Brasil. Democracia de balas

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03 Fevereiro 2019

“O exílio de Jean Wyllys, assim como o assassinato de Marielle Franco, destacam o ponto de tensão extrema entre as lutas feministas, antirracistas e lgbtq e um patriarcado mercenário que, invocando a regeneração da família e a restauração da autoridade do Pai, abre a porta para a violência de alguns negócios que não reconhecem qualquer limite, nem regulação”, escreve Gabriel Giorgi, mestre em Sociosemiótica pela Universidad Nacional de Córdoba e doutor em Spanish and Portuguese pela New York University, onde atualmente é professor, em artigo publicado por Página/12, 01-02-2019. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Uma louca sempre sabe como responder a um fascista: cuspindo em sua cara. Jean Wyllys fez isso, como se recordará, durante a infame sessão em que se votou o impeachment de Dilma Rousseff, após receber insultos do então obscuro deputado Jair Bolsonaro. Diante das câmeras, Wyllys lhe lançou uma espetacular cusparada que condensava não apenas a repugnância diante do personagem, mas também demonstrava um limite que a democracia não deveria atravessar. Bolsonaro havia votado em nome do torturador de Dilma - Carlos Ustra -, celebrando a figura não só do milico anticomunista, mas também a do macho que tortura a inimiga política (os filhos de Bolsonaro passeiam, na atualidade, usando camisetas com a legenda “Ustra vive”). O gesto de Wyllys, deputado reconhecido por sua militância lgbtq, condensava isso: cuspir sobre um personagem que usava o parlamento para prometer o retorno de uma violência classista, racista e patriarcal como modelo de poder.

Esse personagem é agora presidente. Chegou ao poder prometendo regeneração, mão dura e uma democracia de balas – o gesto de metralhar todo mundo ao seu redor lhe serviu como branding da campanha eleitoral. As coisas, no entanto, são sempre mais complicadas que alguns gestos pistoleiros e alguns palavrões ressonantes. Antes de completar um mês de mandato, as evidências das alianças de Bolsonaro e sua família com milícias mafiosas estão vindo à luz. Especialmente com ex-participantes do grupo de tarefas especiais chamado BOPE (sua figura pode ser recordada em Tropa de Elite) que dirigem negócios sujos – drogas, operações imobiliárias, etc. – e que, por sua vez, lavam suas tramoias com a invocação de Deus, a família e a santidade redentora do Pai e sua “mão dura”. Mercenários que se colocam a serviço do poder político e econômico. De um desses grupos, muito próximo à família Bolsonaro, saíram, segundo investigações recentes, as balas que executaram nas ruas do Rio de Janeiro, Marielle Franco, a vereadora negra, lésbica e favelada, em março do ano passado. Negócios sujos, milícias no poder, bandos armados até os dentes sob a rubrica do Pai e seus valores, o mercenário mafioso. Disso é feita a “regeneração” prometida por Bolsonaro.

Há uma semana, Jean Wyllys anunciou sua decisão de deixar o Brasil. Agiu assim invocando razões de peso: diante do volume de ameaças que vem recebendo diariamente, há mais de um ano, Wyllys vive com segurança permanente, e só sai de sua casa para cumprir seu trabalho (inclusive, sua última campanha eleitoral foi realizada principalmente on-line). A execução de Marielle Franco, junto ao plano, denunciado em dezembro, de assassinar Marcelo Freixo (líder do partido ao qual pertence Wyllys, o PSOL) dão a pauta do grau de realidade das ameaças que Wyllys recebe. A proteção do Estado – nas mãos de seus inimigos políticos mais acérrimos, tanto em nível nacional como em nível local – oferece poucas garantias: Wyllys sabe que é um objetivo móvel. Por duas razões: porque é a encarnação do que o bolsonarismo odeia – o deputado gay que, além disso, humilhou o “Mito” –, mas também porque a defesa de direitos de setores populares – incluindo a população negra, mulheres, comunidades trans e lgbtq -, especialmente nas periferias, enfrenta diretamente os interesses econômicos e políticos das milícias empoderadas por Bolsonaro. Marielle Franco condensou isto e foi executada em uma rua do Rio. Seu crime segue impune. Outrxs – Wyllys entre elxs – seguem na lista.

Jair Bolsonaro não teve constrangimento em comemorar pelo Twitter o exílio de Wyllys. Há tempo que a pulsão assassina não se dissimula mais; ao contrário, torna-se espetáculo e gestualidade pública. Bolsonaro encarna isso. De qualquer modo, a comemoração não durou muito: David Miranda, também militante gay, é quem sucederá Wyllys na Câmara dos Deputados. “Nos vemos em Brasília”, respondeu Miranda ao tuíte de Bolsonaro.

O exílio de Wyllys fala principalmente de duas coisas. Em primeiro lugar, denuncia uma democracia que começa a ser ocupada, sem nenhum filtro, nem disfarce, por milícias. Uma democracia das balas, digamos, referendada por um governo que dá rédea à posse de armas, supostamente como resposta à reivindicação de segurança. E que faz dessas balas e do porte de armas o símbolo de uma masculinidade que se supõe vir para regenerar um Brasil corrupto. Esse macho armado, esse Pai regenerador, se revela imediatamente (como levou pouco tempo!) o Mafioso e o Mercenário. O que encarna a permissão de matar para atacar indígenas e se apropriar de suas terras, para assegurar seus pactos com uma polícia extremamente corrupta, para perseguir e eliminar faveladxs, tipicamente jovens negros. Essa permissão é o que se verifica como perigo efetivo – além de realidade inabitável – na decisão do exílio.

Porque também se trata de uma democracia armada (alguns inclusive falam de “desdemocratização”), na qual se traça o perfil de seus inimigos mais nítidos, os mais reconhecíveis, aqueles que povoam os sonhos de extermínio do bolsonarismo: os corpos que desafiam as normas de gênero, os que cultivam a autonomia dos prazeres e os afetos, os raros e raras que indisciplinam o corpo para tramar formas da liberdade. Esses são os corpos que são odiados e perseguidos no planeta Bolsonaro: os que cospem na cara do fascista e do macho.

O exílio de Wyllys, assim como o assassinato de Marielle Franco, destacam o ponto de tensão extrema entre as lutas feministas, antirracistas e lgbtq e um patriarcado mercenário que, invocando a regeneração da família e a restauração da autoridade do Pai, abre a porta para a violência de alguns negócios que não reconhecem qualquer limite, nem regulação. É esse patriarca mafioso que se revela na figura de Bolsonaro e em seus filhos abismais; essa é também sua obscenidade. Porque o patriarcado não é somente um conjunto de preconceitos morais e de violências disciplinadoras; é também um conjunto de interesses e de privilégios econômicos, de ambições mesquinhas, de misérias combinadas.

E isto não é um acidente, nem uma exceção: como o bolsonarismo deixa muito claro, está no próprio coração dessa máquina de violência que chamamos patriarcado.

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