potencial e temível braço armado, eventualmente disponível para aterrorizar e matar adversários [xxx].

 

As igrejas evangélicas constituem um terceiro círculo. Não se estruturam monoliticamente, mas, em grande maioria, apoiaram ativamente a candidatura de Bolsonaro[xxxi]. Destaca-se também aí a pauta dos costumes. De modo geral, os evangélicos acreditam nos valores do trabalho, do ascetismo, do esforço próprio, da ajuda mútua e abominam as lutas identitárias, o consumo de drogas e a revolução comportamental que é um aspecto das transformações civilizacionais em curso. Apoiadas em crescente adesão social, fortes bancadas parlamentares (a bancada da Bíblia) e poderosos meios de comunicação, tornaram-se uma respeitável força política no país.

 

 

Mas seria um equívoco imaginar que seriam dóceis aliados, pois há contradições entre os valores cultivados pelos evangélicos e determinados aspectos do credo bolsonarista, como o recurso à violência (bandido bom é bandido morto), a conciliação consequente com as milícias, rejeitada, e a liberação dos jogos de azar, que eles execram.

 

Num quarto círculo, encontram-se vastos setores das classes médias afluentes (profissionais liberais, assalariados de padrão mais alto, etc.), principalmente no sul e sudeste do país. Desorganizadas, unificaram-se em torno de Bolsonaro menos pelo compartilhamento de valores ideológicos e mais pela luta contra a corrupção e o antipetismo. A nomeação do Juiz Sergio Moro para o cargo de Ministro da Justiça consagrou a adesão destas camadas sociais a Bolsonaro, mas sua recente demissão, em 24 de abril passado, e suas denúncias contra a conciliação de Bolsonaro com a corrupção, abalaram a confiança destas bases [xxxii].

 

Num quinto círculo, finalmente, encontram-se setores importantes das classes dominantes brasileiras, do capital financeiro internacionalizado ao agronegócio, cujas propostas costumam ser veiculadas pelos grandes meios de comunicação. Eles não têm voto, mas têm recursos que condicionam votações. Num primeiro momento, viam com desconfiança a extrema-direita, preferindo um candidato de centro ou de centro-direita para derrotar o petismo. Neste sentido, apostaram suas fichas no PSDB e em seu candidato, Geraldo Alckmin.

 

À vista do fracasso deste último, porém, migraram em massa para a candidatura Bolsonaro, na expectativa de controlar e domesticar seu extremismo. A escolha de Paulo Guedes como ministro das finanças, um homem comprometido com programas e reformas ultraliberais, contribuiu para que se viabilizasse o apoio destas gentes.

 

Para encerrar, cumpre enfatizar o potencial de apoio social do qual dispõe Bolsonaro em camadas populares, o que, em parte, é assegurado pelo trabalho de base dos evangélicos, notoriamente ramificados, de forma capilar, nas comunidades mais pobres do país. Sua capacidade de comunicação, auxiliada por um trabalho profissional nas mídias sociais, só perde para a de Lula. Gestual e palavras obscenas, que chocam as camadas de elite e letradas do país, são, muitas vezes, encaradas como expressões de coragem e autenticidade, qualidades escassas entre os políticos profissionais. Não esquecer as expressivas votações de Bolsonaro nos grandes centros urbanos e nas capitais dos Estados. Mesmo na região Nordeste, que permaneceu majoritariamente fiel ao PT e a Lula, Bolsonaro venceu em grandes cidades consideradas de larga tradição de esquerda, como Recife, capital de Pernambuco.

 

A multiplicidade e a pluralidade das bases de apoio que garantiram a vitória da extrema-direita evidenciam seu caráter profundamente heterogêneo. Recorde-se que a vitória de Bolsonaro não foi uma surpresa apenas para seus adversários, mas também para ele e seus fiéis apoiadores.

 

Uma frente política constituída de forma apressada, sem propostas claras para uma série de problemas fundamentais do país (educação, saúde, transportes públicos, segurança etc.), apoiada em ideias simplistas, salvadoras, que ignoravam – e ignoram – a complexidade das questões com as quais teria que lidar caso o candidato fosse sufragado. A improvisação evidencia-se no troca-troca de ministros, tendo já sido substituídos doze deles em apenas um ano e meio de governo, além de dezenas de substituições em escalões secundários, mas importantes [xxxiii].

 

 

Apesar de declarações altissonantes – e de bravatas em série –, que marcaram uma primeira fase do Governo, até junho de 2020, o governo e a extrema-direita não foram capazes de gestar até o momento uma doutrina coerente. Suas formulações encontrar-se-iam num estado gasoso, se a metáfora for permitida, o que dá conta das improvisações e acochambrações diversas, mal encobertas por uma estridente e poderosa propaganda. Trata-se de uma força política cujas concepções ainda estão em formação, como uma nebulosa, daí as dificuldades em conceituá-la, embora sejam bastante claros – e perigosos – seus propósitos autoritários e antidemocráticos.

 

Tais propósitos têm raízes autoritárias no passado brasileiro. Entretanto, a extrema-direita atual é bastante diferente das referências que vertebraram as ditaduras do passado. E é questionável também a aproximação que se faz entre o quadro atual e a experiência integralista dos anos 1930 e, em particular, com a experiência do fascismo.

 

De um lado, as conjunturas internacionais que ensejaram as ditaduras e o fascismo histórico (e o integralismo) têm características qualitativamente diferentes das atuais. As ditaduras exprimiam alianças de classe bem definidas e projetos claros de modernização autoritária. Não é o caso da atual extrema-direita[xxxiv].

 

Quanto ao integralismo e ao fascismo, caberia uma análise mais complexa [xxxv].

 

Se pensarmos o fascismo histórico, não há consistência teórica em identificá-lo com a atual extrema-direita brasileira. O fascismo caracterizou-se por propostas de regeneração cultural, de integração e enquadramento orgânico da sociedade, de mobilização intensiva e agressiva da população. Acionava um nacionalismo exacerbado, militar, violento e expansionista e voltado para a construção de um projeto de renovação da sociedade, típico das direitas revolucionárias. Ora, este conjunto de características e de referências não se encontra no bolsonarismo [xxxvi].

 

Do ponto de vista do debate a respeito da adequação e eficácia políticas do emprego do termo, preferimos empreendê-lo no próximo item, destinado ao estudo das alternativas disponíveis para lidar com a extrema-direita.

 

A democracia face à extrema-direita. Desafios & Alternativas

A análise do bolsonarismo tornou-se mais complexa em virtude de acontecimentos que se têm desdobrado a partir de junho de 2020.

 

Até então o governo manteve uma retórica beligerante, apoiando grupos extremistas que se destacavam por uma retórica de enfrentamento e que demandavam abertamente, às vezes com a presença e o estímulo do próprio presidente, o fechamento das instituições da democracia representativa, ou seja, um golpe de estado na tradição latino-americana dos anos 1960/1970.

 

Com o crescimento das tensões, associadas à crise gerada pela pandemia do vírus covid-19, extremamente mal gerenciada por Bolsonaro, à demissão do ministro da Justiça em abril de 2020, e a vários escândalos de corrupção, envolvendo fiéis aliados e até os próprios filhos de Bolsonaro, o governo sofreu profundo desgaste. Tendo sido sufragado por 57,8 milhões de votos (55,13% dos votos válidos), os índices de confiança caíram bastante, conforme flagrado por pesquisas realizadas em maio e junho de 2020, situando-se em torno de 30% [xxxvii].

 

Houve, a partir de então, notável e surpreendente reviravolta.

 

Bolsonaro abandonou à própria sorte os grupos extremistas que se isolaram e enfrentam hoje complicados processos na Justiça. Suspendeu igualmente a habitual retórica estridente, com aspectos paranoicos, e se dedicou, com sucesso, a formar ampla base política com diversos partidos minados por múltiplas acusações de envolvimento com a corrupção. No mesmo movimento, definiu um padrão de relações estáveis e amigáveis com lideranças do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, até então quotidianamente hostilizadas [xxxviii].

 

 

Bafejado pelo impacto positivo do auxílio emergencial aprovado pelo Congresso, mas que tem sido atribuído ao presidente pelos beneficiários, e apesar do desgaste entre os que votaram nele pensando na luta contra a corrupção, Bolsonaro voltou a conhecer substancial crescimento nos índices de aprovação popular segundo pesquisas realizadas em setembro último [xxxix].

 

As opiniões e análises se dividem agora a propósito dos rumos do bolsonarismo e do governo de Jair Bolsonaro. Estaríamos assistindo a um recuo episódico, “tático”, ou se trataria de definição de novos rumos? O presidente estaria receoso de que os processos contra seus filhos pudessem alcançar um ponto de não-retorno? Atingindo-o através de um processo de impeachment, de duvidosos resultados? O que teria feito Bolsonaro desistir das bravatas e ameaças sem fim? Os altos mandos das Forças Armadas teriam desaconselhado aventuras militaristas e ditatoriais? O presidente teria concluído que, entre as próprias classes dominantes, não haveria espaço, pelo menos nas circunstâncias atuais, para surtos autoritários? Teria sido ele, afinal, domesticado no quadro dos parâmetros institucionais? Outra incógnita, maior, completa o quadro de dúvidas: as orientações ortodoxamente neoliberais, lideradas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, seriam mantidas a todo o custo ou prevaleceriam inclinações por políticas nacional-estatistas, conferindo ao Estado um protagonismo decisivo na recuperação da economia?

 

O futuro do governo permanece indeciso. A cruzada contra a corrupção, depois da demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro, em abril passado, deixou de ser uma prioridade, para dizer o menos. A proposta neoliberal de reorganização da economia encontra-se também em questão. O ministro da Economia, Paulo Guedes, paladino desta perspectiva, apesar de seus esforços, não conseguiu ainda esvaziar as tendências nacional-estatistas defendidas por vários ministros [xl]. Grande parte da mídia, partidária das medidas e políticas neoliberais, hesita em acreditar na solidez da posição do ministro da Economia e não está certa de que ele se sairá vencedor nos embates contra os nacional-estatistas incrustados no governo.

 

As campanhas com vistas às eleições municipais, considerando-se a excepcionalidade da pandemia, vêm transcorrendo normalmente, promovendo-se uma carta “naturalização” do governo Bolsonaro. Quanto aos erros clamorosos cometidos pelo presidente ao lidar com a pandemia, o cansaço que toma conta de amplos setores da população, devido aos rigores da pandemia, tende a neutralizar, ao menos em parte, o desgaste sofrido nos primeiros meses pelos propósitos negacionistas do presidente.

 

Neste quadro, as forças de esquerda, de forma geral, permanecem sem propostas claras e sem capacidade de intervenção e mobilização. As referências a um possível impeachment, por improvável, esfumaram-se. É como se no palco político, em vez de duas forças, estivessem se confrontando duas fraquezas. A extrema-direita não tem capacidade – ainda não – de derrotar o Congresso e o Judiciário ou ameaçar, pelo menos no curto prazo, as instituições democráticas. Mas estas instituições também não conseguem remover Bolsonaro.

 

Como entrever e propor alternativas?

 

Entre os que observam a cena política brasileira, há um consenso de que a maioria de votos obtidos por Bolsonaro nas eleições de outubro de 2018 deveu-se muito mais ao antipetismo do que propriamente ao entusiasmo suscitado pelas propostas e características do candidato vitorioso.

 

Votando ou se articulando em torno de Bolsonaro, muitos ficaram na expectativa que, depois da vitória, houvesse uma rápida domesticação do presidente. Uma expectativa não realizada, mesmo depois da reviravolta acima mencionada. Se é verdade que as provocações e bravatas diminuíram de intensidade, são poucos os que imaginam que ele teria abandonado propostas e perspectivas autoritárias. Em vez de um golpe frontal, não se pode descartar, dependendo das circunstâncias, a hipótese de uma estratégia de desgaste progressivo das margens democráticas, uma corrosão por dentro as instituições, mantendo-as, no limite, como se fossem cascas desprovidas de conteúdo, num estilo semelhante ao empreendido por V. Orbán na Hungria [xli].

 

O fato é que, uma vez ameaçadas, as forças políticas de centro e de direita democráticas, hegemônicas no Parlamento e no Poder Judiciário, reagiram, marcando limites às pretensões ditatoriais de Bolsonaro. As tendências e os métodos chavistas, de enfraquecimento progressivo das instituições democráticas, atribuídos pelas direitas ao PT e a Lula, estariam sendo, na prática, adotados por Bolsonaro [xlii]. Em protesto, manifestos de intelectuais, juristas e profissionais liberais, publicados pela imprensa, afirmavam-se na defesa das instituições democráticas. Panelaços contra Bolsonaro, em várias cidades, evidenciavam um crescimento da insatisfação.

 

Reitera-se o equilíbrio de forças: entre a extrema-direita, liderada por Bolsonaro e a direita/centro democráticos, representados por líderes parlamentares e ministros do Supremo Tribunal federal. Nenhum lado mostra-se capaz de derrotar o outro.

 

A ameaça à democracia representada pela extrema-direita continua real. É verdade que o presidente perdeu bases nas classes médias que votaram nele imaginando-o como um campeão na luta contra a corrupção. Entretanto, o avanço registrado em amplos setores sociais em virtude o auxílio emergencial concedido pode inspirar aventuras autoritárias com apoio popular, o que não seria inédito na história do Brasil [xliii].

 

 

Se o governo mantiver a orientação neoliberal, prometida durante a campanha eleitoral, será muito difícil ampliar ou manter substancial apoio popular. Já uma inflexão no sentido de uma política nacional-estatista, combinando-se com políticas assistencialistas, criariam condições mais favoráveis ao apoio de camadas populares [xliv].

 

O dado novo é que as esquerdas democráticas começam a sair do torpor que as caracterizou desde a derrota eleitoral de 2018. Entre elas cabe distinguir as ações empreendidas pelas esquerdas de Estado e pelas esquerdas sociais.

 

A conceituação tem sido defendida por Carlos Vainer, professor vinculado ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional/IPPUR/UFRJ). As esquerdas de Estado seriam representadas pelos partidos políticos ou outras associações que disputam espaços institucionais, e ritmam seus movimentos de acordo com os calendários eleitorais. Já as esquerdas sociais seriam constituídas por lideranças que operam no tecido social, articulando e organizando movimentos que se desdobram na base da sociedade.

 

A experiência dos governos petistas evidenciou que não há uma “muralha da China” entre estes dois tipos de esquerda: muitos representantes de movimentos sociais importantes foram aspirados por órgãos ou conselhos consultivos, abandonando ou deixando em plano secundário a militância social. Até mesmo um movimento social tradicional, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra/MST, deixou-se cooptar, em certa medida pelos acenos e promessas dos governos petistas.

 

Estas esquerdas, sempre plurais, não estão destinadas a permanecer desarticuladas e/ou apartadas. No Brasil atual, porém, no quadro da nova república, estabeleceu-se uma grande distância entre elas, na medida em que as primeiras – as esquerdas de Estado – têm sido aspiradas pelas alturas institucionais das lutas políticas, afastando-se claramente das dinâmicas, aspirações e movimentos que se desdobram nas bases da sociedade, onde atuam as esquerdas sociais [xlv].

 

As esquerdas de Estado não parecem sensíveis a um processo autocrítico. Continuam ruminando críticas e ressentimentos relativos ao passado de derrotas recentes. No seu conjunto, nas eleições municipais de novembro de 2020, perderam uma boa chance de aparecerem unidas, com uma proposta alternativa ao autoritarismo bolsonarista, politizando as escolhas locais. Ao contrário, dividiram-se e foram a reboque da dinâmica localista dos pleitos municipais.

 

Contribuíram assim, involuntariamente, para “naturalizar” o bolsonarismo e a desarmar a sociedade para eventuais surtos autoritários. De seu lado, o Presidente, salvo exceções, fez uma escolha de se manter “neutro” em relação a candidaturas às prefeituras das cidades brasileiras. Entretanto, nas cidades onde manifestou apoio, seus candidatos não aparecem como favoritos, evidenciando-se que a “onda bolsonarista” de 2018 encontra dificuldades em se repetir. Reproduz-se, na conjuntura eleitoral, o “empate” de fraquezas acima referido.

 

Quanto às esquerdas sociais, evidenciam maior dinâmica. Em várias cidades, tomam iniciativas para se defender dos efeitos da pandemia, organizando serviços próprios de saúde, desempenhando papéis que caberiam ao Estado, mas que não são por este assumidos por negligência ou incompetência. Nas ruas, apesar dos interditos impostos pela pandemia, promoveram manifestações, disputando os espaços públicos com os grupos de extrema-direita. Nas mídias sociais, fervilham ações de diferentes tipos– debates, palestras, lives. Intelectuais e artistas formulam plataformas comuns, assinam manifestos e se pronunciam em defesa da democracia [xlvi]. É bastante provável que, desaparecidos ou atenuados os efeitos da pandemia, brotem importantes movimentos sociais, dando vazão a demandas por melhores condições vida, serviços públicos decentes, renda básica para todos, diminuição das desigualdades sociais etc.

 

Trata-se de garantir as margens democráticas existentes, reunindo em torno delas, sem exclusões, todos os que estiverem dispostos a lutar por sua preservação. A ideia de concretizar este movimento em torno de uma plataforma antifascista pode ser problemática. Para além da já referida inconsistência teórica, é de se perguntar se as amplas maiorias saberão sequer o que significa o termo fascismo. Por outro lado, e mais importante, uma frente popular democrática deveria se evidenciar como alternativa – positiva e construtiva – e não apenas se formar na base do anti, eis que tais frentes – negativas – tendem a perder o essencial: de que democracia se está falando, que democracia é preciso construir [xlvii].

 

 

Entretanto, é preciso ir além de defender apenas as margens democráticas existentes – restritas e limitadas. Neste sentido, cabe às esquerdas democráticas – de Estado e sociais – se reinventarem e se reaproximarem: a prioridade é investir na ativação dos movimentos de rua, recuperando musculatura no tecido social, reconstruindo forças de que já dispuseram, mas as perderam, e sem as quais não conseguirão retornar ao proscênio, hoje ocupado pela extrema-direita e pelas direitas e centro democráticos.

 

Num plano mais geral, as esquerdas democráticas precisam formular um programa de democratização da democracia, uma condição indispensável para que as gentes tornem a se interessar – e a proteger, no limite, a se dispor a salvar – o regime democrático ameaçado.

 

Um conjunto complexo de desafios. Que sejam capazes de suscitar, como sugeriu S. Zizek, a coragem da desesperança [xlviii]. Deste tipo de coragem é que dependerá a sorte da democracia no Brasil. [xlix]

 

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Notas:

[i] Para o debate sobre a díade direita-esquerda e suas manifestações extremas, cf. N. Bobbio, 1995 e K. Soper, 1999.

[ii] O mesmo aconteceu com os estados socialistas autoritários que, ou se desagregaram (área soviética) ou fizeram opções pela associação com capitais internacionais, reiterando-se como estados despóticos, onde não existem a livre expressão do pensamento e qualquer tipo de organização autônoma das classes populares (China, Vietnã, Cuba e Coréia do Norte).

[iii] Muitos preferem chamá-la de populismo de direita (S. Torney, 2019).

[iv] Observe-se que as propostas autoritárias de direita e as alternativas socialistas despóticas retroalimentam-se à custa das instituições democráticas.

[v] Lideranças políticas e estudiosos têm caracterizado este processo como de ressurgência do fascismo. O debate sobre a questão será desenvolvido no ítem 3 deste artigo.

[vi] Para o racismo estrutural no Brasil, em seus vários aspectos, cf. disponível aqui. Consultado em 20/10/2020.

[vii] Cf. Roberto DaMatta, crônica publicada em O Globo, 10 de junho de 2020, p. 3.

[viii] Para a cartografia dos estupros no Brasil, cf. disponível aqui. Consultado em 20/10/2020. Para violência doméstica, cf. disponível aqui. Consultado em 20/10/2020

[ix] Cf. Rodrigo Patto Sá Motta, 2002.

[x] Entre 1937 e 1945, a ditadura do Estado Novo, liderada por G. Vargas; entre 1964 e 1979, a ditadura civil-militar, presidida por cinco sucessivos generais.

[xi] Entre outros, mencionaria Daniel Aarão Reis, Rodrigo Patto Sá Motta e Marcelo Ridenti, 2014; Rodrigo Patto Sá Motta, 2002 e 2014; Denise Rollemberg, 2008, 2010, 2010a; Lucia Grinberg, 2009; Janaína Cordeiro, 2015; Gustavo Ferreira, 2015; Tatyana Maia, 2012; Paulo Cesar Gomes, 2019; Lívia Magalhães, 2014.

[xii] Nos anos 1970, tornou-se comum analisar as ditaduras latino-americanas como expressão imediata das tradições ibéricas. O conceito enfraqueceu-se com os processos de democratização que se realizaram na…península ibérica, (J. Linz e A. Stepan, 1978 e J. Linz, 2000).

[xiii] Na aspiração por tempos melhores, os brasileiros tendem a usar – e a abusar do – o adjetivo novo para designar mudanças que superariam mazelas do passado. A chamada nova república evidencia a reiteração do recurso, embora em sua estrutura e dinâmica fossem visíveis as marcas do velho,de continuação com o passado.

[xiv] Na interpretação de petistas, de lulistas e de outros agrupamentos de esquerda, o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe de estado parlamentar, camuflado, efetuado por dentro das próprias instituições democráticas. Curioso é que estas forças, desde 1988, recorreram diversas vezes ao impeachment, sem que o mecanismo, essencialmente autoritário, lhes parecesse questionável.

[xv] Nas primeiras eleições diretas para a presidência república, em 1989, foi vencedor, no segundo turno, Fernando Collor de Mello, representante de forças conservadoras que almejavam políticas neoliberais. Seu governo, porém, foi curto (1990-1992), tendo sido apeado do poder por um processo de impeachment apoiado em ampla frente social e política.

[xvi] O PT foi fundado em 10 de fevereiro de 1980, na esteira de grandes movimentos sociais; e o PSDB surgiu no âmbito dos trabalhos de elaboração da nova Constituição, em 25 de junho de 1988.

[xvii] A Comissão Nacional da Verdade, organizada em 18 de novembro de 2011, mais de trinta anos depois do fim da ditadura, até realizou um trabalho positivo, mas não conseguiu alterar o quadro de silêncio social sobre os crimes e legados da ditadura.

[xviii] A esperança em salvadores da pátria tem larga tradição no país. Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Fernando Collor, o próprio Lula, cada um a seu modo, todos se inscreveram neste registro de alternativas salvadoras a um sistema execrado.

[xix] Cf. disponível aqui. Consultado em 24 de junho de 2020. As eleições presidenciais realizaram-se em dois turnos: 7 e 28 de outubro de 2018.

[xx] A Lei n° 135, de 5 de maio de 2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, proíbe a candidatura de políticos condenados em segunda instância. A ironia é que foi promulgada pelo próprio Lula, quando no exercício de seu segundo mandato.

[xxi] Desde 1994, em seis sucessivas eleições presidenciais, os dois candidatos mais votados foram apresentados pelo PSDB e pelo PT.

[xxii] Desde 1992, em sete mandatos sucessivos, Jair Bolsonaro elegeu-se à Câmara de Deputados, defendendo interesses corporativistas das forças armadas e policiais e enfatizando o resgate positivo do regime ditatorial.

[xxiii] O juiz projetou-se como campeão nacional da defesa da moralidade. em virtude de seu protagonismo nos processos que desvendaram casos espetaculares de corrupção e acabaram levando à cadeia, entre muitos outros, o próprio ex-presidente Lula.

[xxiv] O censo nacional, realizado em 2000, apurou a existência de 26,2 milhões de pessoas que se autodeclaravam evangélicas, equivalentes a 15,4% da população. Em 2010, o número saltou para 42,3 milhões, 22% da população. O IBGE calculou então que existiriam 14 mil igrejas evangélicas. Consultado em aqui

[xxv] Bolsonaro teve participação pífia nos debates anteriores ao atentado, que o salvou de novos encontros, preservando-o de inevitáveis desgastes.

[xxvi] Para uma análise da presença das direitas políticas no Brasil, cf. André Kaysel e alii, 2015. Para uma interpretação da vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, cf. Jairo Nicolau, 2020.

[xxvii] Os diplomas legais emitidos no quadro do estado de exceção instaurado em 1964 foram nomeados pelos próprios autores como atos institucionais ou atos complementares. Foram 17 atos institucionais e 104 atos complementares. O mais drástico e violento foi o AI-5.

[xxviii] Não seria razoável afirmar que todos os referidos oficiais sejam partidários de Bolsonaro, mas é inegável que, no seu conjunto, eles constituem importante base de sustentação do atual presidente.

[xxix]Para as bases militares de extrema-direita, cf. Bolsonaro e o mundo armado no Brasil. Debate entre Luiz Eduardo Soares e Piero Lerner: Disponível aqui. Para as concepções de guerra cultural, cf. J.C. de C. Rocha, 2020.

[xxx] O assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL-RJ, perpetrado em 14 de março de 2018, foi obra de milicianos. Observe-se que, em algumas regiões, as milícias aliam-se ao tráfico, distribuindo seus “negócios”segundo interesses comuns. Para a força crescente das milícias e articulação com o tráfico cf. disponível aqui. Consultado em 22/10/2020.

[xxxi] Entre elas, destacam-se mesmo algumas lideranças que estão no campo das esquerdas. Por outro lado, o voto evangélico pode evoluir segundo as conjunturas, não sendo os fiéis meros carneiros nas mãos de seus pastores. Cf. B.A. Cowan, 2014. Tem crescido a literatura a respeito dos evangélicos, na proporção da importância dos mesmos na sociedade e na política do país. Cf., entre outros, citados pelo autor referido: S. Baptista, 2009 e M.N. Cunha, 2007.

[xxxii] O prestígio de Sergio Moro e dos procuradores de Curitiba foram gravemente atingidos com as revelações da Intercept, que revelou incontáveis tratativas e procedimentos ilegais e imorais empreendidos por eles. Cf. disponível aqui, consultado em 22/10/2020.

[xxxiii] Cf. Um governo de alta rotatividade. Alto escalão tem uma troca a cada três dias. In O Globo, 27 de agosto de 2020, p. 10.

[xxxiv] Considere-se que muitas forças políticas caracterizaram a ditadura instaurada em 1964, e também o Estado Novo, como fascistas. Foi mais um recurso de luta política do que um conceito adequado. Com o tempo, tais denominações perderam vigência.

[xxxv] Para o movimento integralista, cf. H. Trindade, 1979 e L. Gonçalves, 2018. A presença de núcleos nostálgicos do fascismo e do nazismo no interior da reação nacionalista de extrema-direita em várias partes do mundo tem levado muitos a apresentar este fenômeno novo e específico como uma ressurgência do fascismo/nazismo dos anos 1930. Foi o que tendeu a acontecer também no Brasil, em particular após o ascenso fulminante da extrema-direita. Para a especificidade do fascismo, que dispõe de abundante bibliografia,cf. Emilio Gentile, 2005, sobretudo a II Parte (pp. 169-375) e Robert Paxton, 2007, em particular os capítulos 7 e 8 (pp 283-361). Para uma síntese da especificidade do fascismo, segundo Paxton, cf. pp 358-361. Cf. ainda os estudos clássicos de Renzo Felice, 1977; e ZeevSternhell, 1994. Para o corporativismo estatal, doutrina inspiradora do Estado Novo cf. Antonio Costa Pinto, 2014. Para a vasta literatura sobre o nazismo, cf. I. Kershaw, 2010 e 2015 e R. Gelatelly, 2011. Para o ponto de vista marxista, cf. N. Poulantzas, 1978.

[xxxvi] Uma crítica pertinente ao bolsonarismo, como política excludente, distinta do caráter essencialmente integrador do fascismo, foi elaborada por R. Lessa, 2020. Ressalvem-se interpretações que atribuem ao fascismo uma acepção mais ampla, mais elástica, enfatizando-se não propriamente a experiência histórica, mas um complexo de valores autoritários e intolerantes. Cf. U. Eco, 1995.

[xxxvii] Pesquisas realizadas entre 7 e 10 de maio de 2020 indicavam o crescimento da rejeição ao governo, alcançando patamar de 43,4% (governo ruim ou péssimo). Já os índices de aprovação caíram para 32%. Cf. disponível aqui, consultado em 26 de junho de 2020. Tais resultados foram confirmados em novas pesquisas, publicadas em 26 de junho de 2020.

[xxxviii] Para a caracterização da paranoia de Bolsonaro e de alguns de seus auxiliares, cf. a transcrição da reunião realizada pelo conselho de ministros, presidida pelo próprio Bolsonaro, em 22 de abril de 2020: disponível aqui. Filmada e gravada, o conteúdo da reunião foi divulgado por decisão da Justiça, mostrando-se Bolsonaro e vários de seus correligionários tomados por um delírio de cerco típico das pessoas paranoicas (perseguem, mas se sentem perseguidas). Escrevi a propósito uma crônica: Um governo em cuecas, publicada em 13 de junho de 2020, em O Globo, p. 3. Paulo Sternick, psicanalista, em 21 de junho, no mesmo jornal, p. 3, consideraria a pulsão de morte do Presidente.

[xxxix]Observe-se que o auxílio, de R$600,00 por mês, previsto para durar 3 meses, foi proposto pelo governo em apenas R$ 200,00. Nos debates no Congresso, aumentou para R$500,00 sendo, mais tarde, fixado em R$600,00 pelo próprio Bolsonaro. Reduzido a R$ 300,00, o auxílio foi mantido até o fim do ano de 2020. O auxílio vem socorrendo dezenas de milhões de pessoas e seu impacto foi decisivo para evitar o agravamento da crise econômica e para ensejar a migração de muitos setores da pobreza e da miséria para a chamada classe C, ou seja, uma espécie de classe média inferior. Para a aceitação de Bolsonaro junto às camadas populares,cf. pesquisas realizadas em setembro último: disponível aqui. Consultado em 22/10/2020.

[xl] Tais tendências tornaram-se evidentes a partir da divulgação da reunião ministerial de 22 de abril. São defendidas pelos generais que assessoram Bolsonaro, como o gen. Braga Netto, e também pelos ministros de desenvolvimento regional, Rogério Marinho e de Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, cf. nota 44.

[xli] Observe-se que V. Orbán foi um dos poucos líderes internacionais a comparecer pessoalmente à posse de Bolsonaro, em janeiro de 2019.

[xlii] ElioGaspari, em sua coluna no Globo, de 10 de junho de 2020, p. 3, registrou reflexões de lideranças políticas (Joice Hasselmann, ex-líder do PSL, partido do governo na Câmara de Deputados) e intelectuais (José Arthur Giannotti, simpático ao PSDB, e Denis Lerner Rosenfeld, da direita democrática) que manifestavam alarme com seus procedimentos autoritários, classificados como chavismo de direita.

[xliii] Além da aprovação de 40%, que consideraram o governo “ótimo e bom”, Bolsonaro ainda conta com 29% que consideraram o governo “regular”. Além disso, recorde-se a força capilar – e popular – dos evangélicos.

[xliv] Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE, o país conta hoje, fins de outubro de 2020, com 14 milhões de desempregados. No quadro atual duvida-se da possibilidade de maciços investimentos internacionais, restando, portanto os investimentos estatais, combinados com setores industriais de intenso aproveitamento da mão de obra, como a construção civil. Por ironia, algo muito semelhante ao realizado pelos governos petistas.

[xlv] Cf. intervenção de Carlos Vainer na emissão Rebeldes, sempre, em três partes, a partir dos seguintes links: aqui; aqui; e aqui.

[xlvi] Alcançaram grande repercussão, manifestos assinados por intelectuais de esquerda e do centro e direitas democráticos: “Estamos juntos”; “Basta” (juristas); “Somos 70%” e “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”.

[xlvii] Cabe assinalar, contudo, que diversas manifestações e articulações populares têm se autoidentificado como antifascistas. Assim, não é de se excluir a hipótese que esta terminologia se afirme e se generalize.

[xlviii]S. Zizek, 2017.

[xlix] O presente texto atualiza e aprofunda questões veiculadas por artigo intitulado: “A extrema-direita brasileira: uma concepção política autoritária em formação”, publicado no Anuario de la Escuela de História, Universidad Nacional de Rosario, Argentina, em fins de outubro de 2020. Mencione-se igualmente uma primeira versão, intitulada: “Notas para a compreensão do Bolsonarismo”, publicada em abril de 2020 na Revista de Estudos Ibero-americanos, v. 46, n° 1/2020, Seção Tribuna. Revista de História da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUC/RGS, Brasil (Cf. D. Aarão Reis, 2020). Para a presente reelaboração, contribuíram sugestões de Angela Castro Gomes, Janaína Cordeiro, Marcelo Ridenti, Rodrigo Patto Sá Motta e Vladimir Palmeira, embora, de modo algum, possam ser responsabilizados por eventuais imprecisões e erros de avaliação que subsistam no artigo.

 

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