A “distribuição de cidade” contra a senzalização da metrópole. Entrevista especial com Erminia Maricato

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Por: João Vitor Santos | 07 Fevereiro 2017

A urbanista Erminia Maricato se jogou em projetos democráticos para pensar uma cidade melhor para todos, com moradia digna para todos seus habitantes como um projeto de vida. Com a experiência de participações em governos ditos progressistas, ela destaca que as gestões Lula e Dilma trouxeram muitas conquistas para os mais pobres. Entre elas, o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida. Entretanto, todas as conquistas logo chegaram a um limite por não terem abarcadas mudanças estruturantes que o país precisava. “É preciso reconhecer que houve essa ampliação do acesso, mas isso com muito subsídio. E esse subsídio, que foi muito forte por parte do Governo Federal, como não houve reforma na base fundiária e mobiliária, foi parar no preço dos imóveis e da terra”, diz, destacando um dos pontos que fez aumentar as desigualdades no Brasil.

O resultado, segundo a urbanista revela em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, foi uma espécie de senzalização das metrópoles. “Há uma expansão da periferia, porque muitos dos empreendimentos para renda média e média baixa foram feitos exatamente no que podemos chamar de semiperiferia”, explica. Com isso, muitas pessoas que viviam nesses lugares, e já logravam conquistas, não conseguiram mais se manter ali. Acabaram sendo empurradas para mais longe ou para empreendimentos “mais populares”, porém, ainda mais distantes do centro e sem infraestrutura básica. “E qual a consequência trágica disso? É o aumento do tempo das viagens. Uma das questões mais dramáticas pelas quais estamos passando nas cidades é o problema da mobilidade”, completa.

Assim, quem tem menos recursos fica vivendo no que ela chama de senzalas das metrópoles e é forçado a vir para o centro, trabalhar e servir os mais abastados. “Olhando o mapa, você percebe as senzalas urbanas, a não cidade que circunda a cidade de brancos, de classe média e alta e que tem todos os equipamentos.” Para Erminia, o desafio é pensar além da distribuição de renda, do desenvolvimentismo. É pensar na distribuição de cidade. “Porque uma casinha é muito fácil de se construir. Constrói fora, longe e daí depois tem que levar toda a infraestrutura para lá, o que sai caríssimo para toda a sociedade”, pontua.


Erminia Maricato | Foto: Arquivo pessoal

Erminia Maricato é urbanista, professora aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São PauloFAUUSP e hoje integra o Conselho de Pesquisa da universidade. Atualmente é professora visitante do Instituto de Economia da Unicamp e colaboradora do curso de Pós-Graduação da FAUUSP, professora visitante do Human Settlements Centre da University of British Columbia, Canadá, e da School of Architecture and Urban Planning of Witwatersrand – Johannesburg/South Africa, além de participar de corpos editoriais. Foi secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano da prefeitura de São Paulo na gestão de Luiza Erundina e secretária executiva do Ministério das Cidades no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Como ativista política, destaca que vem atuando na Frente Brasil Popular, contribuindo para a construção do Projeto Brasil, área de cidades.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como compreender a crise habitacional no Brasil?

Erminia Maricato - É uma crise que acompanha a história do Brasil. Ela se aprofunda com a urbanização, quando, na primeira metade do século passado, aumentam as taxas de urbanização do país em decorrência do processo de industrialização. É nesse período que há uma taxa de migração muito forte para as cidades. Tem relação com a condição de um país capitalista periférico, ou seja, temos uma força de trabalho que é barata, mal remunerada e que não ganha o suficiente para satisfazer todas as necessidades de reprodução dessa força de trabalho e consumo.

Assim, alguns itens não fazem parte da cesta de consumo dessa força de trabalho. Um deles é a moradia. É por isso que, muitas vezes, vemos as pessoas comprando carro, TV de LED, máquina de lavar e computador, mas não conseguem comprar a moradia, pois, de todos os bens de consumo necessários e obrigatórios, a moradia é, de longe, o mais caro. Não é possível ir ao mercado comprar uma moradia sem o financiamento bancário. E isso não é factível para a força de trabalho, que não consegue acessar um financiamento. Em alguns momentos da política urbana e habitacional no Brasil esse financiamento foi possível, mas nunca chegou a ser uma coisa que impactasse.

A produção da cidade ilegal, a autoconstrução, que é como a maior parte da força de trabalho de baixa renda no Brasil provê sua moradia, passa a ser a regra. É a autoconstrução de base fundiária ilegal, que pode ser ou de um loteamento ilegal ou de ocupação pura e simples de terra. E sobre isso já foi muito falado, há muita bibliografia. Eu mesma fiz um filme, em 1975, dirigido pelo Renato Tapajós, mostrando que o fim de semana dos trabalhadores que migram para cidade é construindo a própria casa. E essa construção se dá sem engenheiro ou arquiteto, não tem lei para nada, código de obras ou zoneamento. Essa produção de cidade ilegal pelos trabalhadores é estrutural numa sociedade de terceiro mundo. Você encontra isso na África, na América Latina, na Ásia, onde uma parte da cidade está fora da lei.

Sem reforma fundiária

Acontece que o Brasil é o último país do ocidente que libertou a escravidão. Isso faz com que se adquira contornos mais radicais e dramáticos, porque é um país que se industrializou e se modernizou, cresceu muito, mas não fez reforma fundiária. E, sem dúvida, é a terra, o problema do acesso à terra urbana, que é a trava que segura esse mercado. Temos alguns estudos que demonstram que no último boom imobiliário, por mais incrível que pareça, se teve um crescimento muito grande de investimento federal, inclusive com subsídios, mas também se tem uma piora nas situações de moradia. Isso porque o aluguel também sobe, assim como o preço do metro quadrado, pois o mercado imobiliário começa a disputar as terras da periferia.

IHU On-Line - Pelo que a senhora fala, a moradia acaba não sendo um produto de mais fácil venda e acesso dentro das lógicas do capitalismo. Mas também observamos que nem mesmo quando a própria lógica capitalista apreende a questão da moradia não há uma melhoria nesse estado de crise habitacional. É isso?

Erminia Maricato - Em primeiro lugar, está correto dizer que não é uma produção capitalista. Mas ela contribui e é fundamental para o processo de acumulação, de base industrial, por exemplo. A segunda questão é a seguinte: é um mercado que não existe sem financiamento, mesmo antes do domínio da financeirização da economia a aquisição de moradia sempre dependeu de um capital financeiro por causa de seu alto preço. No caso do Minha Casa, Minha Vida, houve uma expansão do mercado – isso é muito importante – em direção à classe média. Assim, por exemplo, parte de uma classe média que morava de aluguel ou que dividia moradia acessou a sua própria moradia.

É preciso reconhecer que houve essa ampliação do acesso, mas isso com muito subsídio

É preciso reconhecer que houve essa ampliação do acesso, mas isso com muito subsídio. E esse subsídio, que foi muito forte por parte do Governo Federal, como não houve reforma na base fundiária e mobiliária, foi parar no preço dos imóveis e da terra, além de ter aumentado a taxa de lucro dos empreendedores. Temos um aumento do preço das terras e dos imóveis absolutamente explosivo de 2010 a 2014. Esse boom, que chamo de boom automobilístico e imobiliário, foi importante para atrasar o impacto da crise econômica internacional sobre o Brasil. Atrasou, mas não impediu. E ainda teve um impacto sobre a cidade que foi dramático.

Há uma expansão da periferia, porque muitos dos empreendimentos para renda média e média baixa foram feitos exatamente no que podemos chamar de semiperiferia, uma área que está servida de infraestrutura e que os trabalhadores e moradores levam anos para conquistar essa infraestrutura. E essas áreas foram tomadas por empreendimentos, grande parte deles verticais, mas sem muita altura. Ou seja, existe uma expansão do mercado, mas, dialeticamente, existe também uma maior dificuldade para essa produção informal chegar a esses patamares. Na verdade, não atinge a maior parte da população de baixa renda.

IHU On-Line - Quer dizer que o morador de baixa renda seguiu sem acesso a crédito para moradia e ainda foi expulso para mais longe da cidade, alargando essa ideia de periferia?

Erminia Maricato – Temos muitas pesquisa que estão mostrando isso. A população mais pobre que não teve acesso ao Minha Casa, Minha Vida, foi para uma nova fronteira periférica. E qual a consequência trágica disso? É o aumento do tempo das viagens. Uma das questões mais dramáticas pelas quais estamos passando nas cidades é o problema da mobilidade. Em São Paulo, por exemplo, segundo a Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, em 2012 o tempo de deslocamento era de 2h40min. Isso é o tempo médio de viagem na região metropolitana. Isso requer atenção, porque eu não posso enxergar a moradia como uma coisa desligada de toda a condição urbanística, que é mobilidade, saneamento, acesso aos serviços de escola, saúde, iluminação pública, etc.

Isso explica também porque estamos atravessando um período de epidemias

Isso explica também porque estamos atravessando um período de epidemias, que, agora, além da Zika, Chikungunya e Dengue, tem a Febre Amarela. A condição nas periferias das metrópoles brasileiras piorou. Temos bairros antigos periféricos que sofreram um adensamento absurdo. E esse adensamento atinge questões de insalubridade. As pessoas chegam a construir a quarta laje, um prédio encostado no outro e o primeiro piso não recebe insolação e ventilação adequados. Outro problema que temos é a incidência de Tuberculose e de outras doenças respiratórias. A condição de saúde pública ligada a condição urbana está sendo reconhecida agora. Já fui na FioCruz, também conheço na USP um grupo que estuda saúde e cidade, ou seja, começa-se a perceber que essa condição de moradia tem muito a ver com a condição de saúde pública. A moradia não é somente a casa, é também a condição urbana. A pessoa não mora somente dentro de casa, precisa acessar o trabalho, a escola, o lugar onde se abastece e isso tudo para não falar de lazer, de equipamento esportivo, área verde, e tudo mais.

IHU On-Line - A senhora elenca muitas conquistas no combate a crise habitacional nos anos 90, com a eleição de muitos prefeitos do PT em todo Brasil. Essas conquistas seguiram nos anos 2000, com a chegada do PT ao governo federal? Por quê?

Erminia Maricato – Nós, nas décadas de 1980 e 90, saímos do período ditatorial, período que tem uma política urbana e habitacional bem voltada para interesses de mercado e que foi também uma tragédia porque não mexeu no estatuto fundiário. Nesse período em que a gente luta pela redemocratização, o país constrói entidades partidárias, sindicais, se tem a ampliação dos movimentos urbanos e sindicais e assim traz um poder local que é inovador. E é inovador e reconhecido no mundo todo. É o Orçamento Participativo, que é a democracia direta. O controle do orçamento público é absolutamente fundamental, uma prioridade para que a gente resolva o problema da desigualdade no país.

E, nesse período em que se lutava pela democracia, se conseguiu parcelas de poder no poder local. Isso trouxe formas inovadoras de se pensar a cidade. Falo, por exemplo, no Programa de Urbanização de Favelas e urbanização das periferias, que era voltar o olhar para aquela cidade ignorada, a não cidade que cerca a cidade. E os mapas hoje mostram isso muito claramente. Olhando o mapa, você percebe as senzalas urbanas, a não cidade que circunda a cidade de brancos, de classe média e alta e que tem todos os equipamentos, que a escolaridade é alta, onde o índice de violência é baixo, que tem área verde e praças, hospitais e tudo mais. As prefeituras que se autodenominavam democráticas e populares olharam para essas cidades invisíveis como prioridade.

Por isso trabalhamos e desenvolvemos essa expertise no Brasil para transformar uma favela em bairro, com todos os padrões e indicadores que, se não são modernos, são saudáveis, salubres, saneados, dignos e etc. Mas ao mesmo tempo em que nos voltamos para essa cidade ilegal e tentávamos regularizá-la, nos também desenvolvemos a produção de novas moradias com baixo custo e alta qualidade arquitetônica e construtiva. Isso hoje é uma memória quase solapada, mas a universidade está produzindo muitos livros para demonstrar que isso foi feito.

Sem política pública e com militância

Só que, nessa época anos 80 e 90, não havia recursos de políticas públicas. Era época de ajustes e o retorno do investimento público federal se deu somente depois com o lulismo. Antes disso, as prefeituras trataram de pegar os seus orçamentos e gastaram de forma muito interessante, porque foi um dinheiro muito bem aproveitado. Nós construímos conjuntos habitacionais no Brasil inteiro, mas não chegamos a números que o Minha Casa, Minha Vida, que chegou com a produção massiva pelas construtoras e mercado de moradias, mas em que o acesso de grande parte da população de mais baixa renda se deu a moradias fora das cidades.

IHU On-Line - O problema, então, surge quando aparece o dinheiro público?

Erminia Maricato – Essa é minha tese, que inclusive tenho discutido com muita gente. Na hora em que o dinheiro aparece, ocorre a máquina do crescimento. E o que é essa máquina? As empreiteiras crescem com a construção de infraestrutura e de prédios de habitação, que é um tipo de capital diferente da construção de infraestrutura.

Eram as empreiteiras que, até recentemente, mandavam nas cidades. Não no período das prefeituras democráticas, mas desde que o Estado tomou o investimento. Surgem as incorporações imobiliárias, que é um capital semelhante ao comercial do mercado imobiliário, proprietários de terras e o capital financeiro imobiliário também se associam. Essa máquina se articula com interesses eleitorais e aí ficou como vimos, uma coisa articulada e que assume o comando das cidades.

Fui criar o Ministério das Cidades entre os governos FHC e Lula e fico em dúvida para saber se quando a gente criou o Ministério a correlação de forças já estava mudando ou se mudou por causa da política de conciliação. Essa ideia de que um capital nacional e esse desenvolvimentismo também são fatores importantes, pois trouxeram a construção nacional e os automóveis. O problema é que ambos acabaram dominado as cidades sem reformas estruturais.

A cidade se torna muito invisível para os economistas

Claro que esse desenvolvimentismo é melhor que o neoliberalismo, porque é o Estado investindo e criando emprego, mas a cidade se torna muito invisível para os economistas. Os economistas acham que tem que construir, estádios, viadutos, túneis ou os cinco metrôs que estão em construção. Essas obras, muita coisa feita a partir de 2008 para contra-atacar a crise internacional, não foram ao encontro das principais necessidades da população. E o maior exemplo são os estádios em cidades que não tem time de futebol nem na segunda divisão.

IHU On-Line - É essa a principal crítica que se faz ao governo do PT, o descolamento das ruas, dos movimentos sociais? E como pensar na relação com os movimentos sociais engajados nessas lutas pelo direito à moradia?

Erminia Maricato – De nosso ciclo virtuoso, podemos afirmar que as cidades foram esquecidas. Acho que, inclusive, porque o Ministério das Cidades foi para as mãos do PT, que passa a defender a lógica: ‘é obra, é obra, vamos fazer, não interessa aonde’. E sobre obra, faz uma imensa diferença se faz uma como essa do metrô do Rio de Janeiro, desenhado pelo capital imobiliário. Observe como todos esses metrôs vão para os aeroportos, podemos citar esses últimos cinco. Ao invés de seguir todos os levantamentos sobre necessidades populares que apontam para crise profunda de mobilidade, são desenhados para passar em áreas de alta renda ou áreas vazias que vão subir de preço, seguindo a lógica da renda imobiliária. Ou seja, se atravessa uma área vazia com um equipamento como o metrô, acaba ocorrendo uma supervalorização da área. Aliás, o metrô é o equipamento que mais valoriza o metro quadrado.

Nessa disputa pelo investimento em obras, o povo já havia sido posto de fora. Nós construímos aquela política tão virtuosa que ganhou o mundo e que deu origem a um arcabouço legal – porque nós construímos um arcabouço legal no Brasil que o mundo inteiro ficou perplexo. E quando digo mundo inteiro, me refiro a área técnica. Podemos citar o Estatuto das Cidades, a Lei de Mobilidade, dos Resíduos Sólidos, do Saneamento, Estatuto da Metrópole, etc -, mas entretanto, o Judiciário desconhece isso. Diria, até, que desconhece a própria Constituição, porque ela assegura o direto à moradia muito mais evidente do que o direito à propriedade privada.

Desdém com a legislação urbanista

Acho que isso foi uma certa ilusão de nossa parte. Lutamos muito por uma base legal, por uma mudança na legislação, porque antes da Constituição de 88 as cidades quase não existiam na legislação brasileira, mas que não deu resultado. Eu sempre me questionava: por que o Judiciário desconhece essa legislação das cidades incluída na Constituição de 88?

Legislação urbanista não é compulsória, é tratada apenas em disciplinas optativas

Num encontro com a magistratura de São Paulo, eu fiz essa pergunta. E eles me disseram que, nas faculdades de Direito, legislação urbanista não é compulsória, é tratada apenas em disciplinas optativas. Claro que esses juízes que chegam a ganhar 80 mil Reais por mês teriam a obrigação de se informar sobre essas leis. E mais: realmente, depois de 40 anos estudando cidade no Brasil, concluo que é muito evidente que a legislação se aplica de acordo com as circunstâncias. Cansei de ver casos desse tipo.

IHU On-Line - Então, a senhora diz que o problema não é a legislação e sim fazer ela acontecer de forma igual para todos?

Erminia Maricato – Exatamente. Os nossos movimentos saíram das ruas. Escrevi um artigo com o título “Nunca fomos tão participativos” em 2007 e foi quando comecei a perceber que algo estava errado na política urbana [o artigo referido foi publicado pela Carta Maior]. Daí, deixei o PT e qualquer cargo público e entrei numa crise, antes do que muita gente, mas agora estou muito bem. Já faz tempo que descobri que precisamos reinventar as políticas públicas e a democracia no Brasil porque a gente lutou muito por lei e isso não adiantou nada. Achávamos que ter planejamento era o máximo, mas hoje temos leis e planos e vemos que realmente não se segue planos nesse país. Isso já é uma marca na história do país, apesar de a ditadura ter um plano e segui-lo, essa perspectiva desenvolvimentista.

Então, temos leis, temos planos e temos competências técnica no Brasil. E essa competência está sendo esquecida. Curioso é ver como a memória vai rapidamente sendo esquecida, pois levamos tão a sério o trabalho dos arquitetos e dos engenheiros e dos advogados de assistência técnica aos movimentos sociais que queriam construir habitação ou que queriam fazer gestão do projeto que chegamos a aprovar uma lei federal de assistência técnica. Era uma forma de levar o serviço do arquiteto e do engenheiro para as periferias para, inclusive, ver se consegue impedir que sejam ocupadas beiras de córregos, lugares que vão desmoronar, ou que se construa uma edificação que não sustenta duas lajes, enfim, para garantir salubridade que é fundamental. Foi uma forma de entrarmos na cidade ilegal e produzir algo salubre ali. Mas é outra lei que está sendo ignorada. Os arquitetos estão perplexos e não sabem o que fazer com essa lei. O mercado de arquitetura no Brasil é ultra restrito no Brasil e nós estamos nessa encruzilhada.

IHU On-Line - A senhora sempre recorre a um conceito de metrópole que vai muito além da cidade. Gostaria que recuperasse esse seu conceito e destacasse a importância dessa perspectiva para compreender um lugar como São Paulo, por exemplo, e esse processo de senzalização das grandes cidades.

Erminia Maricato – Na luta pela redemocratização do país, na década de 1970, fomos nos movimentos urbanos pegar o gancho das reformas de base pré-64, quando o país se organizou para fazer reforma agrária, na saúde, na educação com Paulo Freire, política, etc. A reforma urbana, como o país ainda era predominantemente rural na primeira metade do século XX, não era tão importante. É a partir de 1960, 70 e 80 que as cidades mostraram essa condição caótica. Assim, fomos ver o que era a primeira proposta de reforma urbana, que era de 1963, e desenvolvemos uma proposta que culmina num capítulo da Constituição de 1988, no Estatuto das Cidades, nas prefeituras democráticas.

Nós estávamos trabalhando com a ideia de que a função social da propriedade supera o interesse privado. É o interesse social, ou seja, você não pode manter no centro da cidade um prédio vazio porque ele está se beneficiando da renda imobiliária e de tudo que está sendo investido e não está cumprindo função nenhuma, só a de engordar o proprietário. Então, o nosso objetivo era de que a função social da propriedade mudasse o destino das cidades brasileiras. Era uma utopia. Ao mesmo tempo, nós fomos nos recolhendo ideias nos conselhos criados pelas gestões petistas, especialmente no Lulismo com sua ideia da conciliação. Era concelhos institucionais. Assim, saímos das ruas.

Redescobrindo o mapa da cidade

Ganhamos muitas prefeituras de periferias de região metropolitana. É muito importante enxergar o que a elite brasileira vinha construindo como representação da cidade até então. Essa construção é justamente a mídia toda vai atrás. Percebemos isso muito facilmente nos mapas. Observa-se uma cidade, um núcleo urbano muito bem servido de infraestrutura, de transporte, onde o emprego se concentra. Nesse núcleo urbano, esse centro expandido, no Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, temos 70% do emprego da região metropolitana e não só do município. E a região metropolitana, no exemplo de São Paulo, tem 39 municípios.

A mídia trabalha como se na metrópole houvesse apenas um município

A mídia trabalha como se na metrópole houvesse apenas um município. E por quê? Porque é aonde mora a elite. Esse moço que está administrando São Paulo [João Dória] olha para a cidade como se fosse um condomínio fechado. É essa cidade de brancos, endinheirados, que tem toda infraestrutura, alta escolaridade, baixos níveis de morbidade, etc. Essa representação da cidade sempre encobriu a outra. E o fato de não pensarmos a região metropolitana ajuda a fortalecer essa perspectiva.

Para se ter ideia, na região metropolitana se tem municípios em construção ilegal urbana representa 80% da ocupação do município. São municípios dormitórios, a prefeitura é pobre – aliás, isso é outro problema, pois deveríamos fazer uma reforma tributária -, assim se tem condições muito diferentes do municípios capital e dos municípios periféricos. Há casos como os de São Caetanos do Sul [no estado de São Paulo] que tem renda média maior que a do município de São Paulo. São Caetano do Sul não tem periferia, está numa cidade contínua na expansão de São Paulo e antes de São Bernardo, é um município pequeno e de boa arrecadação. Mas a maior parte dos municípios periféricos são ignorados.

Caso Rio e as Olimpíadas

Quando observamos o recente caso da região metropolitana do Rio de Janeiro, logo percebemos que o tratamento em função das Olimpíadas se revelou uma crueldade. Foram rios de dinheiro investidos numa cidade para tornar ela muito mais segregada. Faz uma vitrine para o turismo e, ao mesmo tempo, deixa a periferia em péssimas condições de saneamento. Olha, a periferia do Rio vai explodir!

IHU On-Line- Isso é exatamente a senzalização na metrópole?

Erminia Maricato – Sim, é isso. O que fizeram no Rio de Janeiro foi isso, e nos três níveis de governo. Investiram e tiraram 40 mil pessoas de onde estavam para colocar em conjuntos habitacionais do Minha Casa, Minha Vida na periferia.

É como um amigo me falou sobre o município em que ele trabalha. Há uma avenida em que a prefeitura manda e só. De um lado é o crime organizado e de outro é a milícia. Ele conta histórias horríveis, casos em que a milícia interrompe a canalização do serviço de água para abastecer outros lugares. É a falta de governo, metrópoles desgovernadas. Quando saí do Ministério das Cidades, queríamos pegar algumas grandes cidades e tratar como caso de segurança nacional, porque é um completo desgoverno.

Por que sobra tanto lixo na Baía de Guanabara [no Rio de Janeiro]? Por que se tem poucos córregos limpos? Até a represa, que é área produtora de água em São Paulo, tem muito lixo. Não só porque há um problema de precariedade na coleta de lixo, mas também porque há bairro em que não dá para entrar coleta de lixo. Vi isso no caso do Rio de Janeiro, ruas de metro e meio de largura e prédios de três, quatro andares ladiando essas vielas.

Consequências do boom desenvolvimentista

Agora, estamos percebendo o que se passou durante esse período de boom imobiliário, de crescimento do Brasil. Os pobres ganharam mais, melhoraram de vida, tem filhos na universidade, melhoraram a renda e compraram mais automóveis, motos, tivemos durante o Lulismo uma duplicação no número de automóveis e quadruplicação no número de motos nas cidades brasileiras com mais de 60 mil habitantes. Mas, política de transporte público, política de saneamento básico, política de drenagem da água da chuva, política de segurança contra desmoronamentos, política de controle de epidemias, isso tudo não se resolve com melhora na renda. Isso é política pública.

Agora, estamos percebendo o que se passou durante esse período de boom imobiliário

IHU On-Line - O que é essencial para discutirmos o direito à moradia no Brasil de hoje?

Erminia Maricato – Vou voltar para aquilo que discutimos na década de 1970, 80. É a aplicação da lei, em primeiro lugar. É a função social prevista na Constituição, o direito à moradia que está lá absoluto.

Outro dia, como disse que o direito à moradia é absoluto e o a propriedade não é, os advogados vieram me explicar que não existe direito absoluto. Está bem, não existe direito absoluto como conceito. Agora, veja um terreno que está ocupado há oito anos, o proprietário deve para o INSS, vamos falar de Pineheiros [em São Paulo], um caso impressionante de violência no despejo. A Constituição assegura o direito da moraria, fala da função social da propriedade e oito mil famílias são colocadas na rua com violência? Crianças e velhos levados para um ginásio de esportes porque não tem para onde ir? É como o [Guilherme] Boulos falou: ‘eu sou chamado de criminoso. E vocês que despejam com violência 700 famílias e o criminoso sou eu?’.

Por isso, depois de tudo, digo que precisamos distribuir cidade. Temos que distribuir renda, o que é obvio. Mas, para resolver o problema da moradia temos que distribuir cidade. Porque uma casinha é muito fácil de se construir. Constrói fora, longe e daí depois tem que levar toda a infraestrutura para lá, o que sai caríssimo para toda a sociedade. Essa cidade em dispersão, que percebemos que piorou nos últimos sete anos, alimenta muito a riqueza dos proprietários. Tem um terreno na Barra [bairro do Rio de Janeiro] vazio e de repente tira os pobres de volta, passa um metro lá perto e pronto. O terreno duplica de preço. Isso é uma prática de enriquecimento de uma parte da sociedade brasileira.

Teríamos muita coisa para discutir, como a questão da construção, da formação da mão-de-obra, dos materiais para que essa indústria se torne mais produtiva – embora nossas pesquisas mostrem que no Minha Casa, Minha Vida, houve um salto de produtividade nos canteiros -, mas tudo isso sem mexer no direito à cidade não surte efeito. É muito melhor você morar num apartamentinho de 50 metros quadrados no centro da cidade, mesmo que seja do centro antigo, perto de metro e ferrovia, ônibus do que morar numa casa de 200 metros quadrados lá numa distância em que se morre até chegar no hospital.

Falta de infraestrutura geradora de violência

O problema de os ônibus não circularem depois da meia noite nesses bairros mais retirados dos centros é a fonte da violência. São bairros de casas e não tem mais nada. E como fica a moçada? Nesse lugar não tem entretenimento esportivo ou cultural e as pessoas não tem como sair de lá para acessar esses serviços no centro da cidade, muitas vezes oferecidos de forma gratuita. Nessas situações, o crime organizado deita e rola. Morar numa casinha, no fundo, todo mundo mora, o problema é direito à cidade, a uma moradia urbana. Esse é o maior problema.

IHU On-Line - Deseja acrescenta algo?

Erminia Maricato – Só gostaria de dizer que nós estamos pensando que precisamos recuperar essa mesma forma como construímos as discussões que deram origem a todo esse arcabouço legal, melhora de condições de moradia e na cidade. Porque, agora, se trata de reconstruir a democracia no Brasil. Estou ligada ao Projeto Brasil na frente Brasil Popular, na área de cidades. Estamos buscando articular movimentos, academia, os cursos, os profissionais que não se conformam com a barbárie e a desigualdade para que a gente consiga participar da elaboração de um projeto para o país.

Na verdade, na história do Brasil, nunca conseguimos chegar a formular um projeto para o país

Na verdade, na história do Brasil, nunca conseguimos chegar a formular um projeto para o país. Todas as alternativas, quando estava se efetivando, foram interrompidas. Vamos recomeçar a reconstrução da democracia no Brasil, pois temos clareza que a segregação e toda essa ilegalidade, pela qual a população é abandonada gera violência e essa violência não interessa nem para quem tem dinheiro.

É fundamental que se diga que estamos trabalhando na construção dessa proposta que não é partidária, porque, às vezes, vemos gente muito bem-intencionada, mas que para defender o partido acaba abrindo mão de coisas fundamentais para um processo mais humanizado. É uma proposta que tem potencial, mas que temos a consciência de que está começando.

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