O aumento das desigualdades de renda acirra ainda mais o conflito social. Entrevista especial com Marcelo Gomes Ribeiro

Os dados sobre a diminuição da renda das famílias nas regiões metropolitanas brasileiras revelam que o problema das desigualdades nessas áreas só piorou, diz o pesquisador

Foto: Gse Silva/DiCampana Foto Coletiva - Agência Pública

Por: Patricia Fachin | 09 Novembro 2020

A queda da renda das famílias nas regiões metropolitanas de todo o país neste ano, em função dos efeitos da crise pandêmica, tem como consequência não só o aumento das desigualdades sociais, mas pode "acirrar ainda mais o conflito social existente na sociedade”. Isso porque “as pessoas e os grupos sociais, na perspectiva de manterem suas condições de vida, quando essas são adequadas, ou para alcançar patamares adequados de condições de vida, quando essas condições são insuficientes, reforçam a competividade entre eles, levando ao rompimento dos laços de integração social", alerta Marcelo Gomes Ribeiro, pesquisador do Observatório das Metrópoles do Rio de Janeiro, à IHU On-Line.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele comenta os dados do primeiro boletim “Desigualdade nas Metrópoles” e chama atenção para os riscos do rompimento dos laços sociais. Essa possibilidade, menciona, "pode tornar ainda mais frágil a própria democracia e, portanto, a nossa integração como uma comunidade política".

 

Segundo Ribeiro, o atual momento social do Brasil "se assemelha com o final da década de 1980, quando houve aumento das desigualdades de renda no Brasil, num quadro econômico e social em que quase todos os segmentos populacionais perdiam renda". Diante deste cenário, em que a ausência de proteção social predomina, transformações estruturais estão em curso e o mercado de trabalho não terá condições de absorver as pessoas, ele defende a instituição de uma renda básica universal. “Quando observamos que estamos diante de um quadro de profundas transformações estruturais na economia e na geopolítica, que atingem diretamente parcela expressiva da força de trabalho brasileira, e que essa força de trabalho se torna ainda mais frágil quando as mudanças institucionais lhe retiram direitos e poder de barganha, constatamos que numa sociedade rica como a brasileira, mas que sempre conviveu com uma grande parcela da população em condição de pobreza, o aumento da pobreza poderá ser ainda maior. E esse aumento se dará numa situação de um mercado de trabalho incapaz de absorver a mão de obra existente. Num quadro como esse, a discussão sobre a renda universal é fundamental. É fundamental não apenas para a população que será diretamente beneficiada com a renda transferida, mas para toda a sociedade, para a nossa capacidade de nos manter socialmente integrados”, justifica.

 

Marcelo Ribeiro (Foto: Arquivo pessoal)

Marcelo Gomes Ribeiro é graduado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás - PUC-Goiás, mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás - UFG e doutor em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Atualmente, leciona no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - IPPUR, da UFRJ, e é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Observatório das Metrópoles - INCT-OM.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Os dados do primeiro boletim “Desigualdade nas Metrópoles” indicam que a desigualdade de renda aumentou nas metrópoles brasileiras. Qual é a situação hoje em comparação com o ano anterior?

Marcelo Gomes Ribeiro - O conjunto das metrópoles brasileiras já apresentava um patamar muito elevado nas desigualdades de renda per capita do trabalho no ano anterior e hoje essas desigualdades se elevaram ainda mais. No segundo trimestre de 2019, nós registramos que o Gini, indicador sintético utilizado para mensurar a distribuição de renda, foi de 0,610 na média das metrópoles. No segundo trimestre de 2020, o Gini registrado foi de 0,640.

Essa elevação do Gini demonstra que houve um aumento muito substantivo nas desigualdades de renda que estamos mensurando. Só para ter uma ideia, o Gini do segundo trimestre de 2018 foi de 0,608. Nós já vínhamos de uma trajetória de aumento das desigualdades, mas essa elevação se dava em proporções muito reduzidas, aumentando de 0,608 para 0,610, como ocorreu entre o segundo trimestre de 2018 e o segundo trimestre de 2019. Porém, no último ano o aumento do Gini foi muito abrupto, passando de 0,610 para 0,640. É evidente, portanto, que a trajetória de aumento das desigualdades se intensificou devido à pandemia da covid-19.

 

 

IHU On-Line - Segundo os dados do boletim, na média das 22 regiões metropolitanas, os 40% mais pobres perderam 32,1% da renda, os 50% intermediários perderam 5,6% e os 10% mais ricos perderam 3,2%. Em que regiões as perdas de renda foram maiores, em quais foram menores e em quais regiões os ricos ficaram ainda mais ricos? Além disso, como o senhor interpreta esses dados?

Marcelo Gomes Ribeiro - De modo geral, o conjunto das regiões metropolitanas apresentou perda da média da renda. Porém, essa perda foi muito maior para o segmento da população de menor rendimento. Como você mesmo destacou, os 10% da população de maior rendimento perderam somente 3,2% do seu rendimento médio no segundo trimestre de 2020 em comparação com o segundo trimestre de 2019. Porém, os 40% da população de menor renda apresentaram perda de 32,1%. Podemos considerar que o aumento das desigualdades de renda se deu numa situação em que todos os segmentos perderam, porém o segmento de menor renda da população, em que grande parcela já era pobre, se empobreceu ainda mais. Esse é o pior dos cenários de aumento das desigualdades, quando todos perdem e as distâncias entre os diferentes grupos sociais se ampliam.

No entanto, as variações de renda entre os diferentes segmentos populacionais se deram de modos distintos entre as diferentes regiões metropolitanas do Brasil. Podemos destacar, por exemplo, o caso da região metropolitana de Salvador, onde os 40% da população de menor renda tiveram perda de 57,4%, ou das regiões metropolitanas de João Pessoa e Rio de Janeiro, onde essas perdas se deram próximas de 50% do rendimento médio, ou seja, caindo praticamente pela metade seu nível de renda.

Algumas regiões metropolitanas, contudo, apresentaram aumento das desigualdades de renda devido à redução da renda média do segmento correspondente aos 40% de menor renda e, ao mesmo tempo, devido ao aumento da renda média do segmento de maior renda, correspondente aos 10% da população do topo da distribuição de renda. Esses são os casos da região metropolitana de Florianópolis, onde os 10% do topo aumentaram sua renda em 24,2%; de Manaus, com aumento de 19,9%; de Belém, com aumento de 13,1%; do Rio de Janeiro, com aumento de 8,7%; da região metropolitana de Goiânia, com aumento de 8,4%; além da Grande São Luís, de Natal, de João Pessoa e de Curitiba. Isto significa que agravou o quadro de desigualdades de renda de modo muito crível nessas regiões metropolitanas do país.

 

 

IHU On-Line - Esses dados indicam que voltamos a que patamar da história brasileira em relação à renda?

Marcelo Gomes Ribeiro - Apesar de diferenças metodológicas quanto às bases de dados utilizadas e à abrangência geográfica considerada, que em nosso estudo compreende o conjunto de vinte regiões metropolitanas do país, a região administrativa da Ride [Região Integrada de Desenvolvimento] de Teresina e o Distrito Federal, podemos considerar que o momento atual se assemelha com o final da década de 1980, quando houve aumento das desigualdades de renda no Brasil, num quadro econômico e social em que quase todos os segmentos populacionais perdiam renda. Para se ter uma ideia, do registro de desigualdades de renda existente desde 1976, num país que sempre foi caracterizado pela sua elevada desigualdade de renda, o patamar mais elevado ocorreu em 1989, quando o Gini foi de 0,636. O Gini que registramos no Boletim para a média do conjunto dos espaços citados foi de 0,640. Portanto, apesar da semelhança, hoje a desigualdade é ainda mais elevada, num quadro em que quem mais perde são as pessoas que possuem pouca renda.

Como já evidenciamos, esse patamar atingido pelo Gini de 0,640 foi muito influenciado pela situação da pandemia que estamos vivenciando neste ano de 2020. Porém, nós já vínhamos de uma trajetória de aumento das desigualdades de renda desde o terceiro trimestre de 2015, quando passamos a observar de modo muito intenso a crise econômica que já estava instalada no país, a qual perdura até hoje, e sua consequência social, como o aumento da taxa de desocupação do mercado de trabalho. Neste sentido, essa trajetória de aumento das desigualdades também se assemelha com o final da década de 1980, quando o nível das desigualdades de renda aumentou desde 1986, num contexto de crises econômica e social. Porém, os motivos das crises econômicas entre um período e outro são diferentes, apesar de os seus efeitos sociais serem muito semelhantes: aumento do desemprego, aumento das desigualdades e perda do poder aquisitivo, principalmente para a população de menor renda.

 

IHU On-Line - Quais foram os fatores que mais contribuíram para a redução da renda das famílias durante a pandemia?

Marcelo Gomes Ribeiro - A pandemia da covid-19 exigiu que fosse realizado o isolamento social para assegurar que as pessoas que contraíssem o vírus e desenvolvessem a doença pudessem ter acesso ao sistema de saúde, portanto numa perspectiva de que esse sistema não viesse a saturar numa situação de elevada disseminação do vírus pela população. Porém, a situação de isolamento social se configurou de modo distinto para a população brasileira. Para as pessoas que estavam em ocupações cujas tarefas poderiam ser transferidas para suas casas, foi possível manter seus empregos por meio de atividades chamadas de home office, realizadas em casa. Normalmente essas ocupações se caracterizam pela autonomia que seus ocupantes possuem na realização de suas tarefas, por serem realizadas por meio de microcomputador ou notebook com acesso à internet, por serem ocupações protegidas socialmente e, em geral, aquelas de maior remuneração. As pessoas que estavam nesse tipo de ocupação não foram tão afetadas pela perda de emprego ou por redução de seus rendimentos.

Porém, grande parte da população brasileira encontrava-se na informalidade no mercado de trabalho. Isso significa que o estabelecimento do isolamento social devido à pandemia exigiu que elas abandonassem as suas ocupações e esse abandono resultava em perda direta de renda. Esse segmento da população foi o mais atingido pela pandemia. O que preocupa na nossa realidade é que normalmente essas ocupações informais do mercado de trabalho correspondem àquelas de menor remuneração, portanto atingindo as pessoas de menor de renda.

Além disso, houve a situação de pessoas que perderam renda decorrente de acordos feitos com seus empregadores para a manutenção dos seus empregos. Isso foi uma medida apresentada pelo governo e autorizada pelo Congresso Nacional, configurando como uma das políticas de exceção desse momento de emergência sanitária que estamos passando. É evidente que essas negociações se deram, principalmente, naqueles tipos de ocupações que se apresentam como mais competitivas, em que não há muitas exigências em termos de habilidades para serem exercidas e, ao mesmo tempo, há muitas pessoas que podem realizá-las.

Poderíamos concluir, portanto, que o principal fator que mais contribuiu para a redução da renda da população trabalhadora foi a ausência de proteção social (direitos trabalhistas assegurados). As pessoas que estavam em ocupações mais protegidas conseguiram manter ou negociar seu nível de renda durante a pandemia. Porém, a ausência de proteção social impossibilitou aquelas pessoas que se encontram nessa situação de assegurar o seu nível de renda.

 

 

IHU On-Line - Quais são as consequências do aumento das desigualdades num país como o Brasil?

Marcelo Gomes Ribeiro - O Brasil é um país rico, mas sempre foi considerado um dos países mais desiguais do mundo. Essa situação de desigualdades sempre foi de convivência com uma situação em que boa parte da população se encontrava na condição de pobreza. Isso significa que em um país rico, desigual e em que parte de sua população é pobre, uma parcela pequena da população sempre se apropriou de grande parte da massa de renda da sociedade. Apesar da redução das desigualdades de renda do trabalho e da pobreza ocorridas de meados da primeira década até começo da segunda década do século XXI, desde 2015 observamos a reversão desse processo quando as desigualdades passaram a se elevar novamente e a taxa de pobreza do país voltou a crescer. O aumento muito elevado das desigualdades de renda do trabalho numa situação como a que estamos atravessando de crise econômica só torna ainda mais dramática a possibilidade de superação da pobreza para aquela parcela da população que se encontra nessas condições, porque não temos um mercado de trabalho capaz de incorporar boa parte da mão de obra disponível. A escassez de emprego resulta em um contingente de pessoas sem acesso à renda e tem como consequência sua incapacidade de sobrevivência.

Além disso, o aumento das desigualdades de renda acirra ainda mais o conflito social existente na sociedade, em que as pessoas e os grupos sociais, na perspectiva de manterem suas condições de vida, quando essas são adequadas, ou para alcançar patamares adequados de condições de vida, quando essas condições são insuficientes, reforçam a competividade entre eles, levando ao rompimento dos laços de integração social. O conflito social assentado num quadro de elevada desigualdade, por ser passível de romper os laços que permitem a integração social, pode tornar ainda mais frágil a própria democracia e, portanto, a nossa integração como uma comunidade política.

 

IHU On-Line - Como o senhor avalia a política de redução de jornada e de salário, sancionada pelo presidente e, de outro lado, o auxílio emergencial concedido?

Marcelo Gomes Ribeiro - Essas foram políticas muito importantes, porém precisamos aprofundar a perspectiva de cada uma de modo separado. A política de redução da jornada de trabalho e de salário teve a perspectiva de manutenção dos negócios, principalmente das micros, pequenas e médias empresas. Nós sabemos que empresas desse porte no Brasil têm no dia a dia muitas dificuldades de manutenção de suas atividades e que são empresas que o peso da contratação de mão de obra acaba sendo muito elevado devido ao seu próprio porte empresarial. Neste sentido, essa política possibilitou que não houvesse uma quebradeira ainda maior nas atividades econômicas no país. No entanto, isso ocorreu à custa do sacrifício da parte mais frágil, que são os trabalhadores. Mesmo assim, os empresários desse porte de empresas também tiveram perdas e essas perdas poderiam ser ainda maiores se essa política não fosse implantada. Porém, analisando esse processo dessa forma, fica parecendo que estamos colocando em oposição esses empresários e os seus empregados. Na verdade, especialmente os micros e pequenos empresários no Brasil são tão trabalhadores quanto os seus empregados, mesmo que pela posição de empresário acabam incorporando o ethos capitalista no seu modo de atuação e no modo de ser. Mas quando percebemos que eles são muito mais trabalhadores que capitalistas começamos a nos questionar se, de fato, eles estão em lados tão opostos assim. E, com isso, começamos a questionar a própria política implementada que contribuiu também para acirrar os conflitos entre eles.

Esse aspecto é importante de ser refletido, porque muita gente acaba incorrendo no erro de dizer que não haveria outra solução, de que se não houvesse a redução da jornada de trabalho com perda salarial não seria possível salvar o emprego e a empresa. Baseado nisso esquecemos de considerar que o Estado central teria condições de socorrer essas empresas, mantendo emprego e salário. E isso seria possível porque o Estado central pode gastar mais do que arrecada. As restrições jurídicas que o impediam foram relaxadas nesse contexto de pandemia. Portanto, o Estado central poderia e pode socorrer as empresas com a manutenção dos empregos e dos salários. Uma política como essa ainda contribuiria para manutenção do nível de atividade econômica ou para uma queda do PIB em patamares muito menores do que tem sido apresentado.

O auxílio emergencial foi uma política muito adequada nessa situação de pandemia. O modo como ela foi inicialmente elaborada e como ela foi de fato estabelecida nos mostra que é possível o Estado central realizar mais gastos do que arrecada. Inicialmente por pressão da sociedade o governo federal foi constrangido a apresentar uma proposta de auxílio para a população de menor renda, considerando inclusive aquelas que sobrevivem da informalidade no mercado de trabalho, porém o valor apresentado foi de R$ 200,00. O Congresso Nacional, todavia, conseguiu elevar o valor desse auxílio e, ao final, ficou estabelecido o valor de R$ 600,00 com aval do próprio governo, bastando para isso o relaxamento das restrições jurídicas que impediam a elevação do gasto social no Brasil.

Os resultados que apresentamos nas desigualdades de renda do trabalho seriam muito mais alarmantes socialmente se não houvesse esse auxílio emergencial. Na verdade, os resultados que apresentamos demonstram o quanto o auxílio emergencial foi fundamental para preservação da vida de muitos brasileiros, especialmente num momento em que o mercado de trabalho se encontrava fechado para absorver um grande contingente que ficou sem ocupação. A possibilidade de implantação desse auxílio emergencial contribuiu para expor um debate que tinha muita dificuldade de vir a público, sobre a importância e a necessidade de pensarmos numa renda mínima ou renda universal, compreendendo a situação de grande vulnerabilidade social de parte expressiva da nossa população.

 

 

IHU On-Line - Além da renda, quais foram os outros indicadores sociais que pioraram em função dos efeitos da crise pandêmica?

Marcelo Gomes Ribeiro - O IBGE divulgou recentemente o aumento da taxa de desocupação (taxa de desemprego), que chegou ao patamar de 14,4% no trimestre de junho a agosto de 2020, correspondendo a 13,8 milhões de pessoas desempregadas no país. Essa taxa era de 11,8% no mesmo período do ano passado e naquele momento correspondia a 12,7 milhões de pessoas desempregadas. Essa taxa já era elevada no ano passado e se tornou ainda mais neste ano.

Além da taxa de desocupação, o IBGE também divulgou dados referentes à população em situação de subutilização, que saltou de 24,3%, no período de junho a agosto de 2019, para 30,6% no mesmo período de 2020. Isso significa que essa proporção passou a corresponder a mais de 33 milhões de pessoas. Ou seja, além dos desocupados aumentou também parcela da população que poderia trabalhar mais horas e não consegue, parcela da população que constituiu a situação de desalento, quando desiste de procurar trabalho por não encontrar, e parcela da população que precisa trabalhar, mas não consegue procurar. É um contingente muito grande de pessoas em situações muito frágeis no mercado de trabalho; e nesses dados não foram incorporadas as pessoas que possuem vínculo informal. Isso significa que o quadro social no nosso mercado de trabalho é ainda mais dramático.

 

 

IHU On-Line - Como analisa os dados do boletim à luz do futuro, pensando num cenário pós-pandemia?

Marcelo Gomes Ribeiro - O quadro de desigualdades na nossa sociedade sempre foi muito elevado em comparação com os padrões internacionais. Como já dissemos, além de elevado, esse quadro estava se intensificando ainda mais desde 2015 e deu um salto muito grande entre o primeiro e o segundo trimestre de 2020. Esses dados revelam que o problema das desigualdades nas áreas metropolitanas do país só piorou. Houve a piora de um fenômeno que já se apresentava como um grande problema social e, portanto, como um grande problema do país. Podemos pensar em políticas que sejam capazes de reverter o que foi provocado pela pandemia; mas políticas pensadas nessa perspectiva diminuirão o profundo drama social existente hoje nas nossas metrópoles, porém ainda em um patamar de elevada desigualdade, como era antes da pandemia. Ou podemos como sociedade enfrentar esse problema e tentar reverter o quadro de desigualdades existentes no país, permitindo que toda a população tenha acesso à parcela da riqueza social produzida no país em condições adequadas de reprodução social.

Enfrentar essa questão requer o estabelecimento de mudanças estruturais na nossa sociedade e na nossa economia, que atinjam os interesses dos grupos sociais que mais se apropriam de grande parcela da massa de rendimento produzida no país. Isso significa enfrentar os interesses de grandes corporações empresariais, de grandes corporações midiáticas, do agronegócio, dos rentistas deste país. Como não vejo isso acontecendo no futuro próximo, infelizmente penso que ainda vamos conviver por muito tempo com um quadro de elevada desigualdade e suas consequências, tanto referentes ao rompimento dos laços de integração social quanto os relativos à fragilização do próprio pacto societário que nos conforma como sociedade política.

 

 

IHU On-Line - Em função dos efeitos da pandemia, voltou à tona o debate sobre a implementação de uma renda universal incondicional. Como o senhor vê esse tipo de proposta e o modo como a renda básica tem sido discutida no país?

Marcelo Gomes Ribeiro - Existem algumas condições básicas para que possamos nos manter de modo integrado como sociedade e uma dessas condições é aquela que requer que a riqueza social, que é coletiva, seja distribuída de modo adequado entre os seus membros. Quando a distribuição da riqueza social é muito desigual entre os membros da sociedade, isso pode ser o estopim para que o conflito social se transforme em revolta, e revolta de consequências inesperadas.

Nós estamos num momento na economia mundial em que as transformações que têm ocorrido vêm provocando efeito muito direto no mundo do trabalho, e o mercado de trabalho brasileiro não fica imune a esses efeitos. Essas transformações têm se dado sob diferentes mecanismos: a transferência do emprego da indústria manufatureira do Ocidente para o Oriente, o novo padrão industrial denominado de Indústria 4.0, as novas tecnologias que têm impactado mudanças no modo de execução do trabalho e, por conseguinte, nas próprias relações de trabalho, caracterizado pelo que tem sido chamado de plataformização do trabalho ou de uberização, entre outros fatores de transformações estruturais da economia e do mercado de trabalho.

Além desses fatores que provocam mudanças estruturais, outros fatores têm recaído sobre transformações institucionais que afetam diretamente as relações de trabalho, como foi no país em 2017 a reforma trabalhista e em 2019 a reforma da previdência. Todas essas reformas foram orientadas no sentido de diminuir a proteção social dos trabalhadores, numa perspectiva de redução dos custos que isso representa para a empresa, provocando maior fragilidade ocupacional para os trabalhadores e menor poder de barganha frente aos empregadores, principalmente porque a reforma trabalhista fragilizou ainda mais os sindicatos.

Quando observamos que estamos diante de um quadro de profundas transformações estruturais na economia e na geopolítica, que atingem diretamente parcela expressiva da força de trabalho brasileira, e que essa força de trabalho se torna ainda mais frágil quando as mudanças institucionais lhe retiram direitos e poder de barganha, constatamos que numa sociedade rica como a brasileira, mas que sempre conviveu com uma grande parcela da população em condição de pobreza, o aumento da pobreza poderá ser ainda maior. E esse aumento se dará numa situação de um mercado de trabalho incapaz de absorver a mão de obra existente. Num quadro como esse, a discussão sobre a renda universal é fundamental. É fundamental não apenas para a população que será diretamente beneficiada com a renda transferida, mas para toda a sociedade, para a nossa capacidade de nos manter socialmente integrados.

 

 

IHU On-Line - Que políticas poderiam ser implementadas pelo Estado para reverter esse cenário no próximo ano?

Marcelo Gomes Ribeiro - O Estado precisará ser muito mais ativo na economia. Ativo no sentido de realizar políticas que permitam o restabelecimento da demanda efetiva. Sabemos que ficar dependente da demanda externa implica numa situação de muita vulnerabilidade econômica, porque não temos controle sobre os gastos de exportação. Sabemos também que a empresa privada só realiza investimentos quando ela tem expectativas de rentabilidade futura, e a criação de expectativas de rentabilidade futura depende das observações da economia que são feitas no presente.

Não é necessário aprofundar sobre esse tema para poder dizer que essas condições econômicas do presente não são favoráveis para estimular as empresas privadas a realizarem gastos, tendo em vista o grande risco econômico em que elas poderão incorrer. Os gastos dos consumidores tenderão a ser reduzidos tanto em decorrência das condições do mercado de trabalho referente à alta taxa de desocupação e à redução do rendimento da população, principalmente aquela de menor renda que é a que mais gasta proporcionalmente sua renda em consumo, quanto também do término do auxílio emergencial que está prometido para ser encerrado no mês de dezembro. Diante dessa situação, não há outra alternativa do ponto de vista da demanda agregada da economia para o restabelecimento da demanda efetiva que não seja o aumento dos gastos do governo. O aumento dos gastos que possibilite o aumento do consumo e o aumento dos gastos que reverta as expectativas dos empresários são fundamentais para o restabelecimento da demanda efetiva e, por conseguinte, para o restabelecimento do crescimento econômico, do emprego e da renda, principalmente da população de menor renda.

 

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