15 de agosto de 1222: o sermão de São Francisco. “Os anjos, os homens, os demônios”

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16 Agosto 2019

Como pregava Francisco de Assis? O que sabemos sobre o conteúdo e as modalidades de sua pregação? Lembrando que nenhum dos sermões que ele realizou chegou até nós, é significativo o testemunho deixado por um observador externo, o croata Tomás de Split, arquidiácono e depois bispo de sua cidade natal. Este último, de fato, estudante da Universidade de Bolonha, em 15 de agosto de 1222, viu Francisco pregar "na praça em frente à prefeitura, onde havia convergido, pode-se dizer, quase toda a cidade".

O comentário é do historiador e padre Felice Accrocca, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana e do Instituto Teológico de Assis, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 14 e 15-08-2019.

Muito interessante é a sua descrição do sermão e os efeitos que se seguiram: "Assim foi o começo de seu sermão: ‘Os anjos, os homens, os demônios’. Falou tão bem e claramente desses três tipos de espíritos racionais, que muitas pessoas doutas, ali presentes, ficaram tão admiradas por aquele discurso de um homem iletrado. No entanto, ele não tinha o estilo de um pregador, mas quase de um orador. Na realidade, toda a substância de suas palavras visava extinguir inimizades e lançar as bases para novos pactos de paz. Ele usava uma túnica suja; a pessoa era desprezível, o rosto sem beleza. No entanto, Deus conferiu às suas palavras tal eficácia que muitas famílias nobres, entre as quais a irredutível fúria das inimizades inveteradas havia deflagrado o derramamento de tanto sangue, haviam se dobrado a conselhos de paz. A reverência e a devoção da multidão eram muito grandes, ao ponto de homens e mulheres se jogarem sobre ele, com o desejo de tocar pelo menos as franjas de sua túnica ou arrancar um pedaço de suas roupas".

Tantos anos depois, portanto, Tomás de Split ainda se lembrava da miserável figura de Francisco, seu rosto nada agradável e a sujeira de suas roupas. Claramente, portanto, não era a sua aparência física que prendia os ouvintes que se aglomeravam, tão numerosos. Também não se pode dizer que Francisco cuidasse de sua própria imagem: pelo contrário – isso sim! - ele se esforçava para cuidar de sua própria alma, e Deus fazia o resto, porque os homens de Deus - quando são realmente assim - não se baseiam nas aparências, mas no poder do Espírito. Como se torna relevante, então, inclusive nisso, a sua figura, quando de muitas partes e com muita virulência nos é dito que o que importa é aparecer, não importa como, e que não aparecer é equivalente a não existir!

A informação sobre o estilo da pregação de Francisco revela-se muito preciosa, pois permitia ver nele um orador político (contionator), mais do que um verdadeiro pregador. A contio era uma assembleia do povo, o contionator, o que hoje chamaríamos de orador do comício, que - de acordo com o que um mestre da época ensinava, ou seja, Boncompagno da Signa em sua Rethorica novissima - devia impressionar fortemente o público, não tanto e não só com palavras, mas também com suas próprias expressões e gestos.

Segundo Erik Auerbach, tudo o que Francisco fez, desde o momento de sua conversão até o dia de sua morte, "foi uma representação; e suas representações eram de tal força que arrastava com ele todos aqueles que o viam ou tinham notícias dele" (Mimesis. Il realismo nella letteratura occidentale, Einaudi, 1956). Através dessas suas "representações" ele reconheceu seus erros, como quando em Assis, depois de ter pregado na praça em frente à igreja de San Rufino, admitiu que durante uma quaresma (com toda evidência, na quaresma chamada de São Martinho, que precedia o Natal do Senhor) tinha comido carne e caldo de carne. Ainda recorrendo a tal expediente, ele corrigiu seus frades, como em Greccio, no dia de Natal de um ano não especificado, vendo que a mesa da comunidade tinha sido ricamente servida, ele saiu escondido e se reapresentou à porta disfarçado de mendigo, despertando comoção e arrependimento entre eles: "Que brilhante ideia de palco - escreveu Auerbach (ibid., p. 177) - pegar o chapéu e a bengala de um homem pobre e implorar com os mendigos! Pode-se imaginar a perplexidade e a vergonha dos frades quando ele se senta sobre as cinzas com o prato dizendo: Agora estou sentado como um verdadeiro frade menor ...

Francisco, portanto, não seguia as regras típicas do gênero da pregação, mas mantinha uma adesão estrita à vivência cotidiana. Não só isso, sua pregação não era exclusivamente verbal, mas fazia recurso a todos os instrumentos que tinha a disposição. Entre os hagiógrafos do Santo, Tomás de Celano revela uma atenção marcante à corporeidade de Francisco, à sua capacidade de pregar até mesmo com o corpo, a ponto de torná-lo uma língua - como ele escreveu com uma expressão muito eficaz -, acentuando seus aspectos dramáticos. Afinal, é precisamente essa fisicalidade, essa concretude do homem em carne e osso que emerge do relato do sermão que Francisco realizou diante de Honório III e dos cardeais.

Tomás narra que no decurso da pregação - por muitos aspectos extremamente delicada - Francisco, incapaz de se conter pela alegria, enquanto falava movia os pés, como se estivesse pulando. O hagiógrafo, nessa circunstância, relata honestamente os fatos tal como lhe foram narrados: vale como testemunho disso a descrição do medo que permeou o cardeal Hugo de Óstia diante de tal atitude.

Tomás também especifica que o santo se comportou daquela maneira "não como quem brinca", mas porque ardia com o fogo do amor divino, razão pela qual uma pregação tão estranha não provocou o riso dos ouvintes, mas sim um choro de dor: um esclarecimento que mostra toda a dificuldade encontrada pelo hagiógrafo diante do comportamento inusitado de Francisco e, portanto, reforça sua autenticidade.

No entanto, o que mais impressiona na história do que aconteceu em Bolonha em 15 de agosto de 1222 é o fato de que a pessoa de Francisco, embora "desprezível" e "sem beleza", pela força que Deus imprimiu em suas palavras, fez sim "Que muitas famílias nobres", em guerra entre si, se "inclinassem a conselhos de paz". Encontraria igual escuta, hoje, a sua palavra quando o que prevalece parece ser um desejo descarado de mostrar os músculos, uma tendência a excluir, mais que incluir, uma necessidade quase irreprimível de beligerância?

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