Liberdade e igualdade não bastam: uma cartilha sobre a Fratelli tutti. Artigo de Charles Taylor

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26 Novembro 2020

"Francisco não está apenas nos dizendo que não cumprimos com nossas responsabilidades morais, que ficamos aquém das exigências (morais) do Evangelho; além dessas exigências morais, o Evangelho também nos convida a crescer, a emergir das nossas vidas estreitas e movidas pelo medo", escreve Charles Taylor, filósofo canadense e autor de “Uma era secular” (Ed. Unisinos, 2010), em artigo publicado por Commonweal, 22-11-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o artigo.

Francisco vê coisas que muitos de nós vemos. Na Fratelli tutti, ele reflete sobre como as sociedades democráticas, que apesar de todas as suas divergências costumavam funcionar como projetos comuns, estão agora profundamente divididas:

“Usa-se hoje, em muitos países, o mecanismo político de exasperar, exacerbar e polarizar. Com várias modalidades, nega-se a outros o direito de existir e pensar e, para isso, recorre-se à estratégia de ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los. Não se acolhe a sua parte da verdade, os seus valores, e assim a sociedade empobrece-se e acaba reduzida à prepotência do mais forte. Desta forma, a política deixou de ser um debate saudável sobre projetos a longo prazo para o desenvolvimento de todos e o bem comum, limitando-se a receitas efêmeras de marketing cujo recurso mais eficaz está na destruição do outro. Neste mesquinho jogo de desqualificações, o debate é manipulado para o manter no estado de controvérsia e contraposição.

“Nesta luta de interesses que nos coloca a todos contra todos, onde vencer se torna sinônimo de destruir, como se pode levantar a cabeça para reconhecer o vizinho ou ficar ao lado de quem está caído na estrada? Hoje, um projeto com grandes objetivos para o desenvolvimento de toda a humanidade soa como um delírio. Aumentam as distâncias entre nós, e a dura e lenta marcha rumo a um mundo unido e mais justo sofre um novo e drástico revés” (n. 15-16).

Ele também vê que os nossos grandes avanços nos meios de comunicação nos levaram para campos diferentes, em que cada um proclama a sua própria “verdade”, e, portanto, nos fizeram perder o contato com a realidade:

“Isto permitiu que as ideologias perdessem todo o respeito. Aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria, até por algumas autoridades políticas, e ficar impune. Não se pode ignorar que há interesses econômicos gigantescos que operam no mundo digital, capazes de realizar formas de controle que são tão subtis quanto invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático. O funcionamento de muitas plataformas acaba frequentemente por favorecer o encontro entre pessoas com as mesmas ideias, dificultando o confronto entre as diferenças. Estes circuitos fechados facilitam a divulgação de informações e notícias falsas, fomentando preconceitos e ódios” (n. 45).

Até aqui, temos percepções que concordam com as intuições e as opiniões de liberais alertas, que acreditam nos direitos humanos, na democracia e na não discriminação.

Mas Francisco também vê coisas que muitos desses liberais não veem. Ele está agudamente ciente da maneira pela qual a nossa fé neoliberal demasiadamente grande na globalização e nos mercados aumentou a desigualdade, a divisão, o ressentimento e uma sensação de injustiça:

“O que acontece quando não há a fraternidade conscientemente cultivada, quando não há uma vontade política de fraternidade, traduzida numa educação para a fraternidade, o diálogo, a descoberta da reciprocidade e enriquecimento mútuo como valores? Acontece que a liberdade se atenua, predominando assim uma condição de solidão, de pura autonomia para pertencer a alguém ou a alguma coisa, ou apenas para possuir e desfrutar. Isso não esgota de maneira alguma a riqueza da liberdade, que se orienta sobretudo para o amor” (n. 103).

“O individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos. A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade. Nem pode sequer preservar-nos de tantos males, que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de vencer. Ilude. Faz-nos crer que tudo se reduz a deixar à rédea solta as próprias ambições, como se, acumulando ambições e seguranças individuais, pudéssemos construir o bem comum” (n. 105).

“Quero destacar a solidariedade, que, como virtude moral e comportamento social, fruto da conversão pessoal, exige empenho por parte de uma multiplicidade de sujeitos que detêm responsabilidades de caráter educativo e formativo” (n. 114).

“A solidariedade manifesta-se concretamente no serviço, que pode assumir formas muito variadas de cuidar dos outros. O serviço é, em grande parte, cuidar da fragilidade. Servir significa cuidar dos frágeis das nossas famílias, da nossa sociedade, do nosso povo. Nesta tarefa, cada um é capaz de pôr de lado as suas exigências, expectativas, desejos de onipotência, à vista concreta dos mais frágeis (…). O serviço fixa sempre o rosto do irmão, toca a sua carne, sente a sua proximidade e, em alguns casos, até ‘padece’ com ela e procura a promoção do irmão. Por isso, o serviço nunca é ideológico, dado que não servimos ideias, mas pessoas” (n. 115).

“O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se de um pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja. O neoliberalismo reproduz-se sempre igual a si mesmo, recorrendo à mágica teoria do ‘derrame’ ou do ‘gotejamento’ – sem a nomear – como única via para resolver os problemas sociais. Não se dá conta de que a suposta redistribuição não resolve a desigualdade, sendo, esta, fonte de novas formas de violência que ameaçam o tecido social. Por um lado, é indispensável uma política econômica ativa, visando promover uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a criatividade empresarial, para ser possível aumentar os postos de trabalho em vez de os reduzir. A especulação financeira, tendo a ganância de lucro fácil como objetivo fundamental, continua a fazer estragos. Por outro lado, sem formas internas de solidariedade e de confiança mútua, o mercado não pode cumprir plenamente a própria função econômica. E, hoje, foi precisamente esta confiança que veio a faltar. O fim da história não foi como previsto, tendo as receitas dogmáticas da teoria econômica imperante demonstrado que elas mesmas não são infalíveis. A fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política saudável que não esteja sujeita aos ditames das finanças, devemos voltar a pôr a dignidade humana no centro e sobre este pilar devem ser construídas as estruturas sociais alternativas de que precisamos” (n. 168).

Aqui, novamente, ele está em um terreno ocupado por alguns liberais (e social-democratas), que estão cientes de que as explosões da desigualdade têm minado a democracia.

Até aqui, as conclusões que tiramos dessas intuições dão forma àquilo que devemos fazer, ou pelo menos nos esforçar para fazer, para construir uma sociedade decente. A lição moral dá forma às nossas obrigações. Ainda parecemos estar no âmbito do “dever”, que é fundamental para um certo tipo de moral liberal, no que diz respeito ao que “devemos uns aos outros”.

Você poderia parar de ler a Fratelli tutti apenas com esse entendimento da obrigação (embora a encíclica abranja as relações internacionais, a governança global, a necessidade de respeitar as outras culturas, principalmente as dos povos indígenas, e muito mais). Mas você perderia algo essencial. A encíclica também opera em outra dimensão, que podemos descrever como a plenitude da humanidade e o modo como alcançá-la.

“O ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude a não ser no sincero dom de si mesmo aos outros. E não chega a reconhecer completamente a sua própria verdade, senão no encontro com os outros: só comunico realmente comigo mesmo, na medida em que me comunico com o outro. Isso explica por que ninguém pode experimentar o valor de viver, sem rostos concretos a quem amar. Aqui está um segredo da existência humana autêntica, já que a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade; e é uma vida mais forte do que a morte, quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade. Pelo contrário, não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo e de viver como ilhas: nestas atitudes prevalece a morte” (n. 87).

“A partir da intimidade de cada coração, o amor cria vínculos e amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mesma para o outro. Feitos para o amor, existe em cada um de nós uma espécie de lei de ‘êxtase’: sair de si mesmo para encontrar nos outros um acrescentamento de ser. Por isso, o homem deve conseguir um dia partir de si mesmo, deixar de procurar apoio em si mesmo, deixar-se levar” (n. 88).

“Sentar-se a escutar o outro, caraterístico dum encontro humano, é um paradigma de atitude receptiva, de quem supera o narcisismo e acolhe o outro, presta-lhe atenção, dá-lhe lugar no próprio círculo. Mas o mundo de hoje, na sua maioria, é um mundo surdo (…). Às vezes a velocidade do mundo moderno, o frenesi impede-nos de escutar bem o que outro diz. Quando está a meio do seu diálogo, já o interrompemos e queremos replicar quando ele ainda não acabou de falar. Não devemos perder a capacidade de escuta. São Francisco de Assis escutou a voz de Deus, escutou a voz dos pobres, escutou a voz do enfermo, escutou a voz da natureza. E transformou tudo isso num estilo de vida. Desejo que a semente de São Francisco cresça em tantos corações” (n. 48).

“A nossa relação, se é sadia e autêntica, abre-nos aos outros que nos fazem crescer e enriquecem. O mais nobre sentido social hoje facilmente fica anulado sob intimismos egoístas com aparência de relações intensas. Pelo contrário, o amor autêntico, que ajuda a crescer, e as formas mais nobres de amizade habitam em corações que se deixam completar. O vínculo de casal e de amizade está orientado para abrir o coração em redor, para nos tornar capazes de sair de nós mesmos até acolher a todos. Os grupos fechados e os casais autorreferenciais, que se constituem como um ‘nós’ contraposto ao mundo inteiro, habitualmente são formas idealizadas de egoísmo e mera autoproteção” (n. 89).

Há muitos (bons) conselhos morais na encíclica de Francisco, mas há também outra dimensão: uma antropologia filosófica que nos vê realizando mais plenamente a nossa humanidade por meio do contato e do intercâmbio com pessoas e culturas além da nossa zona de conforto original. Por meio dessas trocas, novas possibilidades criativas humanas se revelam, e a vida humana se enriquece. É assim que eu entendo a “lei da ekstasis” de Francisco.

Francisco não está apenas nos dizendo que não cumprimos com nossas responsabilidades morais, que ficamos aquém das exigências (morais) do Evangelho; além dessas exigências morais, o Evangelho também nos convida a crescer, a emergir das nossas vidas estreitas e movidas pelo medo.

A nossa nova tribulação global, onde diferentes culturas e fés entram em contato de forma cada vez mais próxima, não é apenas uma ocasião para discriminações e exclusões que devemos evitar (embora certamente devamos lutar contra elas), mas também um local crucial para realizar as vidas mais completas que somos chamados a viver.

 

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