A reinvenção da Era Vargas e o desenvolvimento nacional. Entrevista especial com Carlos Lessa

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24 Agosto 2014

“Em termos de política externa, Vargas faz coisas inteligentes, que vão desde negociar com a Alemanha e depois se articular com os Estados Unidos, mas mantendo a integridade nacional, sem ceder nos aspectos substantivos de seu projeto de Estado”, avalia o economista.

 Foto: Filak

“A Era Vargas mostra que é possível um país que era praticamente um cafezal se transformar na sétima economia industrial do mundo. Depois de termos ocupado essa posição, não devemos abrir mão do sonho industrial e combiná-lo melhor com a observância dos direitos civis, da confiabilidade democrática, fortalecimento dos institutos federativos”, aponta o professor doutor Carlos Lessa, em entrevista por telefone à IHU On-Line. “Se não formos capazes de fazer essas coisas, estamos jogando fora a Era Vargas, como se jogássemos a água suja da bacia com o bebê dentro”, complementa.

Na opinião de Carlos Lessa, um modo produtivo de pensar a história do Brasil desde o século XX é abordá-la a partir de três paradigmas: com Vargas, contra Vargas ou sem Vargas. “Durante 50 anos o Brasil apostou na industrialização para sair da periferia do mundo e, mais do que isso, para integrar as reformas sociais. Tais reformas começaram com a Consolidação das Leis do Trabalho, a ideia de empresariado nacional, a criação de protagonistas ligados à modernização e, também, uma tentativa de olhar para o futuro”, destaca Lessa.

Ao longo das últimas seis décadas, a chamada Era Vargas foi sistematicamente sendo deixada de lado, por diversas razões, inclusive por uma esperança de pujança nacional que viria com a redemocratização do país, após o regime militar. “Eu, como tantos outros que fizeram oposição ao regime, praticava a seguinte simplificação: todos os problemas do Brasil derivavam do governo militar e a democracia seria uma panaceia que resolveria tudo. Mas a realidade é que a democracia foi só simbolicamente conquistada. A democracia não foi discutida nas suas características e experiências passadas com a cultura do Brasil”, sustenta o entrevistado. “Nós temos de olhar para dentro de nós e buscar referências importantes para pensar nossa história, e uma delas é Getúlio Vargas. Isso não significa que vai se repetir o que Getúlio fez, a história só se repete como farsa, mas não é possível desconhecê-la”, argumenta.

Carlos Lessa é formado em Ciências Econômicas pela antiga Universidade do Brasil e doutor em Ciências Humanas pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas - Unicamp. Em 2002, foi reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e, em 2003, assumiu a presidência do BNDES.

Confira a entrevista.

 Foto:aepet.org.br

IHU On-Line – Qual foi o projeto de Brasil implantado por Getúlio Vargas na primeira metade do século XX?

Carlos Lessa – Para responder a essa pergunta é preciso retroceder aos grupos republicanos paulistas e gaúchos antes da Proclamação da República. Porque os clubes gaúchos defenderam certas teses que são extremamente relevantes na visão de um projeto de Brasil, entre elas o abolicionismo, tendo esses clubes no Rio Grande do Sul estimulado a adesão voluntária dos gaúchos a esta postura.

Antes mesmo da abolição, o estado havia reduzido significativamente o número de escravos. Esses clubes do sul condenavam, digamos assim, discretamente o Clube Revolucionário Paulista porque ele não se comprometeu, em Itu, com o ideal abolicionista. A ideia de construir um Brasil mais justo impregnou o movimento republicano no RS e gerou a assimilação rápida do que eu chamo de positivismo ibérico nas Américas.

As raízes positivistas mais importantes no continente foram México, Brasil e Argentina. No Brasil, certamente, a mais importante presença foi no Rio Grande do Sul. Isso tudo dentro de uma perspectiva positivista que acreditava que era possível o progresso econômico e social desde que a razão prevalecesse. O positivismo gaúcho foi extremamente bem-sucedido do ponto de vista político, dando origem, inclusive, a Borges de Medeiros, que foi eleito governador do RS por cinco vezes.

Vargas começou sua vida pública como estudante de Direito, e como estudante de Direito foi encarregado por seus colegas para saudar Afonso Pena, eleito presidente da República, na visita que havia feito ao RS. No discurso de saudação que Vargas proferiu, em 1906, ele diz uma coisa muito interessante e importante: “O Brasil não deveria exportar minério de ferro. O Brasil não deveria importar enxadas. O Brasil deveria produzir enxadas com seu próprio minério de ferro”. Ele usou o termo “enxadas” porque na época a ideia da mecanização ainda estava muito incipiente. A ideia defendida por Vargas é que o Brasil não deveria ser uma economia primário-exportadora, mas sim industrializada. Os pensamentos iniciados e ensaiados nesse período permitiram o embrião de aspectos relacionados ao trabalho, ao planejamento e, também, a uma visão muito encorajadora da ideia de educação. Essas são visões presentes nas discussões gaúchas, que Vargas conhecia e apoiava. Inclusive a primeira empresa estatal comprometida com o desenvolvimento nacional é a Viação Férrea do Rio Grande do Sul.

 

“Eu não sei se Vargas ignorou tanto assim os Direitos Humanos, porque, afinal, tais direitos não eram respeitados na República Velha”

Industrialização

Getúlio Vargas estava impregnado de uma visão positiva do Brasil no futuro. A maturidade dessa reflexão pode ser percebida por outras pessoas que faziam parte do círculo, entre elas João Neves da Fontoura, que, ao amarrar simbolicamente seu tordilho no obelisco central da Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, faz o seguinte discurso: “O Brasil só poderia ser totalmente soberano quando fizesse as máquinas que fazem máquinas”.

Esta é uma ideia avançadíssima da industrialização e que foi feito por alguém que, simbolicamente, chegou a cavalo. A ideia da industrialização está profundamente sedimentada na cabeça de Getúlio e avançar na industrialização é indispensável para remover obstáculos — pensamentos que estão presentes na administração de Vargas nos anos 1930. Isso se reflete nos primeiros grandes atos da sua gestão, que são o Código Nacional de Mineração e o Código Nacional de Águas e Energia. Esses eram dois instrumentos decisivos para que o Brasil retirasse de concessionários, que estavam em cima das riquezas do Brasil, os recursos necessários para o desenvolvimento econômico. Essa ideia está absolutamente clara na cabeça de Vargas e de seus companheiros, que começam o trabalho inovando a administração pública nos anos 1930, logo depois da revolução.

Antes, porém, nos anos 1920, há um processo de redescoberta do Brasil do ponto de vista da identidade nacional, conhecido por muitos nomes, desde Semana de Arte Moderna até Movimento Antropofágico. Tais ideias impregnaram Getúlio, que chamou nomes importantes desse movimento para fazer parte de seu governo. O sonho brasileiro dele era pensado ensaisticamente nas instituições gaúchas, antes da República Velha , e tinha uma enorme vontade de pensar a identidade nacional em sua plenitude. Isso é importante porque explica o projeto de Vargas para o Brasil.

Periferia do mundo

Na visão de Getúlio, o país precisava se industrializar e urbanizar. Essa perspectiva fica impregnada durante 50 anos na história brasileira. Gosto de pensar a partir da seguinte lógica: com Vargas, contra Vargas, sem Vargas.

Ou seja, durante 50 anos o Brasil apostou na industrialização para sair da periferia do mundo e, mais do que isso, para integrar as reformas sociais. Tais reformas começaram com a Consolidação das Leis do Trabalho, a ideia de empresariado nacional, a criação de protagonistas ligados à modernização e, também, uma tentativa de olhar para o futuro. Levando em conta todos esses aspectos é que podemos interpretar as manobras políticas que Vargas fez. Havia uma enorme suspeita do positivismo gaúcho de que a elite paulista era contrária ao desenvolvimento industrial brasileiro. Apesar de ter salvado São Paulo, com a defesa do café, Getúlio não tinha nenhum carinho especial pelo estado paulista, ainda que também não tivesse horror. O fato é que como presidente não podia permitir que o café quebrasse, pois o país também quebraria.

Do ponto de vista de política econômica, ele fez o correto: salvou a economia do café e colocou-a sob tutela do Estado brasileiro. Assumindo a visão que vem do positivismo ibérico, é necessário que uma elite modernizadora comande o país, porque as elites tradicionais não são modernizadoras, o que se trata da perspectiva política central de Vargas. Do ponto de recrutamento de adesões isso foi muito interessante, pois ele construiu um governo que lançou mão dos tenentes, oficiais que tinham uma visão de futuro do Brasil com espectro muito amplo, que ia desde Luís Carlos Prestes até Juarez Távora, que não tinham um denominador comum e, por isso, Vargas optou por afastar da direção as elites tradicionais que não queriam que o país se desenvolvesse. Tal visão influenciou os intelectuais da periferia brasileira, e a gestão de Vargas recrutou Celso Furtado, Ignácio Rangel, Cleanto de Paiva Leite e Soares Pereira. Isso era uma coisa impressionante. Enquanto ele era presidente, buscou, inclusive de São Paulo, os setores que apostavam no desenvolvimento, por isso chamou o José Maria Whitaker para ser ministro da Fazenda, e também o Roberto Simonsen, que era o campeão da ideia da industrialização dentro do segmento empresarial.

Apoiadores

O projeto era de que o Brasil convivesse com uma agricultura tal qual ela era, enquanto deslocava a população para a cidade, que era o lócus da industrialização e que daria origem a dois grupos sociais inovadores, por definição, que eram os trabalhadores urbanos e os empresários nacionais.

Os apoiadores de Vargas eram os que apostavam em uma visão de futuro, especialmente o seguimento militar, pois eles haviam ido para a Prússia para estudar a organização alemã, o desenvolvimento político, institucional e econômico, e depois os militares foram para a França para estudar. Esses tenentes estavam com Vargas e Vargas com eles.

Então a modernização brasileira — industrializada e urbana — está na cabeça dele antes de ser presidente e é um norte que atravessa anos de vida do país. Tal aspecto pode ser percebido em toda a indústria, onde a batalha da Companhia Siderúrgica Nacional é um elemento-chave no controle da base dos recursos naturais, como, por exemplo, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco, na campanha do petróleo, que começa em 1937, que vai desembocar na Petrobras nos anos 1950.

Tinha ainda a visão de que o Brasil tinha que sair da costa para o interior, a chamada Marcha para o Oeste, a ideia de defesa nacional com medidas, como, por exemplo, a criação dos territórios federais, período em que se consolida o Acre. Ele tinha uma imensa preocupação em proteger o país — e isso é absolutamente transparente na gestão territorial de Vargas —, como também sabia que o avanço da América Latina dependia da cooperação entre Brasil e Argentina e, por isso, faz um movimento de aproximação do Perón .

 

“Vargas se projetou nessa visão positivista e entendeu que para controlar as elites que dominavam o país e substituí-las por uma nova elite precisava fazer isso mediante um governo forte”

Projeto

Em termos de política externa, Vargas faz coisas inteligentes, que vão desde negociar com a Alemanha e depois se articular com os Estados Unidos, mas mantendo a integridade nacional, sem ceder nos aspectos substantivos de seu projeto de Estado. A Era Vargas vai prosseguir de forma muito clara depois que ele se suicidou, pois os anos 1950 levam às últimas consequências os planos de Vargas.

A indústria automobilística, por exemplo, Vargas tentou começar com a Safra Nacional de Motores, com o caminhão Feneme, e criou uma empresa nacional para consertar motores de aviação, pois sabia que para um país como o nosso a aviação era fundamental.

A mão de Vargas está em tudo que diz respeito ao futuro brasileiro, por isso fico incomodado com a ideia transmitida sistemicamente por Fernando Henrique Cardoso de que a Era Vargas havia terminado, discurso dele quando presidente e que ele próprio acabou levando ao fim o projeto varguista, mas não colocou nada no lugar e hoje estamos órfãos de um projeto nacional. Aliás, não sei bem se o projeto atual é o Brasil voltar a ser periferia em um sistema mundial globalizado. Eu não gosto, absolutamente, desse caminho, mas parece ser o caminho que está colocado na atual conjuntura.

IHU On-Line – Como foi o processo político desencadeado ao longo das últimas décadas do século XX para dar fim à chamada “Era Vargas”?

Carlos Lessa – A minha interpretação, que não é livre de distorções associadas ao meu modo de pensar, é de que o Brasil adotou a democracia sem ter levado essa discussão a sério, porque só se leva a democracia para valer quando se discute a matriz autoritária brasileira.

Então sai a Constituição de 1988, que é bastante avançada, ainda que tecnicamente com algumas imperfeições, mas sai o documento discutindo o que estava por trás do autoritarismo brasileiro. Na verdade, eu, como tantos outros que fizeram oposição ao regime, praticava a seguinte simplificação: todos os problemas do Brasil derivavam do governo militar e a democracia seria uma panaceia que resolveria tudo.

Mas a realidade é que a democracia foi só simbolicamente conquistada. Ela não foi discutida nas suas características e experiências passadas com a cultura do Brasil. Os militares tinham se apropriado das ideias de desenvolvimento, que não fizeram, e levaram adiante a profecia de que no ano 2000 o Brasil seria uma potência mundial, sem contar o acordo militar com os Estados Unidos e o acordo nuclear com a Alemanha, tudo isso nos anos 1970.

Houve uma espécie de exorcismo jogando fora tudo isso em nome de uma solução universal, que seria a democracia. Só que o processo inflacionário foi em frente, mesmo com o fim do regime militar, a economia tinha muitos problemas, e na Constituição de 1988, antes mesmo da tinta secar, o ministro do Sarney, Maílson da Nóbrega, dizia que o Brasil não era governável com tal Carta Magna, tanto que de lá para cá são mais de 70 emendas constitucionais, e já não sei mais qual é a Constituição brasileira. Eu admiro muito os advogados que trabalham em um universo de dúvidas colossal. Então institucionalmente estamos em uma terra em transe, porque eu duvido que um brasileiro médio consiga, atualmente, compreender a nossa Constituição.

 

“O Brasil foi uma república de empreiteiros e agora é um império de banqueiros"

A visão de muitas das gerações que sucederam a queda do regime militar é que a causa da democracia não funciona, mas isso não é verdade. Penso que a democracia está funcionando, claro que ainda não é perfeita, mas houve um avanço enorme, e agora percebemos também uma maior vigilância social sobre o comportamento dos homens públicos, um processo de reajuste nos padrões de comportamento político brasileiro. Entretanto, não temos ainda um projeto nacional, então a era Vargas foi tratada com desprezo pelas pessoas vinculadas à globalização, que arrebentaram o planejamento brasileiro, privatizaram boa parte das empresas públicas, fizeram um processo de concessões esquisito, terminaram, inclusive, leiloando Libras, que é o futuro brasileiro em matéria energética. Eu vejo isso com muita preocupação porque há a falta de um projeto de país.

IHU On-Line – Como surgiu a impressão de que a “Era Vargas” havia sido superada?

Carlos Lessa – Esse foi o discurso do Fernando Henrique e de todos a favor da globalização. Esse é também o discurso de todos que dizem que o Brasil será o celeiro do mundo, e o país é primário exportador de soja, de café, de proteína branca, proteína vermelha, minério de ferro e assim por diante. Trata-se de uma ideia de que o Brasil pode se tornar uma sociedade desenvolvida por meio dessas coisas, o que não é verdade.

O fato é que as pesquisas indicam que houve, realmente, um avanço enorme nas taxas de emprego depois do ano 2000. Isso é formidável, como também a consistência de um aumento real do salário mínimo, poder de compra, o que gerou um efeito daquilo que se chama a nova classe média, cujo termo não me agrada, ainda que considere importante a incorporação ao consumo e à vida material de milhões de famílias.

Entretanto, o que não é positivo é a criação muito baixa de empregos de qualidade. A ausência de garantias para os padrões de vida que foram obtidos nos últimos anos, tais como praticar a melhoria da distribuição de renda a partir de uma situação econômica internacional a qual o Brasil viveu e que é extremamente favorável, ou seja, o boom das matérias-primas e dos alimentos.

IHU On-Line – É possível compreender a ascensão de Lula e seu forte apelo popular sem compreender Getúlio Vargas?

Carlos Lessa – Aparentemente, o Lula, antes de ser presidente, falava mal da Era Vargas e chamava a CLT de AI-5 dos trabalhadores, nas palavras do próprio Lula. Inclusive ele se colocava como inovador popular brasileiro e é verdade que quando ele se elegeu ganhou um capital político enorme, mas suas inovações foram muito tímidas, além disso, ele não fez nenhum movimento para se apropriar da lenda de Getúlio, ao contrário, é um discurso paulista contra o Vargas. Na minha opinião ele continuou a demolição da Era Vargas em um ritmo mais lento, e não há nada mais simbólico que o Leilão do Campo de Petróleo de Libras.

Para fins de explicação simplificada, o Brasil foi uma república de empreiteiros e agora é um império de banqueiros, por culpa das administrações passadas. Aliás, se o Lula pode ser corretamente valorizado e aplaudido pela política de salário mínimo, ele também fez a política que fez surgir Eike Batista , uma invenção petista.

IHU On-Line – O que país deixou de aprender com Vargas e quais são as possíveis consequências da ausência de um claro projeto de Estado para o Brasil a longo prazo?

Carlos Lessa – O Brasil pensa muito pouco sua história, e nisso somos radicalmente diferente dos chineses. Não penso que devemos mergulhar na história para exaltá-la, mas para entender o presente e olhar para o futuro. É extremamente importante que se recupere a Era Vargas e que se pergunte, diante dos tempos atuais, o que do projeto Vargas deve ser preservado e modificado. Ou seja, esse é o pensamento que o chinês faz sobre a vida na China.

No Rio de Janeiro, eu tenho uma empresa pequena que fica perto de uma comunidade pobre onde foi instalada uma Unidade de Polícia Pacificadora – UPP, e essa força de defesa começou a vigiar essa comunidade. Vez por outra, os militares passavam na minha empresa para usar o banheiro ou tomar água, e conversando com um sargento eu comentei sobre o Getúlio Vargas e ele não sabia quem era. A imagem de Vargas é evanescente.

IHU On-Line – A ausência de um projeto claro de país gera que tipo de dependência?

Carlos Lessa – Vargas fez um acordo político que era mais ou menos o seguinte: não mexo no campo e crio as cidades com o empresariado e o operariado. No contexto atual a pergunta é a seguinte: o Brasil pode parar de desenvolver as forças produtivas? Não vejo como. Porque apesar de termos gerado muitos empregos, o que é ótimo, metade desses cargos tem salários abaixo de mil reais por mês. Além disso, estamos com lacunas enormes em saúde, educação, habitação, segurança, ou seja, temos ainda que expandir muito as condições gerais de nossa população, o que não é possível sem desenvolver as forças produtivas. Vivemos muito a dependência de se a economia chinesa vai ou não puxar a economia mundial.

A Europa não é capaz de puxar a economia mundial, os Estados Unidos estão se segurando com modéstia. Estamos vivendo tempos muito difíceis do ponto de vista das tendências econômicas mundiais. Vivemos, também, tempos duvidosos em termos geopolíticos. Nós temos de olhar para dentro de nós e buscar referências importantes para pensar nossa história, e uma delas é Getúlio Vargas. Isso não significa que vai se repetir o que Getúlio fez, a história só se repete como farsa, mas não é possível desconhecê-la. Penso que Fernando Henrique expressando a aristocracia paulista decretou uma espécie de maldição de que teríamos de acabar com a história brasileira.

 

“Não sei se surgiu outro projeto, mas o que houve, aparentemente, foi uma adesão brasileira entusiástica à globalização”

IHU On-Line – Como explicar a contradição de Vargas, principalmente em sua primeira fase como presidente, de usar um regime ditatorial para defender seu projeto de Estado e os trabalhadores, mas ter ignorado preceitos dos Direitos Humanos?

Carlos Lessa – Eu não sei se Vargas ignorou tanto assim os Direitos Humanos, porque, afinal, tais direitos não eram respeitados na República Velha. A ideia da ditadura de Vargas é um pouco complicada, pois o positivismo gaúcho-ibérico estabelecia que o governo poderia ser exercido pela mesma pessoa em muitos períodos, mas com o tempo deveria haver um enorme controle sobre essa pessoa.

Vargas se projetou nessa visão positivista e entendeu que para controlar as elites que dominavam o país e substituí-las por uma nova elite precisava fazer isso mediante um governo forte. O que seus adversários políticos fizeram foi carimbar essa postura como ditatorial.

Entretanto, havia, sim, violência política no período Vargas, mas isso não é uma prática inaugurada por ele, pois existia na República Velha. Não acho que ele seja um modelo para a defesa dos direitos civis, mas nos direitos sociais ele deu um passo gigantesco à frente, com a Consolidação das Leis do Trabalho, logo no começo do seu governo. Penso que chamá-lo de ditador é um equívoco; ele foi, sem dúvida, um governo forte. Monitorava toda a organização política, tanto que introduziu dois partidos: o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB e o Partido Social Democrático - PSD. Para demonstrar o prestígio que tinha, elegeu-se senador e deputado com uma vantagem enorme e depois foi para São Borja, em um exílio interno dentro do próprio país. Foi, reitero, um governo forte, mas ditador no sentido pior da palavra eu não gosto de aplicar a ele.

IHU On-Line – Que outros projetos de nação surgiram no Brasil nesses quase 60 anos da morte de Getúlio Vargas?

Carlos Lessa – Não sei se surgiu outro projeto, mas o que houve, aparentemente, foi uma adesão brasileira entusiástica à globalização. Houve uma redução da visão de nosso futuro, porque estamos querendo ser celeiro, fornecedores de suprimentos para o mundo. Aliás, não tenho nada contra o Brasil exportar alimentos, mas colocar o comando da política a serviço disso como um sonho nacional é um erro.

Na minha perspectiva, nós saímos de um projeto nacional, a Era Vargas, e fizemos um esforço de demolição das instituições criadas por ele, visível nas emendas constitucionais que foram desmantelando peças fundamentais do aparelho de Estado, e não colocamos nada no lugar. Não acho que haja um projeto, apenas um anseio de “ir a Miami fazer compra” [sic] e absorver essa modernidade pela sua dimensão de consumo, e não pela dimensão de desenvolvimento e capacidade de sustentação dos padrões já alcançados.

Nós dissolvemos a visão de Vargas e não colocamos nada no lugar, mas devemos colocar em breve, porque a ideia de que o mercado é capaz de produzir o paraíso já está desmoralizada mundialmente. O que aconteceu agora é um restabelecimento de linhas geopolíticas extremamente engessantes. O Brasil faz parte dos Brics , mas três dos países integrantes dos Brics têm submarino nuclear e bomba atômica e nós não temos nada, tampouco uma polícia de fronteira eficiente. Estamos diminuindo os investimentos de soberania nacional, e por isso não vejo nosso país no grupo. Penso que é uma expressão politicamente conveniente, astuta, para fazer um jogo de figurações, mas não se trata de nenhum projeto, pois continuamos fazendo parte da periferia do mundo. O projeto que o país deveria levar à frente com o máximo de intensidade é a União Sul-Americana , que tem uma dificuldade imensa de articulação porque o Brasil é tão grande e os outros países são tão pequenos, fazendo com que sejamos olhados com suspeição.

IHU On-Line – Qual o grande legado de Getúlio Vargas para a política nacional brasileira? Qual a lição política daquele que foi um dos maiores nomes do país no século XX?

Carlos Lessa – A Era Vargas mostra que é possível um país que era praticamente um cafezal se transformar na sétima economia industrial do mundo. Depois de termos ocupado essa posição não devemos abrir mão do sonho industrial e combiná-lo melhor com a observância dos direitos civis, da confiabilidade democrática, fortalecimento dos institutos federativos, etc. Se não formos capazes de fazer essas coisas estamos jogando fora a Era Vargas, como se jogássemos a água suja da bacia com o bebê dentro. Temos que pensar a Era Vargas no que ela é fundamental para construirmos o futuro brasileiro.

(Por Ricardo Machado)

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A reinvenção da Era Vargas e o desenvolvimento nacional. Entrevista especial com Carlos Lessa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU