A apreensão com a força de Bolsonaro entre os militares

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26 Setembro 2018

A facada recebida na véspera do Dia da Independência levou o deputado Jair Bolsonaro a um hospital, duas cirurgias e mais pontos na corrida presidencial. O avanço de Fernando Haddad nas pesquisas desenha para a reta final do primeiro turno uma campanha com cara de segundo. Quem será mais odiado, Bolsonaro ou o PT?

A reportagem é de André Barrocal, publicada por CartaCapital, 26-09-2018.

Da cama, o candidato da extrema-direita foi gravado em vídeo no domingo 16 por um dos três filhos e o que se vê é de arrepiar. Primeiro, sugere que, se for derrotado, terá sido trapaça. “A grande preocupação realmente não é perder no voto, é perder na fraude”, disse, a botar em dúvida a lisura das urnas eletrônicas.

Depois, mostrou que contra o PT vale tudo, até golpe. “Mais do que a corrupção, é a questão ideológica.” “Quando vi a reeleição de Dilma Rousseff”, prossegue, “pensei comigo mesmo: não podemos esperar 2018, porque o Lula vem melhor… Eles não vão mais sair daí.”

Seria apenas mais uma leva de declarações tresloucadas, não fosse por uns detalhes. Bolsonaro foi abraçado como candidato por uma parcela grande do Exército, uma eleição em que há um número recorde de candidatos militares a vários cargos.

Em 21 anos no poder, na ditadura de 1964 a 1985, o Exército deixou um legado de mortes, concentração de renda e, sim, de corrupção, embora hoje seja visto como a instituição mais confiável (78%), conforme um Datafolha de junho passado. Um CV suficiente para temer um governo Bolsonaro nascido do voto ou da porrada.

“O Bolsonaro era execrado pelos militares, pelo passado de insubordinação, hoje a visão sobre ele mudou nas Forças Armadas. Ele penetrou nos dois setores mais efervescentes do Exército: a reserva, que pode falar o que quer sem ser punida, e os majores e capitães, que estão em um ponto da carreira em que olham para o futuro”, diz um general.

Recorde-se o motivo da execração. Bolsonaro era capitão em 1987, quando publicou um artigo na revista Veja a reclamar de salário. Foi preso por 15 dias, por “ter ferido a ética, gerando clima de inquietação na organização militar”, segundo um processo aberto no Superior Tribunal Militar (STM).

O processo examinou ainda um segundo fato, mais grave. Inspirada pelo artigo, Veja fizera uma reportagem, em 1988, a relatar que Bolsonaro tinha um plano para chamar atenção para a questão salarial: estourar bombas pelo Rio.

O caso foi examinado, primeiro, por uma comissão de três coronéis, e terminou em condenação unânime de Bolsonaro. No STM, ele foi absolvido por 8 a 4. No fim de 1988, elegeu-se vereador na cidade do Rio e aí virou capitão aposentado.

O símbolo do abraço do bolsonarismo por grande parte do Exército foi a escolha do vice da chapa.

O preferido era o general de pijama Augusto Heleno, de 70 anos. Nascido em Curitiba, é influente na caserna. Foi o primeiro chefe da missão de paz da ONU no Haiti liderada pelo Brasil, posição ocupada de 2004 a 2005. Esteve à frente do estratégico Comando Militar da Amazônia de 2008 a 2009 e atacou em público a política indigenista “caótica” do governo Lula. Pendurou a farda em 2011 com um discurso a favor do golpe de 1964.

Na eleição de 2014, Heleno foi lançado para presidente, sinal de que os quartéis se agitam faz tempo, com um manifesto de dezenas de oficiais. À frente, um general da reserva morto em junho, aos 92 anos, Pedro Luís de Araújo Braga. O texto apontava “a quase impossibilidade de tirar o PT do poder”, devido a (loucura) “forças paramilitares a serviço de um projeto de poder comunista”, e mesmo por meio de “eleições livres, mas viciadas pela prática de estelionatos eleitorais e fraudes”.

Não foi coincidência Bolsonaro ter proposto em 2015, como deputado, uma lei do voto impresso, derrubada pela Justiça. Nem foi um repente o que ele falou agora sobre fraude.

O general Heleno foi à convenção do PSL que oficializou a candidatura de Bolsonaro, mas já estava decidido que não seria o vice. Seu partido, o PRP, não deixou. A vaga ficou com outro general de pijama respeitado pelos colegas, Antonio Hamilton Mourão.

Nascido em Porto Alegre, Mourão, de 65 anos, entrou para a reserva em fevereiro. De 2014 a 2015, chefiou o Comando Militar do Sul. Saiu do cargo por dizer certas coisas durante a agonia de Dilma Rousseff. Em setembro de 2015, convocou colegas para “o despertar de uma luta patriótica”, ou seja, golpe.

No mês seguinte, permitiu que houvesse em uma unidade sob seu comando uma homenagem ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador de Dilma. Gota d’água. O comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, tirou-o do comando de tropas no Sul e botou-o para ser um burocrata em Brasília, secretário de Finanças do Exército.

Com Michel Temer, mais verborragia de Mourão. Em setembro de 2017, em uma palestra num grupo maçônico em Brasília, falou várias vezes em intervenção militar como saída para a crise política. “Os Poderes terão que buscar uma solução, se não conseguirem, chegará a hora em que teremos que impor uma solução.”

Em dezembro, criticou Temer abertamente. “Nosso atual presidente, ele vai aos trancos e barrancos, buscando se equilibrar, e, mediante um balcão de negócios, chegar ao final do seu mandato.” Foi afastado das finanças em seguida. Em fevereiro, entrou para a reserva.

Mourão tem dito coisas bizarras como Bolsonaro, reveladoras de uma visão elitista, preconceituosa. Em agosto, comentou em um almoço em Caxias do Sul que o brasileiro é indolente por causa dos índios e malandro por causa dos negros. Nos últimos dias, disse que a política externa “Sul-Sul” dos governos petistas nos aproximou de uma “mulambada”, os países africanos.

Para ele, famílias formadas apenas por mães e avós, sem pais e avôs, são “fábricas de desajustados”, declaração comentada da cadeia por Lula: “Eu e sete irmãos fomos criados por uma mulher analfabeta chamada Dona Lindu e duvido que exista alguém na sociedade brasileira que educou os filhos melhor do que ela”.

A visão de Mourão explica ele ter defendido, em Curitiba e São Paulo, que o País tenha uma nova Constituição, escrita apenas por “notáveis”, não por gente eleita pelo povo.

Em entrevista à GloboNews, em 7 de setembro, defendeu que a crise política brasileira justificaria um autogolpe por parte de um presidente (Bolsonaro, presumivelmente) ou das Forças Armadas. “Cruzamos os braços e deixamos que o País afunde?”, disse. “O próprio presidente é o comandante-chefe das Forças Armadas, ele pode decidir isso. Ele pode decidir empregar as Forças Armadas. Aí você pode dizer: ‘Mas isso é um autogolpe’. É um autogolpe, você pode dizer isso.”

Uma semana depois, outro general de pijama, Luiz Eduardo da Rocha Paiva, foi à emissora e disse barbaridades similares. Na reserva desde 2007, Paiva, de 66 anos, tem sido palpiteiro ativo. Em junho de 2016, logo após a queda de Dilma e a ascensão de Temer, escreveu um artigo em que dizia “não haver fosso ideológico entre o atual governo e as Forças Armadas”.

Saudoso da ditadura de 1964, disse na GloboNews que “muita gente que é militar vai votar nele (Bolsonaro), não tenha dúvida”, que o PT está “implantando uma revolução silenciosa, que é a revolução gramsciana, ocupando espaços”, “o fato de o PT não estar no poder não significa que tenha perdido poder”. Defendeu o “autogolpe”, pois não dá para confiar nem no Supremo Tribunal Federal. “Vai fazer o quê? Vai esperar o esfacelamento da nação?”

O novo presidente do STF, Dias Toffoli, mostra que os militares se tornaram um fantasma. Na segunda-feira 17, rebateu as suspeitas de fraude jogadas por Bolsonaro. “As urnas eletrônicas são totalmente confiáveis”, disse. E lembrou: Bolsonaro tem sido eleito por esse sistema há duas décadas.

Seu gesto mais significativo foi mais discreto. Pinçou um general para ser seu assessor especial na presidência do STF. E não um qualquer. Fernando de Azevedo e Silva era chefe do Estado Maior do Exército até 31 de agosto, segundo posto na hierarquia, atrás apenas de Villas Boas.

Nesse cargo, cabia a Azevedo assinar a carta de saudações a oficiais promovidos a general, uma categoria com uns 150 militares subdividida em três subgrupos, sendo a de “general de Exército” o mais importante. Há uns 15 deles hoje em dia. Na promoção de 31 de março, um dos saudados a general de Exército foi o paulista Marcos Antonio Amaro dos Santos, que comandou a segurança de Dilma na Presidência.

Pessoas experientes e conhecedoras dos tribunais em Brasília acreditam que a nomeação do general é uma tentativa de Toffoli de abrir um canal com o Exército. Uma delas, atuante na PGR, está preocupada e acha que o Supremo também. Bolsonaro tem planos de esvaziar a Corte atual com a ampliação do número de juízes, todos indicados, claro, em um eventual governo dele.

Em abril, o general de pijama Paulo Chagas, de 69 anos, candidato ao governo do Distrito Federal, estado em que o Bolsonaro é líder disparado, divulgou uma carta pública inacreditável dirigida ao juiz Gilmar Mendes. Foi após o STF negar um habeas corpus a Lula. Mendes votara pelo HC. “Se a última esperança de salvar a Nação do caos, depositada pelos brasileiros nas mãos dos Ministros do STF, está desmoronando, onde estará a salvação?”, dizia a carta. “Estamos na fronteira entre a desordem e o caos total, o limite está bem à nossa frente.”

Para outra pessoa experiente nas cortes de Brasília, o caso Lula é, provavelmente, o motivo de Toffoli ter um general por perto. É possível que o juiz bote em julgamento, no início de 2019, aquelas ações que acabam com a prisão de condenados em segunda instância, o que libertaria Lula provisoriamente. “Acho que foi uma segurança para a hipótese de soltarem o Lula e desagradarem a setores mais reacionários. Ter um general ao lado, sossega a tropa. Como conheço o Toffoli, acho que é isso."

Quando o STF se preparava para julgar o HC de Lula, militares ajudaram a criar um clima tenso. Um octogenário general de pijama, Luiz Gonzaga Schroeder Lessa, gaúcho de São Leopoldo, ex-comandante militar do Leste, na reserva desde 2001, comentou o assunto em uma rádio. Se o STF deixasse Lula solto, seria “indutor” de violência. E se a Justiça permitisse que ele se candidatasse, “vai ter derramamento de sangue”.

O petista foi generoso com os militares no governo. Pegou o orçamento das Forças Armadas em 23 bilhões de reais, em 2003, e entregou mais que o dobro, 53 bilhões, em 2010 – com Dilma, o orçamento foi a 74 bilhões; em 2019, serão 92 bilhões. Esse papel histórico é reconhecido pela caserna, segundo aquele general que explicou a bolsonarização da reserva e dos majores e capitães.

Hoje com quase 70 anos, esse general faz parte de um grupo de mensagens de celular com antigos colegas de farda e espanta-se com a disseminação de ódio contra o petista, movido, segundo ele, à combinação de “meias verdades e inverdades” sobre corrupção.

Após as declarações de Lessa, o general Villas Bôas, de 66 anos, gaúcho de Cruz Alta, no cargo desde fevereiro de 2015, reagiu no Twitter. “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.” Afirmação de certa forma ambígua.

Após a facada em Bolsonaro, deu uma entrevista ao Estadão, e aí a ambiguidade sumiu. “O pior cenário é termos alguém sub judice, afrontando tanto a Constituição quanto a Lei da Ficha Limpa, tirando a legitimidade, dificultando a estabilidade e a governabilidade do futuro governo e dividindo ainda mais a sociedade brasileira.” Referia-se, claro, ao caso Lula, então ainda pendente de decisão judicial.

Para o PT, a entrevista de Villas Bôas, que recebeu vários presidenciáveis em reuniões separadas em junho, algo inédito, foi uma tentativa de “tutela” da democracia pelos quartéis. Fernando Haddad falou grosso na segunda-feira 17: “Quem estiver abaixo da autoridade da Presidência não vai poder sabotar a democracia, nem com gestos, nem com declarações, nem com nada. Se for um cargo de confiança, está na rua no dia seguinte”. Ciro Gomes, do PDT, havia dito coisa parecida dias antes.

Ex-presidente da OAB do Rio, o deputado petista Wadih Damous diz que Villas Bôas merecia punição. “A liberdade de expressão dos militares é limitada, porque eles andam armados, o que por si só tem poder de intimidação.” Só não houve nada, afirma, é por Michel Temer ser um presidente sem autoridade moral para punir alguém.

Uma lei de 1986 permite a militares da reserva opinar sobre política, mas o pessoal da ativa é proibido por um regulamento disciplinar de 2002, no fim do governo FHC.

O Uruguai acaba de viver uma situação igual. E lá terminou em ordem de prisão. Em meados de setembro, o presidente Tabaré Vázquez mandou aplicar pena máxima ao chefe do Exército, Guido Manini Rios, 30 dias de cana, pois o general deu palpites sobre uma lei proposta pelo governo. A lei muda as regras de aposentadoria dos militares, e os palpites foram contrários.

Lá, como cá, os militares são subsidiados pela população. Eles recolhem uma ninharia, param cedo e embolsam quantia gorda. Em 2016, recolheram 3 bilhões de reais, enquanto as despesas foram de 37 bilhões. Havia, então, 299 mil inativos militares. Significa que cada um recebeu por mês, 9,5 mil mensais em subsídios dos brasileiros. Em 2019, o rombo será de 43 bilhões, segundo a lei enviada pelo governo ao Congresso.

O Uruguai teve sua ditadura militar, de 1973 a 1985. A daqui foi mais duradoura, de 1964 a 1985. Sua obra? Concentração de renda, repressão e corrupção.

A tese de doutorado em sociologia vencedora de melhor do ramo no ano passado faz um apanhado da evolução da concentração de renda no Brasil. Chama-se “A Desigualdade Vista do Topo: A Concentração de Renda Entre os Ricos no Brasil, 1926-2013”. Segundo seu autor, Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza, pesquisador do Ipea, o Brasil tem uma tradicional concentração no 1% mais rico em um patamar bem acima de outras nações desiguais. Essa casta morde por aqui uma média histórica de 23% do PIB.

Após o governo autoritário de Getúlio Vargas, de 1945 em diante, essa fatia caiu. Às vésperas do golpe militar de 1964, que derrubou o presidente João Goulart (1961-1964) e suas reformas de base, ia de 17% a 19%. Daí os militares tomaram o poder e o naco “aumentou continuamente até 1971, quando atingiu 26%, maior porcentual desde os anos 1940”.

A explicação para a concentração de renda com os generais é simples, segundo Souza. A ditadura facilitou os lucros das empresas e dos ricos via isenções ou reduções de impostos. A alíquota máxima de IR da pessoa física caiu de 65% para 50%, por exemplo.

E os trabalhadores? Arrocho salarial neles, conforme o Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg) do primeiro dos golpistas, marechal Castello Branco (1964-1967). Dissídios seriam homologados na Justiça somente se seguissem a regra oficial: pegava-se a média salarial dos dois anos anteriores, somava-se uma taxa de produtividade e mais metade da inflação prevista para o ano seguinte. O salário mínimo caiu 30% e só se recuperou (pouco) a partir de 1974. Para o arrocho ser aceito sem choro, as greves foram proibidas.

Resultado: o crescimento recorde do PIB, o “milagre econômico” do fim dos anos 1960, início dos 1970, foi apropriado pelos ricos. A desigualdade subiu. Em 1973, o ditador Emílio Garrastazu Médici (1969-1973) fez uma viagem ao Nordeste e cunhou uma frase famosa: “A economia vai bem, mas o povo vai mal”.

Seu sucessor, Ernesto Geisel (1974-1979), baixou, em 1975, um novo Plano Nacional de Desenvolvimento, para substituir o Paeg. Dizia o II PND: “É importante que as classes trabalhadora e média sejam amplamente atendidas no processo de expansão”.

Para levar adiante um projeto de nação em que os ricos se esbaldavam e os trabalhadores eram explorados, era necessário porrete. Um documento americano vindo a público em maio é devastador. Estava disponível desde 2015 no site do Departamento de Estado de Tio Sam e foi descoberto por um professor de Relações Internacionais da FGV, Matias Spektor.

Trata-se de um memorando de 11 de abril de 1974 mandado pelo então chefe da CIA, William Colby, a Henry Kissinger, cabeça da política externa dos Estados Unidos por décadas. Fazia menos de um mês da troca de Médici por Geisel e Washington tentou saber se a caçada feroz de Médici seguiria. A resposta era sim, como diz o “assunto” do texto: “Decisão do presidente brasileiro, Ernesto Geisel, de continuar com as execuções sumárias de subversivos perigosos, sob certas condições”.

No relato da CIA, Geisel discutira o tema com três generais numa reunião em 30 de março: João Baptista Figueiredo, que seria o próximo ditador e era então chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), Milton Tavares, chefe do Centro de Informações do Exército (CIE), e Confúcio Danton de Paula Avelino, que assumiria o CIE no lugar de Tavares. Era sábado.

Geisel pediu para pensar no fim de semana. Na segunda-feira, 1o de abril, aniversário de 10 anos do golpe, veio a decisão. Com a palavra, a CIA: “O Presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que muito cuidado deveria ser tomado para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados. O presidente e o general Figueiredo concordaram que, quando o CIE prender uma pessoa que possa se enquadrar nessa categoria, o chefe do CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada”. Quer dizer, a matança não apenas era uma política oficial, como o sinal verde vinha bem do alto.

E para quem acha que havia concentração de renda e repressão, mas ao menos eram tempos éticos, um aviso: não foi nada disso.

Em 2015, o Prêmio Jabuti, “oscar” da literatura nacional, foi dado na categoria “economia” a um livro que mergulhou na corrupção na ditadura, capítulo “empreiteiras”. A obra, Estranhas Catedrais, é do historiador Pedro Henrique Campos, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Dois exemplos foram citados por ele para esta reportagem.

Posto ali pela ditadura em 1971, Haroldo Leon Peres caiu nove meses depois do cargo de governador do Paraná, pois se soube que cobrara propina de 1 milhão de dólares da construtora CCR.

O outro caso envolve as obras da Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará. A exploração da madeira da área que seria inundada foi dada pelo governo, na década de 1970, ao fundo de pensão dos militares, a Capemi. O fundo pegou grana estrangeira, desmatou 10% do combinado e só. Suspeita-se que faltou dinheiro devido a desvios, motivo de uma CPI nos anos 1980. A usina em si foi construída pela Camargo Corrêa, empreiteira que recebeu incentivos fiscais estimados em 5 bilhões de dólares e que arrancou nada menos que 29 adicionais contratuais encarecedores da obra.

Não é difícil entender o bem-bom das empreiteiras com a turma fardada. Os interesses privados, diz Pedro Campos, estavam infiltrados no regime pois o que havia era uma “ditadura civil-militar”, apoiada desde o início pelos empresários, beneficiários das políticas implementadas naquele período.

A promiscuidade dos generais com o capital era grande. Golbery do Couto e Silva, um dos ideólogos do golpe, comandou a Dow Chemical. Geisel dirigiu a Norquisa. Um dos filhos do general Costa e Silva (1967-1969), o ditador anterior a Geisel, trabalhou na General Eletric do Brasil. Figueiredo, o último presidentre-golpista (1979-1980) foi do conselho consultivo da Caterpillar.

Em troca, a área econômica do governo foi terceirizada a economistas afinados com o setor privado, como Roberto Campos, primeiro ministro do Planejamento do golpe, e Mario Henrique Simonsen, fundador de um banco em 1961. “A tática do ‘posto Ipiranga’ do candidato Bolsonaro, de afirmar que 'não entende nada de economia', muito se assemelha de certa forma ao exercício de poder na ditadura”, diz o historiador.

A propósito de Paulo Guedes, uma história relacionada ao banco fundado por Simonsen em 1961. O outro sócio do banco era o empresário gaúcho Julio Bozano, octogenário ainda vivo. A instituição se chamava Bozano, Simonsen. Uma mega rede criminosa de doleiros desbaratada este ano levou a uma denúncia à Justiça contra um preposto de Julio desde os tempos do banco, Oswaldo Prado Sanchez.

Na acusação, há um e-mail a mostrar Sanches como administrador de contas de Julio no exterior, o que talvez explique como o Grupo Bozano, descrito como “grande cliente” do esquema, fornecia cash aos doleiros. Julio teve de sair de cena do mercado financeiro em 2000 exatamente devido a suspeitas de um dirigente do banco ter carta branca dele para estripulias. Reapareceu em 2013. Sócio de quem? Guedes, o guru bolsonarista.

A afirmação de que a corrupção correu solta com os generais tem atestado made in USA. É o que se vê em um documento enviado ao Brasil pelos Estados Unidos em algum momento entre 2014 e 2015, apoio americano à Comissão da Verdade acertado pessoalmente, em Brasília, durante a Copa do Mundo de 2014, por Dilma, presidente à época, com Joe Biden, vice de Barack Obama.

Trata-se de um telegrama de 1o de março de 1984 da embaixada dos EUA no Brasil ao Departamento de Estado, em Washington, revelado em junho por O Globo e obtido por CartaCapital. O assunto era “Corrupção e política no Brasil”.

“Entre muitos oficiais, desde os aspirantes até os mais graduados, existe uma forte crença que os últimos 20 anos no poder corromperam os militares, especialmente os comandos mais elevados”, dizia o texto. “Muitos brasileiros médios acreditam que o governo federal seja corrupto. Essa crítica também se estende ao grande número de cargos de responsabilidade ocupados por oficiais militares aposentados nas empresas paraestatais.” As estatais, seguia o telegrama, eram usadas “para empregar altos oficiais militares aposentados e seus amigos”.

Apesar disso, “poucas acusações concretas têm sido feitas e ainda menos condenações têm sido obtidas”, anota no telegrama. O motivo? “Reticência em acusar as Forças Armadas ou o governo federal, ainda muito poderoso”, e porque “a prova é muito difícil de ser obtida”. Parece que a corrupção em estatais não começou com o PT, antes era abafada, hein?

O certo, prosseguia a embaixada, “é que a corrupção, real e imaginada, está erodindo a confiança dos brasileiros em seu governo”. Em caso de eleição direta para presidente, o povo teria “uma chance de expulsar esse conjunto de vagabundos”. Não teve.

Semanas depois, a lei das Diretas Já foi aprovada no Congresso, por 298 votos a 65. Precisava de mais 20 votos. Figueiredo ficaria no cargo até março de 1985, à frente de um governo contra o qual “existem muitos escândalos que lançam nuvens”, dizia o Tio Sam.

Seu sucessor foi escolhido por deputados e senadores que tinham sido eleitos em 1982 conforme as regras da ditadura. A vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral em 1985 foi o grande símbolo de desaprovação dos brasileiros ao legado de 20 anos dos militares, na avaliação do sociólogo Brasilio Sallum Jr., da USP, autor na década seguinte do livro Labirintos: Dos Generais à Nova República. Um desfecho óbvio, até certo ponto.

O crescimento durante o “milagre”, diz Sallum Jr., produziu um operariado numeroso e descontente com o arrocho salarial, insatisfação que fez surgir um novo sindicalismo, Lula à frente. Na classe média, a repressão fortaleceu o apego a valores democráticos, algo que se refletiu na crescente atuação de entidades como a OAB, dos advogados, a ABI, da imprensa, e a CNBB, da Igreja Católica. “Esse conjunto se expressou eleitoralmente na vitória de Tancredo. A vitória dele foi o maior símbolo da mudança de ventos”, diz o sociólogo.

Na marra ou no voto em um candidato autoritário cercado de militares idem, os brasileiros vão querer aqueles ventos de novo?

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