“Seria terrível que no próximo período tenhamos milhares dessas fotos, como hoje, porém de mortos pela fome”. Homilia de Carlos Castillo, arcebispo de Lima, diante das imagens dos mortos pelo coronavírus no Peru

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19 Junho 2020

Aos poderosos do Peru: “Organizemos as coisas para que todo mundo possa ter possibilidades”.

“A lembrança” – disse dom Carlos Castillo – “é algo mais forte que somente a mente, é algo que nos transforma completamente”.

“Nesta fragilidade, quase derrotados, ainda que não resignados, sofremos o assédio desta doença e da forma injusta com que se organizou o sistema de saúde”.

O arcebispo criticou assim o sistema de saúde, “é mais um sistema de doenças, porque está baseado no egoísmo e nos negócios, e não na misericórdia e na solidariedade com o povo”.

“Nós temos um único destino, sermos irmãos, banirmos o individualismo, que só busca enriquecer a nós mesmos, ganhar dinheiro à custa do outro e destruir; todos temos uma oportunidade”.

“Que todos tenhamos em nosso coração um forno que faz pedacinhos de pão fresco para os pobres e façamos possível uma pátria diferente, que no Peru renasça toda nossa pátria, desde o coração de Jesus”.

Essas são passagens da homilia de dom Carlos Castillo, arcebispo de Lima, Peru, proferida no domingo, 14-06-2020, em missa na Catedral de Lima, diante das fotos de todos os mortos pelo coronavírus no país.

A reprodução da homilia é de Religión Digital, 16-06-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Confira a homilia.

 

Irmãos e irmãs, nos reunimos para recordar, e recordar significa trazer alguém de volta ao nosso coração. Por isso queremos festejar essa festa de Corpus Christi, porque Jesus diz: “façam isso em memória de mim”, e a recordação é algo mais forte que apenas a mente, é algo que nos transforma completamente. Por isso, como disse o papa Francisco nesta manhã, quis deixar a hóstia, o pão e o vinho como sinais do seu corpo e do seu sangue para saborearmos profundamente, porque a escritura é uma recordação, mas que pode passar despercebida, porque nos é difícil fazer memória. A Palavra necessita algo tangível e tem que se colocar no corpo de tal maneira que sintamos o sabor profundo do que ocorreu com Jesus que entregou sua vida.


Foto: Arzobispado de Lima

Por isso, os sabores, especialmente em nossa cultura peruana, nos recordam muitas coisas, e o sabor amargo e duro destas mortes de nossos irmãos aqui presentes, através de um sinal simples, moderno, que é a fotografia, mas que recorda no coração o clamor de todo nosso povo para fazer um enterro digno, que foi impossível nesses casos devido às atuais circunstâncias e às medidas de segurança. Esse sabor amargo e duro, triste, diz o Santo Padre, se pode transformar em uma alegria e uma esperança quando saboreamos o sentido da morte de Jesus, que foi para nos dar vida, foi uma morte por amor. Ainda que tenha sido também um ato de violência injusta, também foi uma entrega generosa, e foi mais importante a entrega generosa de não descer da cruz e introduzir o perdão na história, abrindo assim as portas da esperança ao povo, inclusive aos pecadores, inclusive aos que o mataram.

E por isso, irmãos e irmãs, essas mortes desses irmãos nossos que abundantemente vocês em suas famílias nos enviaram, para que nossa Igreja possa agradecer a Deus por suas vidas, para bendizê-los e para que, recordando sua morte, possamos também entregá-los ao Senhor de forma digna, humana e cristã.

Eles também passaram pelas amarguras desta vida, chegando a situações extremas, porém onde a dor e a solidariedade se juntaram. E nós, hoje em dia, como não vamos nos unir a essas mortes e a essas entregas generosas de ajuda àqueles que sofreram, como não vamos tentar uni-las hoje profundamente com o Corpo de Cristo, que significa justamente isso, solidariedade, carinho pelo povo, esperança, ânimo, força.


Foto: Arzobispado de Lima

Por isso, hoje, o dia em que discretamente celebramos todos o Corpus Christi, em comparação com a enorme solenidade nas ruas com que se celebra em vários países e em nossa própria cidade. Nesta discrição, nesta simplicidade, nesta fragilidade, quase derrotados, ainda que não resignados pelo assédio desta doença e pela forma injusta com que se organizou o sistema de saúde, que é mais um sistema de doenças, porque está baseado no egoísmo e nos negócios, e não na misericórdia e na solidariedade com o povo, não na dignidade do povo. Nós queremos celebrar nesta simplicidade, com isso que o Papa convida hoje, a debilidade, a fragilidade, a sutileza da hóstia, que é um pão simples, porém, porque o saboreamos, sentimos a delicadeza de um Deus que nos trabalha por dentro e nos abre o coração e as mãos para ajudar.

Por isso, hoje, esta festa é uma festa profunda, porque a grande pergunta no Evangelho, que fazem os judeus, é “Como pode nos dar de comer a sua carne?”. Pensam que é um problema material, quando é um problema espiritual. Dizíamos há alguns dias: “quando eu tenho fome é um problema material, quando o outro tem fome, é um problema espiritual”, porque é um problema de atitude, de como saímos de nós mesmos. Diante do medo, da inquietação, nos fechamos, respiramos pela ferida, não entendemos, e quando o Senhor vem com sua comida sutil, faz-nos então entender e compreender nossas feridas porque Ele tomou a debilidade para convertê-la em uma fortaleza amorosa, não uma fortaleza de pretensão, nem crendo na unção divina. Ele que era de condição divina não reteve para si sua categoria de Deus, mas se aniquilou, para assumir a condição de servo, que é um apelo a todos os grandes da terra, para abrir seus corações e compartilhar o que eles têm, e esse pão partido e compartilhado é o sinal de que o maior na terra está no céu; o Pai, que enviou Jesus Cristo, não reteve para si sua categoria de Deus, nada foi feito por nós.


Foto: Arzobispado de Lima

E agora que esses nossos irmãos que nos acompanham aqui em suas fotos e todas as famílias que sofrem, agora que nos sentimos nada, o aniquilamento que está escondido, o amor da mãe que se aniquila para que o filho nasça, com o risco de morrer, é a fonte inesgotável do amor que nos ressuscita, nos levanta e nos destina a uma nova sociedade e também à Glória de Deus. Destina-nos a participar do reencontro prometido, unidos a todos os familiares que teremos, quando assim for. Hoje, são massivamente mais de 5.000 fotos de nossos irmãos que faleceram, de nossos amigos, de nossas mães, de nossos pais, de nossos filhos, de nossos irmãos e amigos, de nossos vizinhos.

Temos um destino único: sermos irmãos, banirmos o individualismo, que só busca enriquecer a nós mesmos, ganhar dinheiro à custa do outro e destruir. Todos temos uma oportunidade e pedimos especialmente aos mais poderosos de nosso país que se deixem sutilmente penetrar pela hóstia e que realizem essa sutileza abrindo as mãos e servindo os irmãos. O Papa nos disse: “vamos alimentá-los, não sejamos indiferentes, vamos dar-lhes trabalho, organizemos as coisas, para que todos possam ter possibilidades” e que hoje, irmãos, é urgente, porque um momento ainda mais difícil está chegando. Seria terrível se em um período próximo tivermos milhares dessas fotos, como hoje, mas de mortos pela fome; seria terrível se, na próxima vez, os mortos que vierem não forem por causa da covid-19, mas porque não abrimos nossos punhos e é essencial que aprendamos assim juntos, porque aprendemos o caminho individualista e acreditamos que tudo é fácil. Irmãos, não é fácil, implica a vontade de reconstruir nossos laços humanos e, acima de tudo, colocar o coração e o centro de nossa vida nos pobres.

Por esta razão, irmãos e irmãs, um maravilhoso futuro vem deste pão partido, que é apresentado a nós neste dia precioso de Corpus Christi, e por essa razão, Cristo, pedimos que seu corpo toque e ressuscite nossos corpos flagelados e mortos como resultado dessa pandemia. Mas, acima de tudo, também mudamos nosso egoísmo, aquele vírus terrível cujo antídoto é a Santa Comunhão. E é por isso que vamos nos sentir como nosso poeta César Vallejo sentiu-se, que sabia cantar a dor: “todos os meus ossos são estranhos, talvez eu os roubei, vim me dar o que estava preparado para outra pessoa, e talvez, se eu não tivesse nascido, outro pobre tomaria esse café, sou um mau ladrão, para onde irei”. Todos, irmãos, devemos uns aos outros, tudo o que temos é alheio e emprestado e temos que compartilhar, não podemos viver no egoísmo. É por isso que também dizia “e nesta hora triste eu gostaria de bater em todas as portas e implorar a não sei quem perdão, fazer pedaços de pão fresco e distribuí-los aos pobres, esses pedaços frescos que saem do forno de nossos corações”.

Que todos tenhamos em nossos corações um forno que faz pequenos pedaços de pão fresco para os pobres e possibilita uma pátria diferente; que no Peru toda a nossa pátria renasça desde o coração de Jesus, cuja festa celebraremos esta semana, para que, compartilhando nossa vida, possamos inspirar o mundo como uma terra “santificada”, com uma nova maneira de viver que provém precisamente de nossa religião cristã, que não se impõe, mas gera esperança, inspira e faz com que todos tenham o poema de Deus, com o qual ele nos criou, com o qual nos disse. Todos podemos recitá-lo e todos podem acreditar e seguir em frente, unidos ao papa Francisco, que inspira permanentemente todos da nossa América Latina. Sigamos o mesmo caminho todos os peruanos, ajudando uns aos outros e nos reunindo como hoje.

Eu só quero pedir perdão pelo fato de que vocês enviaram tantos irmãos, que levaria quase três ou quatro horas para citar cada um, por isso permitam-me hoje mencionar todos eles, pensando em cada um e orando por eles como em uma comunidade, de tal maneira que os únicos que mencionaremos são todos, e obrigado especialmente a todos os heróis e heroínas presentes aqui, que no coração de suas vidas deram a vida por todos aqueles que estavam infectados.

Deus abençoe nosso povo e que andemos com firmeza, com simplicidade e profundidade, para que o Senhor viva no Peru.

Palavras finais

Irmãos e irmãs, a Igreja reserva o incenso como um sinal de oferenda a Deus por todos os nossos irmãos falecidos, mas também pela água benta. Então agora vamos espalhar a água sobre o sinal das fotos que permita pelo menos a profunda memória de nossos irmãos que nos deixaram, para entregá-los ao Senhor e abrir em nós um espaço generoso de doação, calma, tranquilidade e encorajamento, e assim entregar nossas vidas para situações como as que eles viveram.

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“Seria terrível que no próximo período tenhamos milhares dessas fotos, como hoje, porém de mortos pela fome”. Homilia de Carlos Castillo, arcebispo de Lima, diante das imagens dos mortos pelo coronavírus no Peru - Instituto Humanitas Unisinos - IHU