A fome de literatura de Carolina Maria de Jesus. Entrevista especial com Jeferson Tenório

O escritor, vencedor do Jabuti de melhor Romance em 2021, analisa a trajetória da escritora e intelectual negra que ultrapassou os limites da literatura

Carolina Maria de Jesus | Foto: Wikimedia Commons

Por: Ricardo Machado | 29 Novembro 2021

 

Mais do que uma escritora, Carolina Maria de Jesus foi uma das mais importantes intelectuais negras da história recente do Brasil. Seu livro Quarto de despejo (São Paulo: Editora Veneta, 2016) vendeu mais de 100 mil cópias ainda na década de 1960, ultrapassando escritores mais conhecidos midiaticamente, como Clarice Lispector e Jorge Amado. Foi o jornalista Audálio Dantas que “descobriu” Carolina de Jesus e foi o responsável pela publicação de seu célebre livro, mas nem por isso está imune a contradições. “O marketing utilizado pelo jornalista pode ter ajudado Carolina a ser celebrada do modo como foi. Por outro lado, a imagem da intelectual negra foi solapada. As interferências, os cortes e a seleção de trechos feitos em Quarto de despejo contribuíram fortemente para que Carolina fosse tratada como um ser exótico”, pondera Jeferson Tenório em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

 

“A fome é certamente uma personagem na obra de Carolina, uma fome amarela, como ela mesma definiu. Mas é uma leitura superficial acharmos que Carolina tinha fome apenas de comida. Carolina tinha uma fome existencial, refletia sobre a vida, sobre o suicídio, sobre comportamentos mediados por uma linguagem lírica e seca”, destaca Jeferson. “Não se sai impune da obra de Carolina. Somos sempre afetados pela crueza e lirismo de suas palavras. As mazelas de Carolina passam a nos habitar. Quarto de despejo somos nós quando a lemos”, complementa.

 

Jeferson Tenório (Foto: Reprodução | Facebook)

 

Jeferson Tenório nasceu no Rio de Janeiro, em 1977. Radicado em Porto Alegre, é mestre em literaturas luso-africanas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutorando em teoria literária pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Seu romance O avesso da pele (São Paulo: Companhia das Letras, 2020) recebeu, nesta semana, o principal galardão literário brasileiro, o Prêmio Jabuti. Seu romance O beijo na parede (Porto Alegre: Sulina, 2013) foi vencedor do Prêmio AGES da Associação Gaúcha de Escritores como Livro do ano em 2014. Publicou também Estela sem Deus (Porto Alegre: Zouk, 2018).

 

A entrevista a seguir foi originalmente publicada na revista IHU On-Line, edição 517, intitulada O Brasil na potência criadora dos negros – O necessário reconhecimento da memória afrodescendente.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Quem foi Carolina Maria de Jesus?

 

Jeferson Tenório – Difícil responder essa pergunta. Carolina é inclassificável. Quanto mais leio a seu respeito, menos certezas tenho de sua personalidade. É o que consigo dizer sobre quem foi ela. Carolina carregou um universo dentro si, portanto é difícil resumi-la numa catadora de papel que decidiu gastar a vida escrevendo. Ela não é só uma semianalfabeta esfomeada. Carolina tinha fome de literatura.


IHU On-Line – Como o texto de uma mulher, negra e pobre conseguiu ter o alcance que teve e ser traduzido para tantos idiomas? Como isso se tornou possível em um país com tantas marcas escravocratas?

 

Jeferson Tenório – Carolina Maria de Jesus é sem dúvida um marco na história da literatura contemporânea brasileira. Para tanto, não se pode desvincular o contexto social, econômico e político da época de sua produção. Estamos no período de JK , o presidente “Bossa nova” e desenvolvimentista. São Paulo inicia seu processo de “higienização” em busca do progresso, ou seja, começa a remoção dos pobres das áreas centrais. Um desses espaços foi o que é hoje o parque do Ibirapuera. Para ter uma ideia, foram desalojadas cerca de 200 famílias em questão de meses. Muitas dessas pessoas foram “despejadas” na recém-formada favela do Canindé, local onde Carolina Maria de Jesus já residia com seus filhos. O livro mais conhecido dela, Quarto de despejo, foi tido, na época, como um retrato fiel da favela, isto é, não foi considerado literatura propriamente dita.

O jornalista Audálio Dantas foi crucial para que Carolina fosse vista não como uma escritora literária, mas como uma escritora que denunciou a miséria da favela. O marketing utilizado pelo Jornalista pode ter ajudado Carolina a ser celebrada do modo como foi. Por outro lado, a imagem da intelectual negra foi solapada. As interferências, os cortes e a seleção de trechos feitos em Quarto de despejo contribuíram fortemente para que Carolina fosse tratada como um ser exótico. Todo o material que Carolina produziu em seus cadernos está dividido entre o Museu Afro Brasil - MAB, em São Paulo, a Biblioteca Nacional - FBN e o Instituto Moreira Salles - IMS, no Rio de Janeiro; o Arquivo Público Municipal Cônego Hermógenes Cassimiro de Araújo Brunswick - APMS, em Sacramento; e o Acervo de Escritores Mineiros - AEM, em Belo Horizonte, em Minas Gerais. Nesses materiais que não estão em Quarto de despejo é possível notar uma outra Carolina: leitora de Sócrates, leitora de poetas do modernismo, irônica, sarcástica, lírica e mais filosófica, além de preciosismos quanto ao uso sofisticado do vocabulário.

Agora, é curioso como as pessoas aqui no Brasil se surpreendem com o fato de uma escritora como Carolina ter surgido. Ora, num país em que mais da metade da população é composta por negros, é de se esperar que em algum momento surjam literaturas como a de Carolina, pelo menos essa é a lógica de quem olha de fora e talvez por isso a obra de Carolina seja tão estudada no exterior. No entanto, o Brasil sempre foi um país racista e que procurou de todas as formas embranquecer-se, e isso, de certo modo, produz esse espanto todo diante de uma figura como Carolina.

 

IHU On-Line –Como ela foi capaz de traduzir a própria vida em literatura?

 

Jeferson Tenório – Carolina tem uma veia machadiana no sentido de ser uma grande observadora da sociedade. A perspicácia dela se traduz numa narrativa atípica dentro da nossa literatura. Pois veja bem, não é fácil lidar como uma obra em que a autora é também a narradora e a personagem. Carolina é uma pedra no meio do caminho da crítica, ela está dentro da tradição literária porque foi leitora dessa mesma tradição (Castro Alves, Casimiro de Abreu, Olavo Bilac), mas parece estar fora do cânone quando pensamos em reconhecimento estético. Além disso, às vezes, a academia não sabe lidar muito bem com uma escritora que se utiliza de material histórico, autobiográfico e ficcional ao mesmo tempo.

 

IHU On-Line – Que Brasil é revelado e construído pelo olhar de Carolina de Jesus?

 

Jeferson Tenório – Olha, eu acho que não há uma revelação da realidade na obra de Carolina, porque seu livro não é um relato etnográfico. Não é um relato fiel da favela. Carolina inventa um lugar porque a realidade é dura demais, entende? O que Carolina faz é literatura e a literatura não tem compromisso com a realidade em si. Agora, é óbvio que a perspectiva de uma mulher negra e pobre recriando um espaço como o da favela é muito mais poderoso. A ótica de Carolina é peculiar e isso a torna uma narrativa singular. Não estou dizendo com isso que as coisas que estão no diário de Carolina são mera invenção, é claro que ela passava fome, é claro que passava dificuldades, mas não foi relato meramente realístico que torna seu texto consistente e belo, mas a sua elaboração estética e ficcional da realidade.

 

IHU On-Line – Como a fome urbana e negra está manifesta nos escritos de Carolina de Jesus?

 

Jeferson Tenório – Essa é uma questão que sempre aparece quando lemos Quarto de despejo. Volto a lembrar que a seleção do texto foi organizada pelo jornalista Audálio, e como se pode perceber, houve uma intencionalidade em selecionar muitos trechos em que Carolina falava da fome. A fome é certamente uma personagem na obra de Carolina, uma fome amarela, como ela mesma definiu. Mas é uma leitura superficial acharmos que Carolina tinha fome apenas de comida. Carolina tinha uma fome existencial, refletia sobre a vida, sobre o suicídio, sobre comportamentos mediados por uma linguagem lírica e seca.

 

IHU On-Line – O que caracteriza a indisciplina de Carolina de Jesus? Como essa indisciplina permitiu que ela se libertasse dos grilhões de seu próprio tempo?

 

Jeferson Tenório – Eu acho que foi justamente esse ímpeto de Carolina em acreditar que a escrita iria salvá-la da miséria, o que de fato aconteceu, pois em questão de meses Carolina vendeu mais livros que Clarice Lispector e Jorge Amado. Carolina não se sentia intimidada com o sucesso, nem em frequentar as altas rodas da sociedade. Não era uma negra acanhada e deslocada como sugeriu o escritor Benjamin Moser recentemente ao se referir a uma foto de Carolina com a Clarice Lispector. Por outro lado, Carolina era indisciplinada porque se recusava a fazer parte de um quarto de despejo. Ela queria construir um lugar ficcional para suportar a vida. E construiu.

 

IHU On-Line – Qual a qualidade literária do texto de Carolina de Jesus? O que a tornou uma das protagonistas da literatura nacional?

 

Jeferson Tenório – Olha, esse critério de qualidade é o que tem causado mais discussão em torno do livro de Carolina. Muitos não reconhecem valor estético em sua obra. Essa postura me parece um misto de preconceito e preguiça intelectual. Veja bem, acho muito complicado você utilizar as mesmas teorias eurocêntricas para avaliar o texto de Carolina. Um exemplo: acho improdutivo avaliarmos o narrador de Quarto de Despejo na perspectiva de teóricos como Walter Benjamin, pois a ideia de experiência e pobreza dos soldados da Primeira Guerra, em Benjamim, é diferente em Quarto de despejo. As coisas não fecham, entende?

Poderia apontar inúmeros aspectos para comprovar sua qualidade, mas o que me parece mais evidente é a sua capacidade de transfigurar a realidade em lirismo, de transformar a fome física em fome metafísica. Além é claro, de toda a preocupação com a construção frasal e com o preciosismo vocabular.

 

IHU On-Line – Apesar da pouca instrução formal de Carolina de Jesus, ela demonstrava uma boa perspicácia ao perceber os mecanismos do preconceito. Como ela construiu sua própria noção de negritude e como era o seu entendimento sobre o racismo no Brasil?

 

Jeferson Tenório – Quando Carolina começou a escrever na década de 1950 sabia-se pouco do movimento da negritude, iniciado em 1935 pelo poeta martinicano Aimé Césaire. Essa falta de organização política em torno da consciência de raça não impediu que Carolina conseguisse perceber o racismo a sua volta. Talvez porque na condição de mulher negra, o racismo se mostrasse mais evidente e violento. E o fato de ela ser sensível à subjetividade fez com que ela ganhasse essa noção com mais rapidez. Em pouco tempo, Carolina compreendeu que a sua cor e o seu gênero chegavam primeiro nas pessoas que a sua imaginação literária. Foi uma consciência permanentemente acossada pela fome e pela violência cotidiana.

 

IHU On-Line – Qual o significado de obras de Carolina de Jesus tornarem-se leitura obrigatória de vestibulares de universidades federais?

 

Jeferson Tenório – Em primeiro lugar creio que a escolha de Carolina para fazer parte da lista de leituras obrigatórias de universidades federais não tenha sido fácil. O jogo de poder nas academias dificulta a entrada de obras como as de Carolina, justamente porque as universidades ainda possuem uma visão conservadora e elitista da literatura. No entanto, creio que as universidades, o contexto e todas as instâncias que movem os vestibulares saem ganhando com isso. Quarto de despejo não é só uma leitura obrigatória, é uma experiência estética, filosófica e social. Não se sai impune da obra de Carolina. Somos sempre afetados pela crueza e lirismo de suas palavras. As mazelas de Carolina passam a nos habitar. Quarto de despejo somos nós quando a lemos.

 

IHU On-Line – Como o protagonismo de Carolina de Jesus e sua produção contribuem para entendermos as contradições do Brasil atual?

 

Jeferson Tenório – Num primeiro momento, Carolina foi vista como uma autora que representava uma coletividade, uma espécie de porta-voz dos pobres e excluídos da favela do Canindé, mas quando nos aprofundamos na leitura, nos damos conta de que Carolina não produziu uma obra para revelar as contradições sociais. No fundo, Carolina não escreve para denunciar a miséria e a fome. Carolina escreve um livro para se salvar. Se há alguma intenção em representar algo, me parece que é a representação de si mesma. Agora, podemos, a partir desse ponto de vista muito particular, vislumbrar alguns aspectos sociais engendrados aí. É possível compreender melhor os caminhos do preconceito e da desigualdade no Brasil, pois a visão mediada pela literatura produz pontos de vista que não poderiam ser alcançados por outra área do conhecimento humano. E essa me parece ser a grande contribuição de Carolina para entender o Brasil e suas contradições.

 

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