“Eu estou tirando Deus da Bíblia”. Entrevista com Marc-Alain Ouaknin

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12 Dezembro 2019

Intelectual de curiosidade insaciável, malabarista de palavras com ideias iconoclastas, filósofo e contrabandista de conhecimentos Marc-Alain Ouaknin ataca o monumento dos monumentos, a Bíblia. Com ele, qualquer leitura é uma aventura.

Marc-Alain Ouaknin está com 62 anos. Desde Le Livre brûlé (1986), não parou de interpretar com originalidade e liberdade os grandes textos da tradição judaica, a começar pelo Talmud. Em 2001, traduziu o livro de Jonas, em colaboração com Anne Dufourmantelle. Em 2007, lançou o “projeto Targum” para uma nova edição da Bíblia hebraica.

A entrevista é de Jean-Pierre Denis, publicada por La Vie, 04-12-2019. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

Ao mesmo tempo livro de arte e nova tradução, seu Gênese do Gênesis revisita o primeiro livro da Bíblia. Mas por que você se limitou aos 11 primeiros capítulos?

Esses 11 primeiros capítulos formam um todo coerente. É a parte babilônica do Gênesis, muito diferente dos outros dois, que contam a história dos patriarcas e o ciclo de José. Ela se inscreve em um contexto específico. Em 536 antes da nossa era, o imperador persa Ciro permite que os judeus deixassem o exílio para reconstruir o Templo de Jerusalém. Mas a maioria deles, não assimilados, mas perfeitamente integrados, sente-se tão bem na Babilônia que escolhem permanecer ali. Quase um século depois, em 450, o escriba Esdras quer proporcionar ao povo o desejo de voltar para a terra de seus ancestrais. Esdras, que também é chamado de Ezra, construiu a nação ao escrever uma série de livros que instiga nos judeus a vontade de voltar para a terra da Judeia. Esta é a Torá, o Pentateuco, isto é, os cinco primeiros livros que compõem a Bíblia. Neste conjunto, os 11 primeiros capítulos do primeiro livro são como uma assinatura.

Você faz de um livro anônimo, o Gênesis, o livro de um homem. Você acha que encontrou o autor da Bíblia?

A Bíblia não começa com as palavras de um Deus que dizia: “Olá, meu nome é Deus, o que você vai ler é uma revelação, e vou agora explicar como criei o céu e a terra...”. O Gênesis não diz “No princípio, eu, Deus, criei...”, mas “no princípio, Deus criou”. Indica-nos imediatamente que Deus não escreveu esse texto. Portanto, há um narrador. Quem é este homem que salpica o texto que está em processo de produzir num piscar de olhos o que ele pensou, ao mesmo tempo? Ao ler dois outros livros da Bíblia, Esdras e Neemias, que contam o retorno dos judeus a Jerusalém, penso que se trata de Esdras. Esdras não é o inventor do Gênesis, mas ele é o seu redator, a partir de tradições orais e de manuscritos existentes. Ele retoma histórias, como a de Gilgamesh, para oferecer a sua própria versão.

A Bíblia traduz para o hebraico mitos mesopotâmicos, escritos em sumério ou em acadiano. Gênio da literatura, da filosofia e da poesia, Esdras parece se apoiar sobre o programa de livros didáticos das escolas babilônicas – que é a minha suposição –, onde ele ensinava aritmética e geometria, literatura, história e geografia. Utiliza o horizonte mental de seus contemporâneos para dizer-lhes algo novo. Acima de tudo, escreve em um novo alfabeto. A invenção desta escrita é, de acordo com o Talmud, um acontecimento tão importante quanto a subida de Moisés ao Sinai, onde recebeu as tábuas da Lei.

Você menciona a criação de um novo alfabeto. Isto significa que os hebreus não usavam o alfabeto hebraico?

Nós, os franceses de hoje, por exemplo, podemos escrever com letras oriundas de hieróglifos simplificados, daquilo que é chamado de proto-sinaítico, que se tornou, em seguida, o cananeu. Transmitida pelos cananeus do norte, isto é, os fenícios, o cananeu se transformou no grego, no etrusco e no latim. A escrita paleo-hebraica, em uso antes do exílio, é da mesma família. Ele procede também do egípcio. O rei Salomão não leu o que chamamos de hebraico. Certamente, ele usava a língua hebraica, mas escrita em um alfabeto diferente daquele atualmente em uso. As moedas em uso nos tempos de Salomão e Davi estão em paleo-hebraico. Com algumas variações, a mesma escrita encontra-se no museu de Beirute no sarcófago de Ahiram, o rei de Biblos, que reinou por volta de 1.000 antes da nossa era. Ou no Louvre, na Estela de Mesa, rei de Moab (século IX a.C.).

O alfabeto hebraico atual não é, portanto, bíblico?

Denomina-se incorretamente em francês “alfabeto hebraico” o que em hebraico é chamado “ktav ashuri”, “alfabeto assírio”. Isso indica claramente sua origem, do lado de Nínive, de Mosul. Mas ashuri, em hebraico, também significa “aquilo que é belo, que faz feliz”. O ashuri é, portanto, uma “bela carta”! E essa filiação é sugerida no primeiro versículo do Gênesis, que é, para mim, a assinatura de Esdras. Um dos anagramas de bereshit, a primeira palavra da Bíblia, que geralmente é traduzida como “no princípio”, é be ashurit, “escrita assíria”. No lugar do habitual “No princípio, Deus criou o céu e a terra...”, poderíamos traduzir: “É no alfabeto assírio que Deus criou o alfabeto do céu e o alfabeto da terra”. Os primeiros capítulos do Gênesis mostram que estar na Judeia, na terra da promessa, é ter vindo de outro lugar, em outras palavras, da Babilônia.

Você assinala uma forma de reconhecimento de dívida cultural?

O judeu é judeu porque toma consciência de sua dívida com os que o abrigaram ao longo da história, desde os egípcios e os babilônios. Eu acrescentaria que se, historicamente, o judeu é judeu (yehudi) é porque ele vem da tribo de Judá. No plano ético, a palavra está próxima de outra (lehodot), que significa especialmente “obrigado”. Dizer “eu sou judeu” significa, portanto, dizer “obrigado”. Um muito obrigado tanto maior que não se encontra nenhum judeu nos 11 primeiros capítulos da Bíblia. Adão e Eva não são judeus. Nem Caim e Abel. O começo da Bíblia é universal.

Na sua opinião, a Babilônia assume uma importância fundamental e fundadora. O exílio, no entanto, supõe-se que seja uma recordação nada boa...

Você está se referindo ao salmo [137, 1]: “Junto aos canais de Babilônia nos sentamos e choramos”. Mas nem todos os judeus estavam tão infelizes, pois quatro quintos deles permaneceram no exílio. De fato, eles nunca deixaram a Babilônia! A prova da persistência e da importância dessas comunidades, por pelo menos 1.000 anos, não é outra senão o próprio Talmud. Na Judeia, os mestres falavam hebraico, e é em hebraico que eles escreveram a Mishná, o outro grande corpus do judaísmo. Mas não há muitas palavras hebraicas no Talmud, além das citações bíblicas. Este texto, que funda o judaísmo atual, não é chamado por ninguém de Talmud da Babilônia. Não teria sido escrito da mesma maneira se não houvesse comunidades estruturadas, academias florescentes e persistentes.

Evocar os “mitos” a propósito da Bíblia não é fácil. Você não tem medo de ofender alguns crentes?

As tábuas de argila que contam a Epopeia de Gilgamesh datam do século XVIII a.C. A Bíblia, em sua escrita, é datada no início do século VI antes da nossa era. A anterioridade dos mitos babilônicos não é, portanto, debatida. Na época de Platão, por volta de 420 a.C., os gregos passaram do mito ao logos. Esdras, por volta de 450, passa do mito antigo ao novo mito. Mas esse mito novo já é filosófico. O relato da criação do mundo segundo o Gênesis não é a história verdadeira da criação do mundo, mas a verdadeira história da criação do mundo como está escrita.

Você dessacralizou o texto!

Não é o texto que dessacralizo, é Deus. Eu estou tirando Deus da Bíblia, se posso me permitir essa expressão. Eu não dessacralizo o Gênesis, eu o desteologizo.

Com que finalidade?

Quando Deus quer criar o mundo, encontra um problema teológico. Se Deus é infinito, não há lugar para outra coisa além dele. Para que o mundo possa existir, Deus diz para si mesmo, devo retirar-me de mim mesmo e em mim mesmo. É preciso criar um espaço vazio de Deus para que haja espaço para outra coisa. É o que a tradição judaica chama tsimtsum, a retirada de Deus. O mundo é o lugar do desaparecimento de Deus. A partida do divino, a desteologização ou ateologia, abre espaço para o mundo e, neste mundo, um lugar para o leitor. É porque Deus se ausentou que você e eu podemos estar aí e conversar um com o outro. Caso contrário, isso seria impossível.

Certamente, Deus voltará. Mas como voltar sem “obstruir” novamente o espaço? É aqui que começa a discussão entre o judaísmo e o cristianismo, de modo especial. Deus “se faz pequeno” para alcançar a finitude dos homens. Para os cristãos, é o corpo de Cristo. Para o judaísmo, é o corpo do Livro. Nos dois casos, há encarnação. Mas nos dois casos continua sendo um problema teológico importante. Deus, o infinito, está, por assim dizer, preso nessa finitude que aceitou para si mesmo. Os homens têm a obrigação de lhe devolver o seu estatuto de infinito.

Como fazer isso?

É muito simples! Deus se fez finito no Livro, ele se contraiu nas letras do alfabeto. Deixar o texto como está, contentando-se com uma leitura literal, mantém-no preso. Pelo contrário, a interpretação do texto, por ser infinita, confere a Deus seu estatuto de infinito. O papel da interpretação é um papel teológico em um espaço ateológico. Para poder dar a Deus seu estatuto de infinito, precisamos “tirá-lo da finitude”. A finitude de Deus é este texto. Ao tirar Deus do texto, ao refazer um texto humano, pela interpretação que proponho, devolvo ao divino seu estatuto de infinito.

Sagrado paradoxo que essa dessacralização...

De fato, é tirando-o do texto que Deus se torna novamente Deus. Mas ele não é mais o mesmo. Não é mais um Deus que é Deus por si mesmo, mas um Deus que se torna Deus através da responsabilidade que os homens assumem de sua infinitude. No cristianismo, o esquema é o mesmo. O corpo de Cristo na cruz é um Deus finito, a quem a Eucaristia devolve seu estatuto de infinito.

É preciso uma certa coragem, sem dúvida, para tirar Deus do texto.

É o que todos os mestres sempre fizeram. É o cabalista Isaac Louria, no século XVI, que formaliza essa ideia e propõe o conceito de tsimtsum. Mas essa ideia já está em germe no Talmud e no midrash.

Perdoe-me esta pergunta... cristã: mas então, o que acontece com a fé?

A fé judaica é, na etimologia da palavra, a fidelidade. O judeu não é fiel a Deus, ele é fiel ao texto, cuja interpretação torna Deus vivo.

Algumas palavras sobre a sua tradução. Você escolhe escrever Deus, ou melhor, eloim, sem letras maiúsculas... Outra profanação?

O hebraico não é uma língua de palavras, mas de letras. Cada palavra é uma caixa de letras, uma caixa de correio. A sintaxe é apenas um acidente do lançamento das letras da caixa. Para cada raiz de três letras, são possíveis seis permutações, o que fornece resultados fabulosos. Nenhuma letra é por si só a primeira, cada palavra é um movimento de letras. Minha tradução procura enfatizar essa dinâmica interna da linguagem. A ausência de maiúscula indica a igualdade de todas as letras em uma permutação infinita! Acreditamos que os talmudistas são excelentes no Scrabble, este jogo que poderíamos dizer particularmente hebraico!

Sua tradução é um diálogo com a pintura abstrata. O que essa troca traz?

Não tentei justapor versículos e imagens. Eu me perguntava que vínculo estabelecer entre o texto e as obras que, a priori, não têm nenhuma relação. É o atrito entre o dizível e o visível, como diria Roland Barthes. Esse diálogo com a abstração me permitiu redescobrir o texto. Tomar as primeiras palavras do primeiro versículo do Gênesis. Ao traduzi-las para o francês, posso pontuá-las de diferentes maneiras. Ou “Primeiramente, eloim”. Ou “Primeiramente, eloim criou”. Ou ainda: “Primeiramente. Eloim...”. Nesta tradução, este versículo é acompanhado pelo Círculo Negro de Malevich. A escolha de comparar este quadro muda minha visão. Então, eu não traduzi apenas do hebraico. Traduzi do hebraico e de Malevich, do hebraico e de Soulages, etc. Assim, desde o primeiro versículo: “Primeiramente, ponto”. O ponto faz parte da tradução!

Sob sua pena, o “primeiro dia” da criação torna-se um “dia único”, seguido, no entanto, de um segundo dia, depois de um terceiro e assim por diante. Isso pode ser considerado um flerte.

É tudo menos um flerte. Em hebraico, o primeiro dia se diz yom rishon. O texto do Gênesis, diz yom ehad, dia único. Este primeiro dia não foi precedido, nisso ele é único. É a mesma palavra usada na oração do Shemá Israel para dizer: “O Eterno é Um”, Adonai ehad. Certamente, o primeiro dia é seguido por um segundo, um terceiro, um sétimo. E, no entanto, ele é único da mesma maneira que Deus é único. As consequências éticas são formidáveis. O tempo está acabando. Todo dia é importante. Todo dia deve ter um sentido.

De fato, todo primeiro dia é único: primeiro amor, primeiro momento... E, no entanto, haverá outros!

Não é emocionante? E nós temos a sorte de poder dar aos dias que se seguem sua singularidade. Nenhum dia pode se parecer a outro dia. Toda noite, devemos ir para a cama com uma pergunta simples: fui capaz de fazer um dia único do dia que me foi dado? Se cada dia é um presente único, que presente eu fiz deste presente? O presente é o presente que farei à humanidade. O tempo não é o tempo que passa, mas o tempo que construímos.

Em hebraico, o verbo ser não existe. Não podemos dizer “eu sou”, mas podemos dizer “existe”, yesh, escrito com as duas letras youd e shin. O contrário de “existe” é shin e youd, é a palavra shaï, que quer dizer presente. O que “é” porque é um presente. Se eu não sou único em um dia único e em uma vida única, qual é o sentido da minha existência? Nossa vida é insubstituível e, a partir de então, nossa responsabilidade é infinita!

Um Gênesis carregado nas cores

As Éditions Diane de Selliers publicam um livro por ano. Sempre um monumento de beleza e cultura, editado com cuidado meticuloso e ricamente ilustrado. Este é particularmente o caso deste ano com La Genèse de la Genèse illustrée par l’abstraction. O livro não propõe uma tradução simples, mas uma leitura original e às vezes provocativa dos 11 primeiros capítulos do Gênesis, aqueles dos grandes mitos que marcam mais profundamente a nossa imaginação, como a criação do mundo ou o dilúvio. O texto é dado a três vozes, que o autor faz entrar em ressonância: o hebraico e sua transliteração, o idioma francês e a linguagem pictórica, aquela dos grandes pintores abstratos. A essas três vozes soma-se a do autor, cujos comentários sutis são uma delícia.

A tradução de Marc-Alain Ouaknin desabitua os ouvidos de algumas ideias e sonoridades recebidas. Seu Gênese do Gênesis é jovial e preciso, desconstrução e restituição. Ela será um excepcional presente de Natal!

La Genèse de la Genèse, de Marc-Alain Ouaknin, prefácio de Valère Novarina.  Paris: Diane de Selliers, 230 euros.

Hors-série: os grandes mitos da Bíblia

Os mitos são geralmente associados às culturas grega e latina. Assim, esquecemos que, como todos os corpus antigos, a Bíblia recorre a essa forma literária. E ela nunca hesita em explorar os reservatórios épicos e mitológicos das outras culturas antigas, para dizer sua singularidade. Se seus autores querem contar a história do povo de Israel e testemunhar seu encontro com um Deus que faz uma aliança com a humanidade, o conjunto tem menos manual de história do que coleção de histórias que obedecem à lógica simbólica. A Bíblia atinge cada leitor em sua imaginação e sensibilidade, testemunhando os especialistas das tradições judaica, cristã e muçulmana reunidos aqui. Se eles visitam sob o ângulo arqueológico ou literário, antropológico ou filosófico, moral ou teológico os sete dias da Criação, a culpa de Adão e Eva, Moisés ou outras grandes histórias bíblicas, nos mostram que esses permanecem universais. Uma hors-série La Vie, 6,90 euros.

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L'Ancien Testament, por Thomas Römer (Que sais-je ?, 9 euros). Um dos melhores biblistas do mundo, professor do College de France, fornece uma síntese densa e precisa, o estado mais atual do conhecimento.

La Bible de Rachi (Cerf, 39 euros). A reedição do Pentateuco, versículo por versículo pelo rabino Rachi, nascido em Troyes em cerca de 1040. Um monumento deve ser lido e, por sua vez, comentado por um milênio.

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