Neocatecumenais rumo ao desaparecimento, com a ajuda do Papa

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01 Outubro 2019

Na sexta-feira, 20 de setembro, o papa Francisco recebeu em audiência na Casa Santa Marta o fundador do Caminho Neocatecumenal, Francisco “Kiko” Arguello, e a suas duas autoridades, María Ascensión Romero e o padre Mario Pezzi. Nessa ocasião Kiko presenteou o Papa com um desenho realizado por ele com a efigie de São Francisco Xavier, jesuíta e grande missionário na Ásia.

A reportagem é de Sandro Magister, publicada por Settimo Cielo, 30-09-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

O obséquio não foi casual. Uma relíquia distinta de São Francisco Xavier se conserva em Macau, na costa da China, onde a congregação vaticana “de propaganda” abriu em 29 de julho um dos seminários “Redemptoris Mater” para a formação de padres que pertencem ao Caminho, que já são mais de cem disseminados por todo o mundo. Na quarta-feira, 18-09, ao finalizar a audiência geral na praça São Pedro, o papa inclusive saudou os formadores e os alunos desse novo seminário, antes de sua partida para Macau. E, segundo um comunicado do Caminho, disse a Kiko: “Estou contente porque realizais a coisa mais importante da Igreja, que é evangelizar, e não o fazeis com proselitismo, mas sim mediante o testemunho”.


La setta neocatecumenale. L’eresia si fece Kiko e venne ad abitare in mezzo a noi (A seita neocatecumenal. A heresia se fez Kiko e habitou no meio de nós, em tradução livre). Livro de Ariel S. Levi di Gualdo Edizioni L’Isola di Patmos Roma, 2019

No entanto, nem tudo é tão triunfal para Kiko e seu movimento. A sorte de ambos chegou ao zênite durante o pontificado de João Paulo II, deslumbrado pela intransigência destes no âmbito do amor conjugal, com seu não absoluto aos contraceptivos e com famílias super-prolíficas. Porém, primeiro com Bento XVI e, depois, com Francisco, as censuras ao Caminho se multiplicaram. E hoje, ao final deste mês de setembro, sai um livro que inclusive o acusa de apoiar verdadeiras heresias:

O padre autor do livro é, também, diretor de um blog muito atento à ortodoxia doutrinal. E focaliza os dois erros capitais do Caminho em uma “concepção herética do sagrado mistério eucarístico” – com a missa que se assemelha “em parte a uma páscoa judaica e em parte a um banquete calvinista” – e em uma “confusão sobre as distintas formas de sacerdócio”, a comum a todos os batizados e a específica de quem recebeu as ordens sagradas, com catequistas leigos, começando por Kiko, que se colocam a si próprios os deveres dos padres e mandam em tudo.

De fato, ainda sem chegar a processos por heresia, a doutrina e a práxis do Caminho levantaram nas décadas passadas severas críticas por parte das autoridades vaticanas, tanto da Congregação pela Doutrina da Fé, que já quando Joseph Ratzinger era prefeito examinou e obrigou a corrigir quinze volumes de transcrições das catequeses orais ensinadas por Kiko e a co-fundadora María del Carmen Hernández Barrera (1930-2016) aos adeptos do movimento, como da Congregação pelo Culto Divino, que em diversas ocasiões chamaram as comunidades neocatecumenais ao fiel cumprimento do rito romano na celebração da missa.

A esses chamados, os vértices do Caminho se declararam sempre obediente da Palavra, porém desobecendo de fato, isso é, continuando, porta adentro, com a celebração das suas extravagantes missas e suas peculiares catequeses, ao mesmo tempo que, em público, se exibiam enchendo as praças dos “Family Day”, viajando em massa nas cidades sedes das Jornadas Mundiais da Juventude, enviando famílias em missão a terras longínquas, ademais de multiplicar seus seminários Redemptoris Mater.

Tudo isso lhes garantiu alguns êxitos, porém suscitou por vezes duras reações, especialmente por parte dos bispos conservadores, mas também de progressistas – com o cardeal Carlo María Martini (1927-2012) que nunca os quis em sua diocese de Milão -, que não toleram que os neocatecumentais penetrem em dioceses e paróquias semeando divisão e ganhando adepto, não da Igreja, mas da sua própria seita.

Em 2010, uma conferência episcopal completa, a do Japão, chegou a expulsá-los de seu país e fechou seu seminário. E continuou atrapalhando seu caminho inclusive depois de que – em agosto de 2018 – voltaram a aparecer com o apoio do cardeal Fernando Filoni, prefeito de “Propaganda Fide” e fervoroso partidário dos neocatemunais, que anunciou que queria reabrir na diocese de Tóquio um seminário Redemptoris Mater, desta vez sob a jurisdição direta da sua congregação vaticana. Uma vez fracassado esse segundo assalto ao Extremo Oriente, Kiko e Filoni tentam de novo hoje com a construção do seminário de Macau.

No entanto, sofrem outro revés no Oceano Pacífico. Ali o arcebispo de Guam, Anthony Apuron, partidário do Caminho Neocatecumenal, recebeu um forte golpe no último 7 de fevereiro, por uma condenação canônica definitiva por abusos sexuais depois de uma investigação exaustiva realizada em primeira instância pelo cardeal Raymond L. Burke e em segunda instância pelo papa Francisco. Não surpreende que Kiko tenha defendido a inocência de Apuron até o final, porém com a destituição do bispo em Guam, também foi fechado o seminário Redemptoris Mater e a presença dos neocatecumenais quase desapareceu.

Com a chegada de Bergoglio ao pontificado, Kiko pensou que teria o campo mais livre que com seu predecessor Bento XVI, dada a indiferença do atual Papa para os desvios doutrinais e litúrgicos do Caminho.

Porém Francisco é alérgico também a supostos méritos adquiridos pelos neocatecumenais com sua inflexível condenação dos contraceptivos. Tão alérgico como para reservar-lhes, na opinião de muitos, a mordaz piada no avião de volta das Filipinas: “Alguns creem que para ser bons católicos devemos ser como coelhos. Não. Paternidade responsável”.

Bergoglio não convidou a nenhum membro do Caminho para o Sínodo sobre a Família, nem sequer como auditor, apesar da ostentosa especialização no assunto da que eles mesmo alardeiam. E a encíclica ecológica Laudato Si’, com os malthusianos Ban Ki-Moon e Jeffrey Sachs cada vez mais habituais no Vaticano e agora também convidados pelo Papa ao iminente Sínodo sobre a Amazônia, deixou de lado os ultras prolíficos neocatecumenais.

Outra coisa que Francisco não gosta é a confusão entre “foro interno” e “foro externo”. “É o pecado em que caem muitos grupos religiosos hoje em dia”, disse no último 5 de setembro em Moçambique, quando se reuniu com os jesuítas presentes no país. No entanto, é precisamente isso o que fazem os neocatecumenais com seus chamados “escrutínios”, que são de fato “confissões públicas que desencarnam a consciência com perguntas que nenhum confessor se atreveria de fazer”, como as definiu um arcebispo muito crítico do Caminho, Luigi Bommarito, de Catania.

Ademais, o humilde Bergoglio definitivamente não gosta dos enormes gastos que realiza o Caminho para galardear os bispos de todo o mundo, por exemplo, presenteando centenas de viagens promocionais a Israel, que culminam com uma visita à espetacular cidadela neocatecumenal Domus Galilaeae, com magníficas vistas para o lago de Tiberíades. A isso também pode ser que aludiu o Papa quando, em 5 de maio de 2018, na esplanada de Tor Vergata, disse aos neocatecumenais que celebravam o 50º aniversário do Caminho: “Jesus não autoriza deslocamentos com descontos ou viagens pagas. A todos seus discípulos somente lhes disse: Ide!”.

Porém, sobretudo, existe a aversão de Francisco pelos movimentos católicos de qualquer tipo, por esses movimentos populares da segunda metade do século XX que despertavam tanto entusiasmo em João Paulo II, porém que hoje, independentemente do favor ou desfavor dos papas, estão em decadência em todas partes.

O Caminho Neocatecumenal é um desses. Se somente pudesse transmitir seu “credo” aos filhos de seus prolíficos casais, e depois aos filhos de seus filhos, seu crescimento numérico seria exponencial. Porém não é assim. Já nem sequer funcionar na família.

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