Estudo inédito desfaz mitos sobre os moradores de rua no Brasil

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29 Abril 2020

Pesquisadores de diversas áreas e universidades mapearam, durante quatro anos, aspectos do cotidiano desses cidadãos em oito cidades.

A reportagem é de Thais Reis Oliveira, publicada por CartaCapital, 28-04-2020.

Dos vadios que desafiavam a relação senhor-escravo aos andarilhos, homens do saco, loucos varridos, a figura do cidadão sem casa e sem ofício conhecidos teve sempre lugar na vida brasileira. A partir dos anos 50, a urbanização desenfreada — quase nunca acompanhada de educação, saúde, segurança e moradia e empregos ocupáveis pelos mais pobres — fez nascer a figura do morador de rua. Esses indivíduos passaram a ser tratados como população.

Essa amálgama que até hoje pesa sobre como modo que o Brasil enxerga e trata seus habitantes nessa situação. Do senso, algo romântico, que os vê como sujeitos “livres” à pecha higienista de invasores perigosos e indesejáveis, a verdade é que sabemos muito pouco sobre eles. Chega às livrarias em maio um estudo que joga luz sobre os dramas, hábitos e desejos e o cotidiano dessa população. O relatório Cidadãos em situação de rua: dossiê Brasil: grandes cidades, da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Pesquisadores de diversas áreas e universidades mapearam, durante quatro anos, aspectos do cotidiano desses cidadãos em oito cidades do Brasil. A escolha do termo tem razão especial, explica Igor de Souza Rodrigues, coordenador da pesquisa. “A marginalidade se perpetua, principalmente, pela exclusão desses indivíduos. Como se eles não fizessem parte do mesmo sistema social que o nosso.”

As conclusões corroboram essa ideia. Uma das constatações é que o nível de escolaridade dos que vivem nas ruas não é tão diferente da média geral retratada pelas estatísticas. Outro equívoco corrigido, repetido quase como um mantra pelo senso comum, é que esses indivíduos não trabalham. “Quando fomos a campo, constatamos o contrário disso. Na verdade, eles sustentam todo ramo da reciclagem, o lucro de grandes depósitos de sucata e multinacionais que se orgulham de ser ‘sustentáveis’, mas não empregam sequer um catador”, completa Rodrigues. Outro ofício comum é o dos chapas, que atuam na carga e descarga em pontos de passagem de caminhões. A escolha pelo trabalho braçal se dá pela rentabilidade, pois o pagamento é combinado previamente e consumado em seguida.

Quanto mais perto nas ruas, maior fragilidade. Uma das pesquisas que integram o relatório, concluída em Juiz de Fora em 2017, constatou que 72% dos que dormiam na rua não são beneficiados por nenhum programa assistencial do governo. E 46% estavam há mais de cinco anos na rua.

Conforme aumentam as estruturas de suporte, sejam elas do Estado ou alguns vínculos familiares mesmo que precários, a vida tende a melhorar sensivelmente. A posse da Carteira de Trabalho sobe para 48% nos indivíduos que dormem em abrigos. Chega a 60% entre os que voltam para casa para dormir. Em ambos os grupos, oito em cada 10 anda em posse de RG e CPF, uma alta considerável em comparação aos que vivem e dormem nas ruas.

As casas de acolhimento e restaurantes populares servem também de base aos percursos diários dessa população. Dias de suspensão da ordem cotidiana, como domingos e feriados, trazem incerteza quanto a onde comer e como ocupar o tempo. No caso de atipicidade prolongada, como esta que se vive pela covid-19, o drama é ainda mais crítico. “A situação está ficando insuportável. Não tem água no fluxo, na Luz. Nem o caminhão-pipa está indo. O Atende II continua fechado. O centro de convivência do Recomeço também. Foram três ações na semana passada com bombas. Se o plano é matar as pessoas, vão conseguir”, denuncia Alderon Costa, fundador da Rede Rua, que atua em São Paulo.

Há ainda relatos que revelam detalhes do sistema de valores dessa população. Como a história do rapaz de 26 anos, que depositou dois reais que recebera minutos antes pela chance de escolher uma música na jukebox de um bar. Acertar a música era importante. Se a escolha agradava, as prostitutas do bar começavam a dançar e os clientes, geralmente aposentados, pagavam rodadas de cervejas e cachaça para os que estavam no local. Caso vencesse o desânimo, não haveria bebida. A relação entre o vício e a vida nas ruas, aliás, é complexa. Não há como separar os efeitos químicos da droga da miséria de ordem social a que está submetida esta população: fome, higiene precária, baixa imunidade, o frio no pernoite da rua e o medo da violência.

A obra também lança um olhar demorado sobre a questão das mulheres. Historicamente limitadas a viver e estabelecer suas relações no âmbito doméstico, muitas recorrem às ruas como forma de se verem livre da violência marital. Também pesam nessa equação os transtornos mentais. Sem suporte familiar para lidar com a doença e sem a chance de receber tratamento adequado, a rua vira saída. No caso das travestis e transsexuais, para quem o processo de expulsão simbólica e afetiva do seio familiar se materializa em expulsão literal, em um quadro cuja prostituição e violência se retroalimentam. Mesmo entre outros moradores de ruas, elas estão sujeitas a uma “violência justificável”, como se merecessem esse tratamento perverso. Por isso, são obrigadas a conviver entre si. O que explica, inclusive, a formação de linguagem e códigos de comportamento específicos.

O enriquecimento do País não se traduziu em melhoras significativa na vida desses indivíduos. Ao contrário, as relações se degradaram ainda mais. A contagem mais recente da cidade de São Paulo indicou 24.344 pessoas vivendo nas calçadas. São mais pessoas vivendo nas ruas do que habitantes de 70% das cidades do Brasil. O aumento em relação ao censo anterior, de 2015, foi de 53%. Esse número é ainda maior. A pesquisa paulistana não incluiu, por exemplo, moradores de barracos ou locações com madeirite. Os movimentos sociais duvidam da contagem e estimam que os paulistanos na rua chega 30 mil. O número próximo do aferido pela última pesquisa nacional sobre a população de rua, feita em 2009, e que coletou dados em apenas 71 cidades.

O efeito cascata de tantas fontes de exclusão, como uma âncora, prende esses cidadãos no fundo de um oceano de dificuldades. Os efeitos psicológicos de uma longa temporada nas ruas os fazem incorporar a culpa pelo fracasso. Para mudar esse quadro, é preciso uma intervenção robusta.

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