“Estamos diante de uma crise do modelo de civilização”. Entrevista com Donna Haraway

Mais Lidos

  • “Os israelenses nunca terão verdadeira segurança, enquanto os palestinos não a tiverem”. Entrevista com Antony Loewenstein

    LER MAIS
  • Golpe de 1964 completa 60 anos insepulto. Entrevista com Dênis de Moraes

    LER MAIS
  • “Guerra nuclear preventiva” é a doutrina oficial dos Estados Unidos: uma visão histórica de seu belicismo. Artigo de Michel Chossudovsky

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

18 Setembro 2019

Os ensaios de Donna Haraway (Denver, 1944) não são o tipo de livro que se lê no metrô, com os capacetes. E se faz isso, boa sorte. Mas, mesmo longe das grandes audiências, esta bióloga e teórica do conhecimento é uma das pensadoras mais influentes em campos como o feminismo, a justiça ambiental e a complicada relação dos humanos com a tecnologia. Seu Manifesto Ciborgue ajudou a reavaliar a estratégia feminista em plena eclosão tecnológica e neoliberal, ao mesmo tempo em que a tornava uma filósofa de culto.

Na Espanha, acaba de publicar Seguir con el problema. Generar parientes en el Chthuluceno (Consonni). Professora emérita de História da Consciência, na Universidade de Califórnia - Santa Cruz, atende a El Periódico pelo Skype, em sua casa californiana.

A entrevista é de Ricardo Mir de Francia, publicada por El Periódico, 14-09-2019. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Seguir con el problema. De que problema estamos falando?

É um objetivo em movimento, um padrão de dilemas cada vez mais profundos e urgentes em uma escala planetária. Para mim, os mais urgentes são a migração e a indigência: o número extraordinário de seres humanos e organismos deslocados de seus lares e forçados a viver em movimento sob algumas condições que geram morte e um sofrimento indizível.

Principalmente, pela guerra e a mudança climática?

Desastres naturais, guerra, ódio interétnico, violência doméstica, guerras contra a droga... Se falamos de mudança climática, em boa parte da América Central, as colheitas são cada vez menos seguras e a seca está forçando muita gente a migrar para os Estados Unidos, extraordinariamente racistas e xenófobos. Tornou-se muito difícil cuidar uns dos outros.

Nem todos os países têm capacidade para oferecer aos refugiados e imigrantes condições que lhes permitam prosperar, quando chegam em ondas.

É verdade. Há consequências para os países de acolhida, às vezes funestas, mas acredito que exageram. A capacidade para absorver e ajudar os imigrantes a florescer é grande. O que estamos vendo é uma espécie de revanche neofascista e rejeição homicida a abrir nossas fronteiras e lhes dar espaço. Vejo isso nos Estados Unidos. Na Califórnia, há muitas indústrias em crise porque não há trabalhadores imigrantes suficientes. E no Centro-Oeste ou no Sul, muitas reviveram graças aos imigrantes.

A perda dessa consciência é um enorme problema. Temos que pensar nos tipos de sociedades que podemos construir com a ajuda dos imigrantes. E também é necessário enfrentar as causas da migração forçada. Em parte, a isso me refiro quando falo em seguir com o problema. Em vez de se empenhar em uma solução, temos que pensar o que podemos fazer com os meios que temos.

Nossas políticas militares e econômicas contribuem muitas vezes para essa migração, uma realidade ignorada por muitos líderes, que culpam os imigrantes por todos os tipos de males. O que procuram esconder?

Eu também fico perplexa. Quando você se fixa nos Bolsonaro, Erdogan, Hungria, Suécia e Estados Unidos, percebe que as forças da exclusão e a xenofobia estão descontroladas. E superabundam os governos que estão jogando gasolina ao fogo. O que está acontecendo? A indústria das energias fósseis e outras elites estão conscientes de que acaba o tempo de lucrar com seus recursos e fecharam fileiras para queimar até a última caloria da Terra, por mais que estejam investindo muitíssimo em renováveis.

O capitalismo contemporâneo se deu conta de que começa a haver um limite para manter tais lucros e a profunda desigualdade que gerou. Entendem que o neoliberalismo está morto e falhou, e há uma espécie de convergência para algo que não é exatamente fascismo, porque não estamos nos anos 1930, mas, sim, se assemelha a ele. Muita gente está sendo maltratada e reagem com revanchismo, ódio e culpando o outro. Esses profundos processos psicológicos de desumanizar o outro.

E em relação ao mundo natural?

Há uma espécie de cinismo diante de algumas forças que parecem ingovernáveis e isso faz com que não se atue o suficiente em nível local. Acredito que estamos assistindo uma monumental crise da natureza do capital.

Percebo você muito otimista em relação ao fim do ciclo do capitalismo. Em conclusão, impôs-se em (quase) todo o mundo e a social-democracia não para de perder adeptos.

É assombroso que diga que sou otimista. Oponho-me completamente ao cinismo porque é intelectualmente e moralmente intransigente. Acredito que estamos diante de uma crise do modelo de civilização que está há tempo em marcha e ninguém sabe exatamente como terminará, mas, sim, as perdas são e serão enormes. Refiro-me à capacidade da Terra para sustentar suas espécies. Contudo, ainda não acabamos com ela. Muitas coisas positivas estão sendo feitas, em todos os âmbitos. Não há desculpa para não se unir às pessoas que estão fazendo coisas para que mudem para melhor.

Cientistas como você alertam que estamos em meio à Sexta Extinção. Milhares de espécies estão desaparecendo rapidamente. Nós, humanos, também temos os dias contados?

Não sei, nem me interessa. Esse é o tipo de pergunta que nos coloca em problemas. Se o que me indaga é se o capitalismo ganancioso dos sanguessugas humanos contemporâneos afundará os ecossistemas da Terra, arrastando-nos nesse processo de extinção massiva, nas próximas décadas, não acredito. Mas, é possível? É possível. Tenho mais interesse em repensar nosso conceito de tempo. Mais que pensar questões futuristas, fazer de nossa concepção do presente algo mais denso, para que não apenas se fixe no instante atual, como também abarque nossa memória e nossa história. Que nos sirva para viver de um modo menos daninho para o nosso ambiente.

Você escreveu sobre o estudo dos primatas. O que podemos aprender de nossos parentes mais próximos, no momento atual?

Muitíssimo. Eu sou bióloga e me apego a essa identidade, por mais que todos os meus experimentos nos laboratórios sempre fracassaram (ri). Uma das primeiras coisas que você aprende em biologia é que nós, humanos, somos uma espécie a mais entre outras. É verdade que temos nossas especificidades, mas somos mortais, finitos e temos um profundo período evolutivo. Não só como indivíduos, mas também como espécie. Estamos relacionados com todos os tipos de organismos e fazemos parte de um rico holobioma. Pensar assim no torna mais inteligentes e cuidadosos com o nosso ambiente. Nosso desejo de transcendência e imortalidade é uma doença psicológica.

“Somos compostagem, não pós-humanos”, você costuma dizer.

Totalmente. Compostagem não é necessariamente um termo virtuoso. Refiro-me a criar camadas, tentar regenerar, é uma palavra para seguir com o problema.

Teve uma educação católica muito conservadora. Foi seu ativismo uma reação àquela educação?

Não estou certa. Uma das coisas que aprendi ao levar a sério o catolicismo, incluído o trabalho do Concílio Vaticano II e a reorganização da doutrina, foi a preferência pelos pobres. Influenciou-me muito o ativismo católico contra a guerra do Vietnã, o movimento católico de direitos civis, a teologia da libertação. Tive uma educação que foi pura dinamite, sob a responsabilidade de um grupo de freiras muito progressistas que ajudaram a transformar o papel da mulher na Igreja. Acabei deixando a Igreja e me rebelei contra algumas coisas, mas fiquei com essa atitude de me preocupar com o próximo, reforçada depois com o marxismo.

Também pertenceu à geração que colocou em marcha os estudos do Feminismo nas universidades dos Estados Unidos. Onde o feminismo se encontra hoje?

Minha posição é que o feminismo é o tronco e os outros não são mais que os ramos. E só estou brincando pela metade. Acredito que o feminismo pode ser como o restante dos grandes movimentos de libertação: pode deixar o ambiente sem ar em seu desejo de autoafirmar sua posição. Em si, é muito diverso, tem muitos movimentos internos que cooperam entre si, às vezes, e outros entram em choque. Mas, seja como for que o chamemos, a situação das mulheres neste planeta segue ruim. Há uma profunda violência e injustiça com as mulheres, uma situação que o feminismo resiste em ignorar.

O que pensa do movimento #MeToo?

É complicado.

Há quem diga que pode nos levar ao puritanismo e a relações limitadas.

Não só pode, como todos nós temos alguns claros exemplos de como está acontecendo, ainda que não queira dar nomes. Acredito que o #MeToo era e é necessário, porque há muita merda cometida por homens poderosos que é acobertada e o abuso sexual contra as mulheres é sistemático. Especialmente contra as jovens. O que não significa que em um movimento destas dimensões não ocorra excessos e muita gente saia prejudicada, quando não deveria. Precisamos ser capazes de dar um passo para trás e nos reagrupar. Também de nos perdoar. Nem todos os abusos são iguais.

Paralelamente, o contra-ataque está sendo maiúsculo. Dos Trump e Bolsonaro, mas também de muitos homens que acreditam que as instituições adotaram um viés a favor das mulheres.

Também há brancos que dizem que as pessoas de cor estão lhes substituindo. Ou que os imigrantes retiram o trabalho deles. Há muito vitimismo por parte dos poderosos e daqueles que talvez não aceitaram muito bem. A tendência é culpar horizontalmente, em vez de verticalmente, porque é muito mais difícil psicologicamente apontar os poderosos.

Em quase 250 anos de história, seu país não foi capaz de eleger uma mulher como presidenta. Tampouco o meu, é claro.

É verdade e não sei se mudará a curto prazo. Dos candidatos que hoje competem contra Trump, o mais forte é, sem dúvida, Elisabeth Warren. Bernie Sanders também. Mas, há medo do que aqui chamam socialismo e o Partido Democrata fica aterrorizado em nomear um candidato que possa ser destroçado com slogans fáceis durante a campanha. Depois, tem Trump, que é um gênio político. Sabe verdadeiramente explorar a seu favor as contradições e lida com os tempos como um mestre da comédia. Ainda mais difícil será eleger uma mulher negra. Pense em Kamala Harris, que é muito melhor candidata que Joe Biden. É impossível que saia eleita.

Em "Manifesto Ciborgue" (1985), defendeu que a tecnologia havia libertado as mulheres das identidades construídas no passado. Continua pensando o mesmo ao ver como o Google e o Facebook categorizam a todos com fins comerciais?

Deixe-me voltar antes ao manifesto. Seus argumentos estavam muito bem localizados. Havia uma grande tendência no feminismo estadunidense a ser tecnofóbico, a destacar a tecnologia como o problema, em vez da guerra, do capital ou coisas do estilo. O certo é que muitos avanços tecnológicos servem para nos fazer prosperar, para melhorar a vida das pessoas, e temos que ser inteligentes a esse respeito. E nos aliar a isso. Dito isto, a respeito do Google, Facebook e outros são um gigantesco escândalo global. E eu continuo no Facebook? Sim (ri). Você continua?

Sim.

Contudo, acredito que a crítica é absolutamente correta e se deixamos de criticar, estamos mortos.

Falando de críticas, não é fácil ler seus livros. Podem ser muito críticos. Por acaso, não deseja ser entendida?

Veja, faço o que posso. Escrevo frases muito mais curtas do que costumava. E me esforço para ser compreendida, ainda que a noção de que todos possam te entender ou ser clara em sua prosa, é psicopatológica, porque cada um de nós chegamos a nossas conclusões de forma diferente. Eu, às vezes, nem sequer concluo coisas. Talvez nosso trabalho seja aprender a florescer na complexidade. Parte de minha escrita está muito organizada, mas não meus livros em conjunto, pois não acredito que o mundo funcione dessa maneira.

Está preocupada com o crescimento da população mundial e o que isso representa para a sustentabilidade do planeta, mas, como feminista, opõe-se às políticas de controle da natalidade.

As políticas de controle de população, conforme foram implementadas, conseguiram algumas coisas boas, mas também causaram muito dano, principalmente às mulheres. Adotaram formas de racismo, animalização e outras medidas de controle reprodutivo que tiram o foco do autocontrole e enfatizam as decisões centralizadas. Governos e fundações precisam se centrar no acesso a métodos anticoncepcionais, mas se distanciar de coisas como a esterilização. O principal problema do aumento da população vem dos ricos. O custo para o planeta de uma criança rica é imenso.

Mas, normalmente são os mais pobres que têm mais filhos...

O principal problema reprodutivo está na classe média global. Cresce muito rápido e segue algumas práticas que maximizam o consumo de carne, o uso excessivo de cimento, de energia... está crescendo da pior forma possível. A classe média global precisa crescer, mas não desse modo. Ainda que os índices de natalidade tenham caído em boa parte do mundo, caso siga a tendência, no final do século seremos 11 bilhões de habitantes.

Refere-se a isso quando fala em “gerar parentes, não bebês”?

E isso inclui acolher os imigrantes. Você não precisa ter seus próprios filhos para se preocupar com as crianças. Os bebês cheiram quase tão bem como os cachorros (ri). Acredito que, neste momento, temos um mundo pró-natalidade e anticrianças. E eu quero um pró-crianças e não pró-natalidade. Precisamos repensar a equação.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

“Estamos diante de uma crise do modelo de civilização”. Entrevista com Donna Haraway - Instituto Humanitas Unisinos - IHU