“As vacinas podem ajudar, mas é preciso intervir para que a covid-19 não seja seguida pela covid-20, covid-21, etc.”. Entrevista com Rob Wallace

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

17 Novembro 2020

As universidades neoliberais criam “especialistas” para servir às necessidades do poder, esse lugar onde são definidos quais são os problemas e a direção das pesquisas. É preciso mudar as perguntas, delinear novos problemas, diz o filósofo Slavoj Žižek. Rob Wallace é um desses cientistas que fazem perguntas incômodas para o capital. Biólogo evolutivo, ecólogo e pesquisador na Universidade de Minnesotta [Estados Unidos], em 2016, publicou “Big Farms make big flu”, onde previa o surgimento de pandemias como a atual, aceleradas pelas transformações capitalistas das últimas décadas. O livro acaba de ser publicado em espanhol (“Grandes granjas, grandes gripes”, Capitán Swing, 2020). Em simultâneo, publica-se em inglês “Dead Epidemiologists” (2020), dedicado inteiramente à crise da covid-19.

 

A entrevista é de Josefina LMartínez, publicada por El Salto, 16-11-2020. A tradução é do Cepat.

 

Wallace defende que a abordagem de uma pandemia deve ser multidisciplinar, já que “nenhum dos fatores mais amplos que determinam a evolução da gripe e a resposta aos medicamentos pode ser encontrados com o microscópio”. É necessário levantar os olhos para enxergar uma “geografia que conecte as relações entre os organismos vivos e a produção humana”. Afirma que os vírus encontram “fendas na estrutura epidemiológica do mundo” e, embora não exista nenhuma conspiração secreta - este vírus não foi esboçado em um laboratório -, sim, existe uma aliança estratégica entre as multinacionais, a agroindústria e as novas pandemias globais.

 

De seu trabalho surgem questões inquietantes: Se este tipo de pandemia se enraíza nas tramas da produção capitalista, como pode uma vacina ser a solução que todos esperamos? Qual está sendo o papel dos Estados frente à crise? Em inícios de novembro, quando a segunda onda parece imparável em todo o mundo, Rob Wallace reserva um tempo para conversar pelo Zoom sobre estes assuntos.

 

Eis a entrevista.

 

Em “Big Farms make big flu”, explicava que a gestação de crises pandêmicas está muito relacionada à expansão da agricultura intensiva e aos centros de produção industrial de alimentos. O poder dos agronegócios nos condena a crises virais recorrentes? 

A indústria da alimentação está expandindo as fronteiras florestais e isso está aumentando a interface entre a fauna silvestre, que acolhe alguns dos patógenos mais mortais, com o rebanho industrial criado nessas margens, e também com os trabalhadores que se ocupam deles. Produz-se um aumento no tráfego destes novos patógenos dos animais selvagens, por meio do rebanho e a mão de obra, para as cidades locais de regiões que estão conectadas com a rede global.

 

Por isso, um surto que surge em uma caverna no centro da China, no prazo de semanas pode acabar se propagando em Miami. Antes, isto era contido pela complexidade dos ambientes florestais locais, mas essas matas foram mutiladas em sua complexidade, de forma que permitiu aos patógenos se estender para os seres humanos nessas regiões, sobre o rebanho, e de uma forma e outra, chegar ao outro lado do mundo.

 

 

De maneira que foram abertas “portas” que os ecossistemas mantinham fechadas. 

O modo como a agricultura intensiva avança em sua produção, focada somente nos lucros, destruiu a ecologia que bloqueava e marginalizava os piores patógenos. Este é o marco geral que também explica o surto de ebola na África ocidental. Primeiramente, o ebola havia surgido em alguns povoados, matando centenas de pessoas, mas em 2013 se estendeu, contagiando 35.000 pessoas, matando 11.000 e deixando cadáveres jogados nas ruas de grandes cidades.

 

É um processo gerado com a introdução de novas monoculturas, como as plantações de óleo de palma, que destroem as florestas. Este é um extremo do circuito da produção, nas fronteiras florestais. Mas, por outro lado, temos as granjas industriais de frangos e porcos, instaladas nas redondezas de grandes cidades e que podem abrigar os piores patógenos das gripes, que podem contagiar os seres humanos nas proximidades.

 

 

O vírus que gera a Covid-19, também chamado SARS-CoV-2, surgiu em morcegos no sul e centro da China. As fronteiras interiores foram expandidas lá pelo desenvolvimento industrial e o desmatamento, aumentando essa interação da qual falava antes. Desde que o SARS-1 apareceu em 2002, os cientistas foram capazes de detectar todos os tipos de coronavírus, não só na China, mas no mundo. E os coronavírus se espalharam para todos os tipos de animais: rebanho industrial, animais silvestres que são vendidos como alimento, e também contagiando diretamente humanos. Já tivemos três grandes episódios mortais: SARS-1, MERS no Oriente Médio, e SARS-2, e tudo isto aconteceu apenas nos últimos 20 anos.

 

Ressalta que é preciso reajustar a visão acerca dos processos que estão na base da extensão dos novos vírus: processos pelos quais organismos vivos se transformam em mercadorias que percorrem cadeias de valor, em diferentes regiões. Qual é a responsabilidade das grandes multinacionais nesta crise? 

A agricultura capitalista exerce seu papel de duas maneiras: na China, está expandindo as fronteiras silvestres. Mas não se trata apenas da China. Grande parte do investimento estrangeiro provém de outras partes do mundo. Você tem por exemplo o Goldman Sachs, que investiu 3 bilhões de dólares em granjas de frangos na China. Tivemos também surtos de vírus nas redondezas da Cidade do México por causa de gripes que estavam circulando em granjas de propriedade norte-americana. Na Europa, tiveram o H5NX e não nos esqueçamos do Zika no Brasil. Ou seja, os patógenos estão emergindo em todo o planeta, não é apenas um fenômeno chinês.

 

 

Este é um fenômeno global. A economia natural anterior foi transformada em uma agricultura industrial, um processo no qual os alimentos são considerados como qualquer outro insumo e os animais são tratados antes como mercadorias do que como animais. O problema é que, no curso desta industrialização da produção de alimentos, também foram industrializados os patógenos que circulam ao redor deles, razão pela qual se tornaram mais perigosos, mais mortíferos, mais contagiosos e capazes de se transmitir rapidamente de uma ponta à outra do planeta.

 

Algo inquietante que surge de sua análise é a pergunta acerca de qual efetividade uma vacina pode ter. Hoje, estão depositadas grandes expectativas no desenvolvimento das vacinas para a Covid-19, quase como fosse certa cura milagrosa. Mas as condições que possibilitam a propagação destes vírus seguem presentes... 

As vacinas são uma parte importante das respostas médicas, de modo algum me oporia a elas, já que fazem parte dos avanços para que as inovações médicas sejam acessíveis à população. O problema é que nunca houve uma vacina para o coronavírus, e mesmo quando agora for alcançada, há uma boa possibilidade de que só seja parcialmente protetora. Por conta disso, há uma grande possibilidade de que o coronavírus SARS-2, o covid-19, continue circulando. Mesmo assim, a vacina pode ter um papel importante, como uma ferramenta para buscar frear esta pandemia.

 

 

O maior problema é que o modelo de produção de vacinas é sempre posterior aos surtos da pandemia. E nada faz para impedir estes surtos antes que ocorram. Portanto, em certo sentido, são uma distração. Ainda que necessárias, também podem ser uma distração acerca das medidas necessárias para evitar que os patógenos continuem se expandindo nesta magnitude e desta forma.

 

Quais medidas? 

Isto implicaria intervir na agricultura de uma forma que fosse possível reintroduzir, de algum modo, uma diversidade de espécies que pudessem atuar como um muro contra estes patógenos, para evitar sua aceleração e sua transformação em agentes perigosos para todo o mundo. E para isso seria necessário introduzir diferentes raças, permitir autonomia aos produtores, com possibilidades de escolher o que cultivam e onde, além de contar com apoio financeiro para criarem todos os tipos de animais diferentes, o que introduz a diversidade não só em nível de granja, mas em paisagens inteiras. De tal modo que qualquer patógeno que surja não seja capaz de ganhar velocidade, nem de se espalhar em todo o território.

 

 

Em essência, seria necessário fazer o que a maioria da classe política não quer fazer, já que o agronegócio é um poder político forte em quase todos os países, em termos de impor o seu modelo econômico, que gera muitos lucros. Precisamos de algo diferente. E mesmo quando as vacinas talvez possam ajudar, em meio a uma emergência, outras intervenções estruturais são necessárias para que a covid-19 não seja seguida pela covid-20, covid-21 e covid-22.

 

Os Estados oferecem respostas parciais frente à emergência, mas não tomam medidas estruturais. Esta parece ser a tônica geral. Em seus trabalhos, destaca que a falta de investimento nos sistemas de saúde abriu terreno para a circulação das doenças pandêmicas. Nesta segunda onda, são impostos toques de recolher que restringem a mobilidade, mas indústrias não essenciais, bares e outros negócios são mantidos abertos. Qual é a sua opinião a respeito da gestão da crise nos Estados Unidos e Europa? 

Assim como nos Estados Unidos, a Europa está organizada a partir de um paradigma político e econômico que recompensa os ricos, tornando-os mais ricos. Portanto, se você precisa começar a lidar com os investimentos necessários para enfrentar a escalada da pandemia de Covid, isto deve implicar algo distinto. O paradoxal é que em países autocráticos como o Vietnã e a China, a população agora é mais livre do que em países ocidentais, porque fizeram o necessário no início da crise e, com isso, sua população pode sair livremente às ruas. Mas os governos ficaram tão focados em que aqueles que faziam dinheiro tivessem liberdade para continuar, que agora todo o restante está pagando o preço, em termos de saúde e direitos limitados.

 

 

Há alguns dias, publicou um novo livro: “Dead Epidemiologists”. O que pode nos antecipar? 

Pegamos algumas das lições que tiramos em “Big Farms make big flu” e as aplicamos à Covid-19. O passo seguinte importante é compreender as diferentes maneiras como os diferentes vírus podem emergir dentro do mesmo sistema. Antes, descrevi como o ebola emergiu em um extremo dos circuitos da produção, perto da fronteira florestal. Falamos do surgimento das gripes em outra localização, mais perto das cidades, entre a produção industrial de rebanho gado.

 

E o covid-19 parece emergir em uma zona intermediária, expandindo-se dos morcegos e animais silvestres para o rebanho industrial, sendo transmitido durante anos pela China de diferentes maneiras, antes de aparecer em uma forma mais infecciosa em Wuhan. O livro explora as trajetórias do vírus, das cavernas na China, passando pelas salas de reuniões comerciais em Nova York, até os matadouros de animais no oeste dos Estados Unidos.

 

Falamos sobre as origens da agricultura industrial e a expansão de patógenos, em relação à emergência do capitalismo há centenas de anos. Mostra, de um modo que até agora não havia sido apontado, que os patógenos surgem não apenas nessas coordenadas de GPS em que podemos identificar mais facilmente sua presença. É preciso entender que a doença emerge de uma ponta à outra do globo e como o planeta está cercado pelos circuitos do capital, talvez as cidades mais perigosas sejam Nova York, Londres e Hong Kong, porque são grandes centros de capital que financiam o desmatamento e o desenvolvimento da industrialização em todo o mundo.

 

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