Xadrez para entender a história do cabo das vacinas

Foto: Pixabay

03 Julho 2021

 

"No final da ópera, a CPI da Covid tem agora nas mãos o mais trapalhão processo de corrupção da história, quatro grupos se digladiando, cada qual querendo tirar sua casquinha – os Miranda, os Bolsonaro-Senah, o esquema Barros e os coronéis de Pazuello", escreve Luis Nassef, jornalista, em artigo publicado por Jornal GGN, 02-07-2021.

 

Eis o artigo.

 

O dia de ontem terminou com a mídia, em geral, em franca confusão a respeito do caso do cabo da Polícia Militar, Luiz Paulo Dominguetti, que se apresentou no Ministério da Saúde oferecendo 400 milhões de vacinas da AstraZeneca. Dizia representar a distribuidora americana, Davati Medical Supply.

 

Parece impossível qualquer relato que coloque lógica nessa loucura:

 

Peça 1 – os antecedentes

 

O presidente Jair Bolsonaro é denunciado pelo deputado Luiz Miranda, seu antigo apoiador, acusado de não ter tomado providências em relação a denúncias de irregularidades na compra de vacinas. Segundo Miranda, Bolsonaro teria manifestado seu descontentamento com Ricardo Barros, líder do governo, e pessoa que indicou o principal suspeito, o diretor de Logística do Ministério. Mas não tomou nenhuma atitude.

Miranda denuncia o caso para a mídia. Nos dias seguintes aumenta a fervura do caso e Ricardo Barros entra na linha de fogo.

 

Peça 2 – o cabo que vendia vacinas

 

De repente, aparece o cabo Dominguetti, da Polícia Militar de Minas Gerais, em uma sucessão de episódios de aparente falta de nexo – mas que têm uma lógica que será contada ao longo dessa matéria.

1. Um PM que não consegue sequer pagar o aluguel, com um salário de R$ 7.500, procura o alto comando do Ministério da Saúde oferecendo 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca. Já é estranho. O preço de US$ 3,00 por vacina é mais estranho ainda.

2. Mesmo assim, é recebido pelo alto comando do Ministério da Saúde em um almoço em Brasília. Lá, teria sido feita uma proposta de propina de um dólar por cada vacina oferecida. Ou seja, os membros da Saúde acreditavam na proposta. Então, qual o trunfo do cabo da polícia?

3. O cabo rejeita a proposta de propina e sai da reunião. Qual o seu trunfo para rejeitar algo que poderia resolver sua vida para sempre? Obviamente a percepção de que tinha um trunfo maior nas mãos.

4. Tempos depois dá uma entrevista à Folha denunciando o pedido de propina. Antes que a informação fosse apurada, é sumariamente demitido o diretor de logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, indicado pelo líder do governo Ricardo Barros, uma medida de interesse dos Bolsonaro. Como pode cair um diretor com base em uma denúncia de difícil verossimilhança?

5. O cabo é convocado pela CPI e, durante seu depoimento, apresenta um áudio de conversa do deputado Luiz Miranda com o representante da Davati Medical Supply, tentando desqualificar Miranda. Depois, se descobre que era um áudio falso, de uma conversa antiga, anterior às vacinas.

 

Peça 3 – as redes sociais e a universalização dos golpes

 

Os jornalistas mais antigos – como eu – lembram-se bem dos golpes periódicos que sacudiam os incautos, em torno de pirâmides. Teve a pirâmide das cartelas de ouro, do boi gordo, da avestruz. Bem antes, a pirâmide dos sapatos de Franca, dos LPs.

Descobri a estrutura dos golpes através do Almeida, distinto amigo frequentador do bar do Alemão. Almeida era vendedor de livros. Mas vendeu Boi Gordo, Avestruz e tudo o que aparecia.

Quando surgiu a Telexfree, o quadro clareou. Há no país grupos de golpistas que se conhecem e periodicamente se juntam para determinados golpes, atuando como franquias dos golpistas.

Com a Internet e as redes sociais, esse modelo tornou-se muito ágil. O episódio Telexfree, por exemplo mostrou uma rede internacional de franqueados, que atuaram contra brasileiros nos Estados Unidos, Franca e Portugal.

Em geral, os estudos de segurança focam as grandes quadrilhas de drogas. Deve ter algum estudo sobre as redes de punguistas eletrônicos, mas não conheço.

É em cima dessa rede que se organiza a tal Davati Medical Supply. Trata-se de uma distribuidora do Texas de propriedade de um tal Herman Cardenas.

 

Seu jogo consistia no seguinte:

 

1. Identificava parceiros em países, capazes de vender para governos federais ou municipais ou para grupos específicos.

2. O intermediário se apresentava como seu representante e conseguia cartas de intenção dos compradores.

Há duas hipóteses sobre o que fazia com as cartas de intenção. O mais provável é que juntasse os pedidos e, com base neles, convencesse alguma fabricante de terceira linha a fornecer vacinas.

Em fevereiro, tentou aplicar esse golpe no Canadá – conforme mostramos dias atrás. Procuraram vender vacinas da AstraZeneca para a Federação das Nações Soberanas do Canadá, por US$ 21 milhões. Houve alertas do governo para o golpe.

Na ocasião, a CBS, rede americana de TV, procurou Cardenas para que informasse onde conseguiria as vacinas. Respondeu de forma dúbia, dizendo ter sido contatado por um intermediário oferecendo o produto.

 

Peça 4 – a primeira abordagem no Brasil

 

No Brasil, provavelmente a primeira tentativa da Davati com justamente com o deputado Luiz Miranda. É o que se depreende do áudio divulgado pelo cabo Dominguetti na CPI.

Fez uma falsa denúncia – o áudio era de um período anterior ao das vacinas. Mas cometeu uma revelação não captada pela CPI: o áudio era de uma conversa do deputado Luiz Miranda com o representante comercial da Davati no Brasil. Na conversa, falavam de vendas de produtos, não necessariamente de vacinas. Ou seja, morando em Miami, Miranda percebeu um bom espaço no Ministério da Saúde, onde já trabalhava seu irmão. Mas bateu nos dois esquemas pesados: o do diretor ligado a Ricardo Barros e dos coronéis, ligados aos Bolsonaro.

 

Peça 5 – a segunda abordagem

 

Com Luiz Miranda falhando, a Davati procura o segundo caminho, a Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), uma organização do Distrito Federal, presidida por um bispo, o reverendo Amilton Gomes, tendo como membro ilustre Carlos Alberto Rodrigues Tabanez, de um clube de caça e tiro, especializado em armas e que deu cursos para o grupo de militares que foi par ao Haiti – comandados pelo general Augusto Heleno.

Ontem, a Agência Pública divulgou reportagem minuciosa sobre as relações dessa Senah com os Bolsonaro.

No dia 4 de março passado, o grupo foi recebido no Ministério da Saúde, presentes o reverendo Gomes e o cabo da polícia Dominguetti. O condutor do grupo foi um major da Força Aérea Brasileira. Teria participado também o tenente-coronel Marcelo Branco, assessor do DLOG na gestão de Roberto Dias.

Em resposta ao Estadão, Cardenas, da Davati, afirmou que a inclusão de Dominguetti foi exigência do próprio governo brasileiro.

 

Peça 6 – o vendedor que não tinha vacinas

 

Mas como se concretizaria o golpe, se os supostos vendedores não tinham vacina para entregar? Recorro a um expediente: a teoria do fato, através do qual monta-se uma narrativa que permite encaixar todas as peças.

O golpe já tinha sido preparado pela Medida Provisória no. 1.026, assinada em janeiro por Bolsonaro e preparada pelo deputado Ricardo Barros. Foi o que aguçou o apetite de harpias de vários naipes.

Conforme levantamento da repórter Patricia Faerman, a MP previa os seguintes pontos:

Dispensava a compra de vacinas de licitação, estendendo a possibilidade para a administração pública direta e indireta.

Para a compra, dispensava o registro sanitário ou a necessidade de autorização temporária de uso emergencial.

Permitia o pagamento antecipado, “inclusive com a possibilidade de perda do valor antecipado”, e trazia uma série de blindagens para os vendedores, como a não penalização da empresa, em caso de não entrega, e a garantia de confidencialidade do contrato.

Permitia as vendas por empresas sem habilitação jurídica, facilitando a vida da Precisa, empresa envolvida em vários rolos na gestão da Ricardo Barros na Saúde.

Possibilidade de cobrar mais pelas vacinas do que as estimativas do contrato.

Permite a apresentação de termos de referência simplificados, evitando questionamentos maiores sobre a qualidade do produto.

Enfim, tudo preparado para o golpe, garantindo de antemão o pagamento antecipado e a não punição do vendedor, em caso de não entrega do produto. Tudo isso justificado pela carência de vacinas, situação provocada pelos sucessivos atrasos no fechamento de contratos de compra.

Para que o golpe fosse bem sucedido, seria necessário criar o senso se urgência. E conseguiu-se atrasando criminosamente a compra oficial de vacinas.

 

Peça 7 – o desfecho da ópera bufa

 

Juntando todas essas peças, fica claro o jogo:

1. Quando o vale-tudo é instaurado, desperta a cobiça de vários grupos. O primeiro procurado pela Davati foi Miranda, que já mantinha negócios com ela.

2. Ao mesmo tempo, desperta a cobiça de dois grupos ancorados na Saúde: do esquema Ricardo Barros, dominante na Saúde e dos coronéis levados pelo general Pazuello.

3. Miranda não consegue penetrar na estrutura da Saúde e denuncia o caso para Bolsonaro, que não toma nenhuma atitude.

3. Ao mesmo tempo, avança o esquema do tal reverendo Amilton, provavelmente ligado a Flávio Bolsonaro. Mas esbarra também no esquema de Ricardo Barros na Saúde e na fome de militares incrustados na máquina por Pazuello. Ou seja, dois grupos de fora, ligados ao bolsonarismo, que tem que adoçar a mão do grupo de dentro.

4. Miranda bota, então, a boca no trombone, criando uma situação política delicada para Bolsonaro, que provavelmente já estava irritado com Roberto Dias, o diretor de logística ligado a Barros. O deputado Barros entra na linha de fogo da mídia e do Ministério Público.

5. Provavelmente, aí, os bolsonaristas perceberam que poderiam matar dois coelhos com uma só cajadada. E convocam o intrépido cabo Dominguetti. Primeiro, ele denuncia a tal propina para a Folha e é convocado para a CPI. Antes mesmo que a denúncia fosse apurada, demite-se o homem de Barros na Saúde.

Na CPI, Dominguetti tenta derrubar o segundo pino, o deputado Miranda, com a tal gravação. É desmentido, mas ajuda a mostrar os contatos de Miranda com a Davati,

No final da ópera, a CPI da Covid tem agora nas mãos o mais trapalhão processo de corrupção da história, quatro grupos se digladiando, cada qual querendo tirar sua casquinha – os Miranda, os Bolsonaro-Senah, o esquema Barros e os coronéis de Pazuello.

Para encerrar a ópera, apagam-se as luzes do teatro e coloca-se no ar as orações de Onix Lorenzoni pregando a honestidade absoluta do governo.

E o bravo cabo Dominguetti? Não acontecerá nada com ele. Ele praticou o chamado “crime impossível”. Ou seja, não havia a menor possibilidade de cometer o crime porque jamais teria a vacina para oferecer.

Além disso, o estelionato é um crime de duas mãos – que presume que a outra parte também quer levar vantagens. Por exemplo, quando alguém oferece um bilhete premiado para outra pessoa, alegando necessidade. Quem vendeu praticou o estelionato; quem comprou, procurou tirar vantagem.

Por isso, o cabo Dominguetti poderá sair ileso do episódio. Afinal, é apenas um bagrinho em um mar coalhado de tubarões.

 

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