Teresa de Ávila. Exemplo de expansão da consciência feminina e feminista. Por isto é profética. Entrevista especial com Lúcia Pedrosa-Pádua

Na semana em que se lembra a memória de Teresa de Ávila, IHU recupera a entrevista com teóloga Lúcia Pedrosa-Pádua, que explica como a religiosa desenvolveu uma espiritualidade baseada na exploração do espaço interior

Teresa de Ávila | Foto: Luis Yael

Por: Márcia Junges e João Vitor Santos | 15 Outubro 2021

 

Hoje 15 de outubro, a Igreja fez memória à Teresa de Ávila, também conhecida como Santa Teresa de Jesus. Nascida em Ávila, na Espanha, em 1515, morreu em 1582. Sua vida é marcada por intensa espiritualidade mística. Todo esse exercício contemplativo ainda se alia a reforma da Ordem Carmelita. Doutora da Igreja, seus textos revelam a constante busca interior e encontro com o Deus que se faz humano através de Jesus Cristo. E nesses tempos de pandemia, temos sido levados ao isolamento e certa reclusão. Talvez, a experiência mística de Teresa de Jesus, aquela que no rigor do isolamento do carmelo encontrou a liberdade interior possa nos inspirar nesses tempos.

 

Assim, o IHU recupera uma das entrevistas publicadas na revista IHU On-Line Nº 460, de dezembro de 2014, intitulada A mística nupcial. Teresa de Ávila e Thomas Merton, dois centenários, que aborda justamente essa liberdade experimentada por Teresa.

 

Nessa entrevista, a teóloga, professora e pesquisadora Lúcia Pedrosa-Pádua enfatiza que “a experiência teresiana sempre será instigante porque é uma grande janela através da qual vislumbramos as possibilidades humanas em sua comunicação com Deus”. “Resumindo, vai-se formando um movimento que busca uma espiritualidade subjetiva e vital, que sustenta e é sustentado por iniciativas concretas das ordens religiosas, por livros que descrevem experiências pessoais e propõem sérios caminhos de oração, por uma teologia que utiliza novos conceitos”, explica a entrevistada.

 

Desobediente e instigante, Teresa de Ávila desconheceu o lugar que se esperava que as mulheres ocupassem à sua época. “Na grande janela das obras de Santa Teresa, vemos variedade de experiências de oração, rica fenomenologia, defesas teológicas, efeitos éticos da oração que atingem ora níveis mais externos, ora níveis mais profundos. É um manancial tão grande que é possível reler seus livros — doutrinais e históricos — uma e outra vez, sempre descobrindo coisas novas e fazendo novas leituras com as novas gerações”, argumenta Lúcia. “Teresa aprendeu a ter esperança sem amordaçar as pessoas em julgamentos e exigências”, frisa.

 

Lúcia Pedrosa-Pádua (Foto: PUC-Rio)

 

Lúcia Pedrosa-Pádua é professora de Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Graduou-se em Teologia pela FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, e doutorou-se pela PUC-Rio. É bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Estudou no Centro Internacional de Estudos Teresianos e São Joanistas de Ávila (Espanha) e fez estudos de pós-doutorado na Pontifícia Universidade Gregoriana – PUG, em Roma, Itália. É organizadora, com Mônica Baptista Campos, do livro Santa Teresa: mística para o nosso tempo (PUC-Rio/Reflexão, 2011). Dentre suas outras obras, destacamos O humano e o fenômeno religioso (Ed. PUC-Rio, 2010), Juventude, Religião e Ética: reflexões teológico-práticas sobre a pesquisa “Perfil da Juventude na PUC-Rio” – org. (Ed. PUC-Rio, 2010). É professora responsável pelo Grupo Moradas de Estudos Místicos (PUC-Rio) e membro do Círculo do Rio e da Comissão Assessora Permanente do Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB.

Lúcia Pedrosa-Pádua é autora do livro Santa Teresa de Jesus. Mística e humanização, publicado por Edições Paulinas. "Ali traço um longo itinerário da integração entre corpo, mente e espírito realizada por Teresa - explica a autora. Isto é fundamental para a verdadeira humanização, e Teresa o realizou num ambiente fortemente dualista. Isto mostra a força integradora da mística"

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como podemos recuperar o pensamento de Santa Teresa, atualmente, no V centenário de nascimento de Santa Teresa?

Lúcia Pedrosa-Pádua - Diria que Teresa de Ávila foi uma mulher capaz de permanecer viva e influente na história por cinco séculos. Isto já é muita coisa. Numa sociedade em que as relações tendem a ser mais superficiais e pragmáticas, constatamos que Teresa é uma “celebridade” com longa sobrevivência. Em outubro de 2015, comemoram-se quinhentos anos de seu nascimento. Sua herança é forte e consistente, suas obras nunca deixaram de ser traduzidas nestes séculos em dezenas de idiomas e sua leitura segue sendo inspiradora e sedutora. De fato, o tempo foi amigo de Teresa. Ao longo deste tempo, a admiração por esta mulher se universalizou e adquiriu importância inter-religiosa, podemos dizer, se inter-religionalizou.

Do ponto de vista eclesial, Papa Francisco abriu o Ano Jubilar Teresiano. Em sua Carta ao Bispo de Ávila, Francisco valorizou Teresa em seu dinamismo. Convidou cada cristão a “aprender a ser peregrino na escola da santa andarilha” e, com Santa Teresa, percorrer os caminhos do nosso tempo. Hoje, pode ser símbolo de uma Igreja convocada a ser Igreja “em saída”, missionária, destemida, humilde e que se põe a serviço das necessidades dos irmãos, superando a autorreferência.

 

IHU On-Line - Quem foi a figura histórica de Teresa de Ávila? Poderia relacionar sua trajetória com o “século de ouro espanhol”, no qual ela viveu?

Lúcia Pedrosa-Pádua - Teresa não é a-histórica. Nem sua vida interior pode ser desvinculada da história. Ela é filha de seu tempo. Um tempo que oferecia sonhos, embora os caminhos não fossem nada democráticos. É tempo de uma Espanha poderosa, em termos econômicos e políticos, que é unificada e se insere na Europa, vence guerras, expande-se através da conquista da América — as Índias. Surgem manifestações culturais extraordinárias, especialmente de caráter filosófico e literário. Mas, na mesma proporção, foi um século também de sombras para os que não eram “fidalgos”, para as mulheres, para os pobres, para os habitantes das “Índias”, para a Igreja, com seus procedimentos inquisitoriais e, mais tarde, com a disciplinarização decorrente do Concílio de Trento. Tempo incerto, com fissuras na cristandade provocada pela reforma de Lutero e muitos movimentos espirituais conflitantes. Para Teresa, com seu excepcional sentido de realidade esperançada, eram tempos “recios”, difíceis. O mundo que ela percebia “ardia em fogo”, como define no seu Caminho de Perfeição. Por isso eram necessários “amigos fortes de Deus para sustentar os fracos”. Evidentemente, Teresa se considerava no grupo dos fortes.

 

IHU On-Line - Como compreender o florescimento da mística nesse tempo em que viveu Teresa e também Inácio de Loyola , Lutero e Erasmo de Roterdã?

Lúcia Pedrosa-Pádua - De fato, houve, desde fins do século XV até a primeira metade do século XVI, duas dinâmicas importantes que se reforçaram. Por um lado, uma busca de Deus. Por outro, um ambiente de reforma espiritual. Ambas caracterizaram não apenas a Espanha, mas outros países europeus.

 

 

Aflorou e se desenvolveu uma poderosa espiritualidade que buscou explorar o espaço interior como porta de entrada da experiência de Deus. Não que a interioridade fosse isolada de outros aspectos, como o litúrgico, o ético, o estético e o interpessoal, ao contrário, a verdadeira mística integra todos estes espaços, o místico encontra Deus em tudo. Mas, naquele momento, havia um cansaço da espiritualidade baseada em atos exteriores, orações vocais estereotipadas, devoções... Houve uma verdadeira migração em direção ao centro do humano para encontrar-se com sinceridade com Deus e sua Palavra. Uma espiritualidade em espírito e verdade, que oferecesse o consolo da união com Deus e do perdão, a valorização do amor e do dom da sabedoria. Derivados desta busca de interioridade, encontramos o cultivo da oração e o forte impulso às altas esferas da vida mística. Essa tensão em direção à interioridade é característica também de Lutero e de Erasmo de Roterdã. Busca-se a vivência pessoal de Deus. Apesar das diferenças, é possível encontrar este encontro entre eles e Teresa.

E o ambiente de reformas? Ele foi vigoroso na primeira metade do século. Envolvia iniciativas importantes da Igreja oficial, das ordens religiosas, de intelectuais nas Universidades e da imprensa, que teve neste tempo enorme desenvolvimento, e mesmo dos reis, pois a reforma da Igreja fazia parte de uma política de fortalecimento e unificação espanhola. Havia assim um movimento reformista sustentado por vários pilares.

As ordens religiosas observantes, em especial a franciscana, a beneditina e a dominicana, são o lugar concreto a partir do qual esta reforma se realiza. Nestas ordens, acentua-se a comunicação religiosa com Deus, principalmente interior, o valor da pobreza e da austeridade é fortalecido, criticam-se os desvios. Neste ambiente surge o grande movimento renovador que significou a Companhia de Jesus, com Inácio de Loyola (+1556).

Mas o decisivo é que a reforma é destinada a todos, não apenas às ordens religiosas. Atinge nobres e o povo simples. Eremitérios, casas de oração e de retiro são erguidos. Surgem métodos oracionais para todos os cristãos que o desejem. Caminhos de oração são claramente formulados, as obras de Santo Inácio de Loyola são seguidas pelas obras do grupo franciscano de Francisco de Osuna, Bernabé de Palma e Bernardino de Laredo, estes últimos muito importantes para Teresa de Jesus.

 

As Universidades, por sua vez, empreendem um esforço de renovação do método do ensino teológico em importantes centros, como Salamanca, Valencia e Alcalá. Isto é muito importante, pois a teologia nestas Universidades buscaram ser não escolasticistas, buscaram novos recursos filológicos e históricos. Em Alcalá, por exemplo, é promovida a primeira edição da Bíblia Poliglota, evidentemente com vida curta depois de Trento.

Livros de espiritualidade importantes são editados, através de uma imprensa que se desenvolve de forma impressionante. Para termos uma ideia, de 1530 a 1559 são editados, nas gráficas castelhanas, mais de 198 títulos de livros de espiritualidade! Nestes livros, o tema da experiência do mistério de Deus vivo é comum, assim os leitores passam a ter estes livros como ajuda na oração e, mais importante, meios para saciar suas buscas espirituais. A jovem Teresa recebeu de seu tio, numa pequena cidade no interior de Castela, o livro Terceiro Abecedário (Brasília: Editora FFB, 2010), de Francisco de Osuña que, como sabemos pela sua própria vida, foi determinante para sua oração.

Resumindo, vai-se formando um movimento que busca uma espiritualidade subjetiva e vital, que sustenta e é sustentado por iniciativas concretas das ordens religiosas, por livros que descrevem experiências pessoais e propõem sérios caminhos de oração, por uma teologia que utiliza novos conceitos. Bem diferente de uma espiritualidade objetiva, baseada em obras externas, na oração vocal e fixada em livros edificados sobre a autoridade.

Esta nova espiritualidade caminha na fronteira entre o ortodoxo e o heterodoxo. Dele participam correntes da oração de recolhimento (como Santa Teresa), protestantes, erasmistas e iluministas (estes últimos chamados pejorativamente de “alumbrados”). Esta multiplicidade de correntes gerará muitas tensões e conflitos, envolvendo o grupo dos teólogos e as atividades inquisitoriais.

Na primeira metade do século, houve um movimento que tendia à harmonia entre os espirituais e os teólogos. Mas o segundo momento é bem diferente. Entra novo rei (Felipe II , 1557); é promulgado o Índice (1559) e o Concílio de Trento é finalizado (1563), trazendo várias medidas disciplinares e declarações dogmáticas frente aos luteranos. Surge o antagonismo entre teólogos e espirituais e a posição inquisitorial será em desfavor destes últimos. Inicia-se outra etapa na teologia e espiritualidade do século XVI.

Vejam que curioso: a vida de Santa Teresa inicia na primeira metade do século, em 1515, e vai até 1582. Ela se alimenta, em sua juventude, de uma abertura e mesmo incentivo oficial à oração pessoal, vigentes. Por outro lado, a redação dos livros, as fundações e a edição de sua obra acontecem quando o boom editorial vive seu ocaso e se fortalece um movimento antimístico. Isto concede à pessoa e às obras de Santa Teresa um caráter profético e audaz.

Tudo isto me faz refletir sobre a importância de se discernir os “sinais dos tempos” que devem ser apoiados e suportados, no sentido de dar suporte. A “busca de Deus” foi, em um primeiro momento, articulada com locais de acompanhamento da oração, livros, teologia e iniciativas eclesiais. Juntos, movimento espontâneo e reforma, ajudaram a germinar vidas admiráveis que projetaram beleza e luz até os dias de hoje.

 

IHU On-Line - Como os poderes eclesiais instituídos daquele tempo interpretaram a ousadia e a novidade de Teresa de Ávila?

Lúcia Pedrosa-Pádua - A rede de relações de Teresa de Jesus é rica e grande, inclui muitos amigos, colaboradores e admiradores. Muitos clérigos acompanham com interesse a redação de seus livros. Provinciais solicitaram a ela o que escrevera. Teresa vai sendo reconhecida como “mestra de espirituais”, escritora e fundadora, um reconhecimento raro às mulheres. As cartas de Santa Teresa fazem ver algo deste reconhecimento.

Por outro lado, de fato, Teresa rompeu com o estereótipo submisso e piedoso esperado das mulheres. As próprias representações de escritora, catedrática e andarilha, presentes na pintura, escultura e gravuras da época, revelam a subversão do papel da mulher que Teresa de Jesus representou.

Em consequência, não lhe faltaram censuras, críticas, desconfianças e mesmo ódio. Sua ação de registrar sua experiência, exercer o magistério teológico-espiritual e fundar conventos mexeu com o grupo de teólogos e com a Igreja oficial. O grande teresianista Pe. Tomás Álvarez recolheu vários exemplos desta rejeição a Santa Teresa, que podem ser encontrados em seu Diccionario de Santa Teresa (Burgos: Editorial Monte Carmelo, 2000). Mencionarei alguns exemplos significativos e bem testificados.

Chegaram até nós as palavras de um insigne dominicano, Bartolomeu de Medina, catedrático de Prima de teologia da Universidade de Salamanca, através de um então discípulo seu. Testemunhou este discípulo que o grande teólogo, antes de conhecer Teresa e tornar-se seu grande amigo e admirador, reprovou sua presença em Salamanca para fundar um convento. Dissera publicamente de sua cátedra que “um tal ir de lugar em lugar é próprio de mulheres à toa” e que estas “melhor fariam se ficassem em suas casas fiando e rezando”.

O também dominicano João de Salinas, que já havia alertado seu companheiro de ordem e teólogo Domingo Báñez, amigo da Santa, que “não se deve confiar em virtude de mulheres”, ao conhecer Teresa volta a dizer-lhe que “esperava aproximar-se de uma mulher”, mas encontrara “um homem, e daqueles bem barbados”, referindo-se à tenacidade e capacidade de governo da Madre Teresa.

O próprio Domingo Báñez não conseguiu dissimular seu preconceito contra as mulheres, Teresa entre elas. Vemos isto claramente em sua Censura ao Livro da Vida, que pode ser encontrada em algumas versões das Obras Completas de Santa Teresa. Lá, ele diz que, no Livro da Vida, há “muitas revelações e visões, as quais sempre se deve muito temer, especialmente se são de mulheres, que são mais fáceis em crer que são de Deus e colocar nestas visões a santidade”.

Estes testemunhos de época são muitos interessantes. Mostram como Teresa desconheceu o lugar que se esperava das mulheres e, além disso, não se intimidou com os preconceitos e estereótipos sobre elas. Desconcertou as pessoas, foi mal falada e perseguida, mas foi adiante.

O caso mais emblemático vem, a meu ver, do núncio papal, Felipe Sega. Em suas consultas e cartas sobre a Ordem recém-fundada por Teresa de Jesus, ele não se digna a consultá-la, sequer a mencioná-la. Para ele, Teresa não passava de uma “mulher inquieta e andarilha, desobediente e contumaz” e que, além de tudo isto, “inventa más doutrinas..., ensinando como mestra e indo contra o ensinamento de São Paulo, de que as mulheres não ensinassem”. Na percepção do núncio, o caminho de Teresa de Jesus ia na direção contrária dos costumes, da Ordem, do Concílio de Trento e mesmo da Palavra de Deus!

 

 

Isto sem falar das atividades inquisitoriais. Teresa, em vida, foi acusada duas vezes por alumbradismo ou iluminismo. Após sua morte, houve uma terceira tentativa de enquadrá-la na mesma heresia. Teresa saiu vencedora de todas as acusações. Na segunda, ela pessoalmente se defendeu; nas demais, que tinham por alvo as suas obras, a força e a coerência de sua teologia mística se encarregaram de sua defesa.

Na verdade, a Igreja oficial, patriarcal e antifeminista, tentou várias vezes invisibilizar e desqualificar Teresa de Jesus. A Igreja temeu a grande Santa e escritora, assim como os profetas são temidos e silenciados. Mas é isso que faz a história da mística uma história humana e divina. Ela depende das questões colocadas no tempo e ambiente, dos recursos da razão nesta mesma época. No meio de tudo isto, ela não acontece sem uma graça de luz e de fidelidade. Em meio aos conflitos, o poder de atração da vida e da obra de Santa Teresa foi mais forte que a rejeição. Porque estavam envolvidas e fundadas na experiência do amor de Deus e foi vivida com sinceridade.

 

IHU On-Line - Como o testemunho de Deus dado por Teresa segue instigando e intrigando a mística e nossa relação com a transcendência?

Lúcia Pedrosa-Pádua - A experiência teresiana sempre será instigante porque é uma grande janela através da qual vislumbramos as possibilidades humanas em sua comunicação com Deus. Isto instiga e continuará instigando as gerações. Todo mundo deseja olhar por esta janela! A própria Teresa não se cansa de admirar como um Deus “tão grande e tão sábio” deseja tanto se comunicar com sua criatura.

Na grande janela das obras de Santa Teresa, vemos variedade de experiências de oração, rica fenomenologia, defesas teológicas, efeitos éticos da oração que atingem ora níveis mais externos, ora níveis mais profundos. É um manancial tão grande que é possível reler seus livros — doutrinais e históricos — uma e outra vez, sempre descobrindo coisas novas e fazendo novas leituras com as novas gerações.

Por exemplo, o leitor se encontra com páginas belas em que Teresa, como pedagoga, ensina a oração como um trato de amizade com Jesus, um cultivo de amizade no silêncio, na fidelidade à beira do poço, no interesse por ele. Desenvolve-se a capacidade de olhar, vence-se a mudez. O leitor é convidado a trazer este amigo por perto, ao lado, impresso no coração, dentro de si. Conselhos muito práticos estão presentes em suas obras: o tratamento do tempo, cultivo da atenção, atitudes fundamentais para a oração — a alegria, a “determinada determinação”, a liberdade de espírito —, atenção aos limites corporais, cultivo de relações de amizade, desenvolvimento da humildade e do desapego. E muitos, muitos mais.

 

 

Por outro lado, o leitor se aproxima de experiências que, tais como Teresa as realizou, o leitor jamais as terá. No entanto, pela experiência da autora, ele entra no mundo incrível das altas experiências místicas, do encontro com o amor de Deus em níveis insuspeitados, de purificações arrasadoras, de conhecimento interno da realidade do Deus trino, da percepção de Deus em todas as coisas, no cosmos, de transformações éticas que atingem o ápice das possibilidades e levam a criatura a vencer o medo da morte.
Assim, do mais simples ao mais elevado, que sabiamente faz retornar ao mais simples — Deus está entre as panelas! — o leitor também faz o seu itinerário. Ela mesma convida cada um a descobrir a sua forma particular de oração. Assim, os livros de Teresa são também um espelho para nos ver melhor e amar com mais qualidade. Há estímulos para o amor.

As experiências teresianas têm um aspecto profético, o Deus que ela experimenta é libertador. Assim ela o experimenta como pessoa, como mulher, como membro de uma comunidade e de uma Igreja. Este Deus a envia continuamente a ações transformadoras, sua atitude diante dos acontecimentos nunca é passiva, é ativa e crítica.
Além disso, há um aspecto sapiencial. Os escritos são belos e traduzem sabedoria de vida, bom senso, compreensão humana, caminhos de integração e humanização. Há interesse pelas pessoas, pelos trabalhadores, pela saúde, pela comunicação de qualidade.

Enfim, na experiência teresiana, a transcendência está revestida de glória e de terra, está presente aos atos mais heroicos e aos profundos abismos do pecado. Não são possíveis máscaras diante de Deus que traz tudo à luz e concede ao humano a grandeza de não se envergonhar por ser humano, ao contrário, de dizer sim à aventura de conhecer e autoconhecer-se em Deus e de, em meio ao realismo da maldade e da destruição que pode provocar, abrir caminhos para o amor.

 

IHU On-Line - Por que ela é considerada por alguns comentaristas como “mãe da psicologia”?

Lúcia Pedrosa-Pádua - Conheço junguianos , lacanianos e mesmo freudianos que admiram Santa Teresa e a leem. A psicologia profunda de Jung tem explorado bastante as obras teresianas, de forma especial o Castelo Interior (J. Welch; Vergote ) e há obras consistentes em abordagem lacaniana (D. Vasse) e mesmo psicanalítica (J. Kristeva ; C. Padvalskis). Hoje, mais ou menos superados os preconceitos contra a mística e contra a própria Teresa — mais característicos do século passado e mesmo do anterior — cada vez mais são abertos caminhos de diálogo da mística com a psicologia na perspectiva da saúde, do sentido e da luz diante dos desafios contemporâneos.
Por que é possível esta aproximação? Primeiro porque as copiosas narrativas das atividades interiores na experiência mística de Teresa fazem dela um prato saboroso e farto de investigação.

 

 

Segundo, e é aí que desejo chegar, porque há um reconhecimento de Teresa como profunda conhecedora das potencialidades e misérias do humano. E, de fato, Teresa é uma exploradora da alma humana e da vida interior — nesta aventura ela empregou suas melhores energias. O autoconhecimento é, para ela, “o pão com que devemos comer todos os manjares”, básico para avançar nas moradas mais interiores do próprio castelo.

Este autoconhecimento se dá de maneira intersubjetiva, especialmente na relação com Deus. Assim sendo, conhecimento próprio e conhecimento de Deus são includentes e inter-relacionados. Não sendo assim, a experiência de Deus seria alienante. O caminho espiritual é, ao mesmo tempo, um itinerário de encontro consigo mesmo, de retirada de máscaras e de potencialização do melhor de cada um.

Aliado a isto, Teresa chegou a um conhecimento profundo do mal presente na história e nas pessoas, com sua potencialidade, e isto fazia parte de seu conhecimento realista das pessoas. Um dia escreveu: “nada te perturbe, nada te espante”. Isto valia para ela e para os demais. Teresa aprendeu a ter esperança sem amordaçar as pessoas em julgamentos e exigências. E o exemplo é ela mesma, “mulher ruim” que foi tratada por Deus com muita paciência. Exclamará: “bendito seja Deus que tanto me esperou”.


Outro aspecto é o caráter terapêutico de suas comunidades e processos comunitários. Há um convite a viver com simplicidade e verdade, fraternidade e atenção mútua, comunicação e silêncio, alegria e bom humor, facilitando assim o desenvolvimento humano. “Quanto mais santas, mais conversáveis”, escreveu um dia, inovando na própria noção de santidade de seu tempo, que valorizava de maneira unilateral o silêncio como sinal de santidade.

 

IHU On-Line - Como se mesclam subjetividade, liberdade e autonomia em sua vida e obra?

Lúcia Pedrosa-Pádua - Teresa é uma mulher do renascimento, da descoberta da subjetividade, da valorização da experiência. Seu primeiro livro, o Livro da Vida, é escrito em primeira pessoa. Mais interessante para mim, atualmente, é perceber os processos pelos quais Teresa abre espaços de liberdade e autonomia na relação com Deus, fato que se relaciona com os caminhos de liberdade que ela ajuda a abrir naquela sociedade.

Vemos no Livro da Vida uma Teresa que, por exemplo, vai se desapegando de uma autoimagem sempre muito positiva diante dos demais e vai aprendendo a suportar que falem mal dela. Ela se desvencilha da escravidão de agradar a todos e, assim, cresce em autonomia e liberdade. É uma etapa fundamental de sua vida e não seria possível sem a fortaleza interior gerada na oração. Ao final do itinerário de Teresa, em grande liberdade, ela não teme a morte e é capaz de oferecer a vida e o querer viver para servir à comunidade, à Igreja, a Deus. Ela se faz “escrava de Deus”.

A experiência de olhar para o Jesus dos Evangelhos, libertador que gera liberdade em seus seguidores, é mediação fundamental. Em seu texto mais feminista, constante apenas na primeira redação do Caminho de Perfeição, Teresa denuncia os varões que se fazem juízes de mulheres, encurralando-as e considerando-as incapazes, para que não possam “dizer em público o que choram em silêncio”.

Oração-amor, observação, olhar crítico, autoconsciência, busca da felicidade (Teresa foge de casa duas vezes!), fidelidade a si mesma são alguns elementos através dos quais Teresa cresce em autonomia e liberdade que, por sua vez, geram comunhão e liberdade.

 

IHU On-Line - E como ela concilia o amor com essas categorias?

Lúcia Pedrosa-Pádua - A liberdade teresiana é gerada no amor, especialmente o amor de Deus. E leva ao amor. Assim, amor e liberdade não se conciliam externamente, mas intrinsecamente. Amor gera liberdade, liberdade gera amor. Ambos se exigem para existirem.

 

 

O amor é tema central na obra teresiana. No livro da Vida, ela mostra como era amada por sua família e amigos. Ela se sente “a mais querida”, mas não quer que decidam a vida por ela. Está convencida de que as relações verdadeiras libertam de exigências impossíveis, chantagens, modelos que escravizam uns e libertam outros. A vida cotidiana e comunitária tem seus segredos.

Teresa foi atingida pelo amor de Deus. A experiência do coração transpassado pelo dardo do amor impressiona, pois traz consigo o grande sentimento de amor, seguido de pungente purificação que faz olhar a vida com outros olhos e desejar o que mais leva ao amor. Poucos autores da literatura falarão da experiência de ser amada por Deus como Santa Teresa.

Digno de nota é o seu pequeno tratado do amor ao próximo constante no capítulo terceiro das Quintas Moradas, em que ela coloca o amor ao próximo, concreto, como a verdadeira união com Deus, mais importante que a mais elevada experiência mística. Se Deus é amor, ele gera amor e este amor necessariamente irradia.

 

IHU On-Line - Em que aspectos essas concepções são inspiradoras e desafiadoras para as mulheres da contemporaneidade?

Lúcia Pedrosa-Pádua - Esta é uma boa pergunta. Amor e autonomia é desafio para todos, para as mulheres especialmente. Talvez a grande sabedoria da vida hoje seja estar alerta para perceber os veios de vida, hoje. Não adormecer no sono do consumo, do individualismo e dos sonhos pequenos. Nossas ficções científicas atualmente são distópicas, não estariam elas apontando para uma sede de utopias?

 

IHU On-Line - Em outra entrevista concedida à IHU On-Line, em 2012, a senhora menciona que Teresa possuía “condicionamentos psíquicos”. A que estava se referindo, exatamente?

Lúcia Pedrosa-Pádua - Talvez me referisse aos condicionamentos psíquicos que todos nós temos. Para avaliar uma experiência mística, o núcleo principal do amor de Deus deve ser discernido, e não fundido com o fenômeno tal como descrito pelo místico. Porque a experiência se desenvolve sempre no horizonte cultural, social e psíquico do místico.

 

IHU On-Line - Como analisa a simbologia e a semântica utilizadas por Teresa de Jesus em seus escritos místicos em geral?

Lúcia Pedrosa-Pádua - O símbolo é a forma mais honesta de falar de Deus. O místico tenta explicar sua experiência, não conseguindo, fala por símbolos. Ao final se cala. Temos vários exemplos nos escritos teresianos. O leitor pode conferir o esforço de linguagem e a beleza gerada pelos símbolos, a imaginar e sentir uma “luz que não conhece noite”, por exemplo.

Os símbolos teresianos transmutam, Teresa é muito livre, assim, por exemplo, a borboleta se transforma em pomba e volta a ser borboleta; o fogo abre espaço para a água. E o leitor entende muito bem! Há uma aventura sensorial.

Num recente artigo, dediquei-me a estudar o símbolo do fogo como símbolo do Espírito. Que variedade e riqueza simbólica: o fogo inicia como centelha de amor, a centelha é também chispa de conhecimento; há fogueiras de amor, e centelhas como que atingem até a sensibilidade física; o fogo anuncia, provoca seca e exige a água. Enfim, Teresa fala mais do Espírito por seus símbolos que uma pneumatologia conceitual. O mesmo poderia ser aplicado à água, símbolo ao mesmo tempo da graça de Deus e a da oração. Nesta constelação semântica há fontes, riachos, arroios, mar, grandes ondas, aqueduto, noria, água que sai da areia, nascentes, águas limpas e águas turvas. Vida e morte, esperança.

Teresa tem a habilidade de falar sobre o ser humano e sua aventura mística através de símbolos como o castelo interior, feito de diamante ou de cristal muito puro, habitado por Deus que, como o sol, irradia sua luz pelas moradas do castelo. A descrição do símbolo e a narrativa da pessoa que se aventura neste castelo formam um verdadeiro tratado de antropologia teológica indutiva. E, mesmo sem a preocupação teológica, o leitor pode, através do símbolo, ver a si mesmo, intuir a presença de Deus em seu interior, num dinamismo de luzes e sombras, e inspirar sua vida concreta.

 

 

Há símbolos arquetípicos, como o “centro” e a metamorfose da borboleta, especificamente do bicho-da-seda; símbolos originais como o jardim (a pessoa) e o jardineiro (Deus), o palmito (símbolo antropológico que apoia a ideia do centro – o mais saboroso da pessoa encontra-se no mais íntimo e unido a Deus) ou a abelha (símbolo da humildade). Os símbolos abrem a possibilidade de discursos diversos, interdisciplinares e inter-religiosos, e são inspiração para novos olhares das novas gerações.

 

IHU On-Line - Sob quais aspectos Teresa teve uma autoconsciência expandida de seu “ser mulher”?

Lúcia Pedrosa-Pádua - Acho que já falei um pouco sobre isto. Teresa é um exemplo de expansão da consciência feminina e feminista. Por isto é profética.

 

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