"Papa Francisco é popular, mas não populista", diz renomado teólogo argentino

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15 Março 2017

"Papa Francisco é popular, mas não populista", declarou o Padre Carlos Galli, reitor da Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica da Argentina, em Buenos Aires, em entrevista à America no quarto aniversário da eleição de Francisco para papa.

Ele diz:

É necessário distinguir populares e populistas. Francisco é popular, mas não populista. Ele é popular porque entende a Igreja, juntamente com o Concílio Vaticano II, como Povo de Deus peregrino. Ele ama o povo de Deus e os povos do mundo. E é popular por causa de sua maneira calorosa e próxima das pessoas. Nele, vemos a cultura afetiva e os gestos dos povos latino-americanos. Quando ao final da sua primeira missa depois de ser eleito papa, na paróquia de Santa Ana no Vaticano, ele saiu para saudar o povo, estava apenas fazendo o que a maioria dos padres na América Latina fazem depois da missa. Francisco é popular porque fala de forma simples e direta e as pessoas dizem: "Eu entendo este papa".

"Ser populista, por outro lado, é ser um demagogo retórico que lança frases de efeito e simplifica as coisas para torná-las lemas que lhe permitam manipular as pessoas", de acordo com o célebre teólogo argentino.

A entrevista é de Gerard O'Connell, publicada por America, 13-03-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.

Padre Galli, membro da Comissão Teológica Internacional, conhece o papa há mais de 30 anos e, nesta entrevista, reflete sobre os quatro primeiros anos de Francisco como líder do mundo católico e menciona algumas coisas que gostaria de vê-lo fazer nos próximos quatro anos.

Eis a entrevista.

Quais são as principais conquistas de Francisco em seus quatro primeiros anos como papa?

Ele deu início a uma nova fase da reforma da Igreja Católica, de acordo com o Evangelho e alinhada com o Concílio Vaticano II. Ele entende que seu pontificado está em continuidade com esse concílio, que foi o grande presente de Deus para a Igreja no século XX e é a sua bússola para o século XXI. Enquanto concílio pastoral e ecumênico, o Vaticano II promoveu uma reforma ou renovação da Igreja e, no seu "Decreto sobre o Ecumenismo", afirmou: "A Igreja peregrina é chamada por Cristo a essa reforma perene. Como instituição humana e terrena, a Igreja necessita perpetuamente desta reforma (Nº 6)."

O Papa Francisco aborda tudo isso em "Evangelii Gaudium", seu documento programático, para enfatizar que a Igreja deve estar em constante estado de reforma.

Como ele entende esta reforma?

Ele a vê basicamente como uma transformação através da qual a Igreja busca adequar-se melhor a Jesus Cristo. Para ele, o Evangelho é o primeiro polo dessa transformação e, em seus escritos e discursos, ele insiste na urgência de que a Igreja "se renove do frescor original do Evangelho", "viva o Evangelho sem brilhos e sem análises" e "nos renove na alegria do Evangelho". O segundo polo é ser cada vez mais fiel a Cristo no "hoje" da história. Isso requer uma atualização da figura histórica da Igreja, uma renovação discernindo os sinais dos tempos, para promover novos posicionamentos que possibilitem realizar melhor a missão evangelizadora.

Neste sentido, a reforma de Francisco pode ser definida pelas duas dinâmicas que influenciaram a renovação da Igreja e a teologia do Vaticano II: o retorno às fontes e a atualização ("aggiornamento") indicada por João XXIII.

Em sua entrevista ao El País, Francisco disse que não se enxerga como um papa reformador ou revolucionário - para ele, o reformador foi Paulo VI - e que ainda está realizando uma grande reforma da Cúria Romana e da Igreja universal.

Francisco está realizando uma reforma a partir do paradigma da "conversão missionária", uma conversão que significa um retorno a Deus, a Cristo, ao Evangelho e uma missão que fala sobre anunciar o Evangelho às pessoas e aos povos e, especialmente, às periferias. Ele está em busca de uma reforma que torne a Igreja mais fiel a Cristo, uma reforma para melhor servir ao ser humano, uma reforma orientada para uma missão.

Lembre-se: Jorge Mario Bergoglio sempre se identificou como jesuíta e para ele ser jesuíta significa ser alguém essencialmente missionário. Mas ele observa que esse ponto de partida não é válido apenas para os jesuítas, mas para todos os fiéis, porque, como o Vaticano II já afirmou claramente, "a Igreja peregrina é missionária por sua própria natureza" ("Ad Gentes", Nº 2). Francisco contou que escreveu "A alegria do Evangelho" para todos os membros da Igreja, "a fim de mobilizá-los para um processo de reforma missionária ainda pendente" ("Laudato Si' " Nº 3).

Ele continua impulsionando esta reforma, como vimos no Sínodo sobre a Família, mas há resistência.

Sim, ele continua pedindo a bispos e sacerdotes se identificarem continuamente com os sentimentos e atitudes de Jesus, o Bom Pastor, que deu a vida por suas ovelhas. Uma dessas atitudes é se aproximar de todos; sair para encontrar o outro onde ele está, como é, e não onde ou como eu acho que deveria estar ou ser. Ao falar que a Igreja deve "sair", Francisco está ecoando o que o Vaticano II diz sobre sua natureza missionária essencial. Ele resume o que isso significa em "Amoris Laetitia", no capítulo 8, através de três verbos: "acompanhar, discernir, integrar".

Uma das formas de resistência ao Papa é não nos permitir ser evangelizados por um Deus misericordioso que nos chama à conversão e a sermos misericordiosos como Deus é conosco. Ser misericordioso implica pensar em planos pastorais para acompanhar, discernir e integrar aos outros. Mas talvez nós estejamos pouco acostumados a acompanhar os outros. Ao invés disso, somos muito melhores em dizer ou indicar o que devem fazer. Também não estamos acostumados a discernir a complexidade de cada caso particular. Nos sentimos mais à vontade para dar instruções claras, esquecendo que somos chamados a amar e atingir a todos e a cada um.

Há alguma grande questão que você acha que Francisco precisa abordar intensamente nos próximos quatro anos?

Acredito que ele deve consolidar o que está fazendo na Igreja e no mundo hoje.

Em primeiro lugar, ele deve proporcionar um maior protagonismo às igrejas locais, especialmente no hemisfério sul: América Latina, Ásia e África. Ele não só é o primeiro papa do sul, mas também do sul do sul. Isso representa uma dificuldade para muitos de nossos irmãos europeus, para quem latino-americanos devem respeito e gratidão por terem nos apresentado à fé.

Mas já não se pode pensar que a Europa continua sendo o centro. O eurocentrismo político começou a diminuir com o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945 e o cultural, com o surgimento de culturas na década de 1960. O eurocentrismo eclesial começou a acabar na eleição de Francisco para bispo de Roma. Sua eleição não é o único sinal: também vimos pela primeira vez na história a eleição de um não europeu para superior geral dos jesuítas, o padre Arturo Sosa, da Venezuela.

Estes são apenas sinais, mas são sinais de que a Igreja cresceu e está crescendo no sul do mundo. Um fato é suficiente para ilustrar isso: em 1910, 70% dos católicos batizados eram do norte do mundo, mas em 2010 cerca de 68% dos católicos moravam no sul. Pouco mais de 23% mora na Europa, enquanto 39% mora na América Latina, 16% na África e 12% na Ásia.

Como você interpreta estes fatos demográficos?

Eles indicam a necessidade de uma mudança cultural e exigem a abertura de caminhos diferentes para a Igreja.

Queira ou não, a Igreja do sul virou gente grande, tanto que, pela primeira vez, o Sucessor de Pedro é do sul. Isso precisa ser bem compreendido, mas alguns não estão dispostos ou não conseguem compreender e, por isso, há resistência.

É necessário permanecer aberto para o que Deus está fazendo na história e isso vem através da atenção à composição concreta do povo de Deus e, a partir daí, do colégio dos bispos, do Colégio dos Cardeais e do sucessor de Pedro. Francisco está buscando tornar o Colégio dos Cardeais mais representativo dos católicos no mundo, para refletir a catolicidade intercultural da Igreja.

Até agora, os europeus foram maioria nos conclaves, mas, como ele disse ao El País, espera-se que o próximo será "um conclave Católico". Cabe, portanto, fazer a seguinte pergunta: quantos dos próximos 10 papas virão da América, da Ásia ou da África?

O que mais você gostaria de ver Francisco fazer nos próximos quatro anos?

Ele deve continuar com a reforma de toda a igreja e das estruturas de seu governo central - a Cúria Romana - para que possa ser uma Igreja mais pobre e para os pobres. Consciente da natureza "líquida" dos laços humanos, tanto nas formas de comunicação quanto em todas as outras dimensões da vida, Francisco insiste constantemente em uma fé concreta.

Ele convida as pessoas a "tocar a carne de Cristo no outro, no próximo, no irmão de carne e osso". Ele nos lembra que no coração da nossa fé está a verdade do Evangelho - como diz São João, "o Verbo se fez carne" - e que Deus não apenas tornou-se homem, mas em Cristo também tornou-se pobre, de acordo com São Paulo.

Francisco insiste que esta pobreza de Deus está no coração da nossa fé. Dez anos atrás, na V Conferência Geral dos Bispos Latino-americanos e Caribenhos, em Aparecida, no Brasil, o Cardeal Bergoglio foi eleito presidente da comissão que elaborou seu documento final, que reafirmou a opção da Igreja latino-americana pelos pobres, assim como em Medellín (1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992), mas também foi mais longe ao insistir na origem e conteúdo cristocêntrios dessa opção.

Como papa, Francisco desenvolveu esta ideia no capítulo 6 da " Evangelii Gaudium ", onde aborda a problemática contemporânea da inclusão dos pobres e afirma que eles estão no coração de Deus e no coração da Igreja, relembrando que no final de nossas vidas todos nós seremos julgados de acordo com o capítulo 25 do Evangelho segundo São Mateus. Na minha opinião, o capítulo 6 da " Evangelii Gaudium " é o mais importante já escrito por um papa sobre Cristo, sobre a Igreja e sobre os pobres.

Mas há resistência à mensagem de Francisco de conversão do Evangelho ao pobre e ao amor pelos pobres, porque exige uma mudança radical de perspectiva e de posicionamento no estilo de vida e conforto dos grupos sociais poderosos.

O que mais você gostaria que Francisco fizesse nos próximos quatro anos?

Eu gostaria que ele intensificasse os seus esforços e os da Santa Sé em favor da justiça, da paz e dos cuidados de nossa casa comum. E dada a situação internacional atual, que ele continue priorizando os imigrantes, refugiados e deslocados e ajudando a construir uma cultura de encontros - "pontes e não muros" - nos níveis nacional e internacional da sociedade.

Francisco demonstra um interesse particular pela questão. Sua primeira viagem como papa foi para a ilha de Lampedusa. Ele começou sua visita ao México em Chiapas e terminou em Ciudad Juarez, na fronteira com os Estados Unidos. E, no Vaticano, ele criou uma unidade especial dedicada aos imigrantes, refugiados e deslocados, que tem ligação direta com ele.

Para ele, essa é uma prioridade, como ficou claro em novembro passado em Roma, em seu discurso no Encontro dos Movimentos Populares do Terceiro Mundo, onde ele lembrou a todos que "todos os muros caem. Todos eles. Não nos deixemos enganar. Vamos continuar trabalhando para construir pontes entre os povos, pontes que nos permitam derrubar os muros de exclusão e exploração. Vamos encarar o terror com amor."

Mas, novamente, há resistência e, em alguns lugares, uma forte resistência.

Você o conhece há mais de 30 anos, trabalhou com ele e o encontrou em diversas ocasiões, desde a sua eleição. O que mais lhe impressiona nele agora que é papa?

A alegria e a paz. A alegria é a chave do seu pontificado. Ele insiste nisso em seus três principais documentos - "Evangelii Gaudium", "Laudato Si '" e "Amoris Laetitia" - e em seu discurso à 36ª Congregação Geral dos Jesuítas. Esta insistência na alegria é um tema subjacente ao catolicismo contemporâneo, começando por abordar João XXIII na abertura do Vaticano II e no documento do Concílio sobre a Igreja no mundo moderno, "Gaudium et Spes".

Em segundo lugar, como papa, Francisco tem a virtude da esperança que lhe permite abrir novos caminhos, o carisma de discernir a voz do Espírito nos gritos dos povos, a capacidade de trabalhar e ter coragem diante de desafios, dificuldades, resistências. Ele está realizando uma reforma da igreja universal através dos processos sinodais. O papa tem um senso de tempo afinado e sabe que este é o momento dado por Deus (Kairos) para esta reforma. Cheio de esperança, ele confia em Deus e cultiva as virtudes da coragem e da força: perseverança, paciência, magnanimidade, audácia. É muito prudente e, acima de tudo, misericordioso, porque sabe que vivemos do dom da misericórdia de Deus.

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