Igreja “em saída” x restauração identitária: como desempatar?

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

07 Setembro 2014

“Estamos em meio a uma crise eclesial onde importantes setores intermediários obstruem o projeto papal de Igreja “em saída”. Para desobstruir o processo e levar em frente o projeto é indispensável a mobilização das bases eclesiais que só terão a ganhar forçar na medida em que os setores de libertação e os setores carismáticos caminharem juntos”, afirma Pedro A. Ribeiro de Oliveira, sociólogo, em artigo que publicamos a seguir.

Pedro A. Ribeiro de Oliveira é doutor em Sociologia pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica. É professor no mestrado em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas – PUC-Minas, consultor de ISER-Assessoria. Dentre suas obras, destacamos Fé e política: fundamentos (Aparecida: Ideias & Letras, 2004), Reforçando a rede de uma Igreja missionária (São Paulo: Paulinas, 1997) e Religião e dominação de classe (Petrópolis: Vozes, 1985).

Eis o artigo.

Ao surpreender o mundo por sua visita a Lampedusa, onde solidarizou-se com os e as migrantes que ilegalmente buscam vida melhor na Europa, Francisco mostrou seu projeto de pontificado: uma Igreja “em saída”. Explicitou esse projeto na exortação A alegria do Evangelho (# 20-24), onde diz preferir “uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento” (# 49). Esse projeto está conquistando a simpatia e o entusiasmo de muita gente, dentro e fora da Igreja católica, mas há fortes sinais de resistência a ele no interior da hierarquia católica, porque ele vai na direção contrária à linha dos dois pontificados anteriores, focados no projeto que se pode chamar de restauração identitária. Fazendo uma análise de conjuntura, parece-me que esses dois projetos estão hoje em “empate técnico”. Será possível desobstruir o impasse que impede a atualização da proposta de Igreja oriunda do Concílio Vaticano II? Analisar o problema a partir do enfoque sociológico é o propósito deste artigo(1) .

A eleição de João Paulo II marca o início do processo de restauração identitária da Igreja católica: projeto de reafirmação da Igreja e desconfiado de tudo que não tenha a marca católica. Seu propósito não era retornar ao passado tridentino, mas impor a interpretação do Concílio Vaticano II a partir do Concílio Vaticano I, que tornou a autoridade do Papa suprema e incontestável sobre toda a Igreja católica. Contando com a participação do teólogo J. Ratzinger, que o sucedeu no papado, João Paulo II usou vários instrumentos eclesiásticos para implementar esse projeto, sendo os principais: a nomeação de bispos afinados com a mesma linha, a reforma do direito canônico, a promulgação do Catecismo da Igreja Católica e as normas restritivas para a liturgia.

Esse projeto encontrou apoio em Movimentos eclesiais como Opus Dei, Comunhão e Libertação, Focolare, Neocatecumenato, Renovação Carismática Católica e outros de menor alcance mundial. O arco de alianças formado pelo Papa, a Cúria Romana, os bispos de sua confiança em dioceses chaves, e os Movimentos eclesiais passou então a difundir sua própria interpretação dos documentos promulgados pelo Concílio como sendo a única interpretação autêntica, ao mesmo tempo que desqualificava qualquer divergência.

Assim João Paulo II e Bento XVI reforçaram a tradição tridentina que vê na salvação individual das almas a missão própria da Igreja – como falou Bento XVI ao episcopado brasileiro, em 12 de maio de 2007 – enquanto a população católica quer proteção, cura e segurança (catolicismo popular), um convívio de alegre proximidade com o divino (catolicismo carismático) ou a reafirmação da fé num outro mundo possível onde Justiça e Paz se abracem (catolicismo da libertação). Sem perceber que a salvação das almas por meio dos sacramentos está a perder terreno, minada pelo paradigma técnico-científico da modernidade, pelo hedonismo favorecido pelo acesso ao mercado de consumo, pela valorização da vida terrena e pela descrença no inferno, a Igreja vê reduzir-se o número de seus fiéis, principalmente entre a juventude (2) .

Diante desse descompasso, a Igreja busca atrair fiéis oferecendo-lhes espetáculos religiosos que combinam entretenimento, missa e devoções (marianas, aos santos e ao Santíssimo). Emissoras de TV e rádio, bem como os santuários tornam-se palco dessa religião-espetáculo onde padres midiáticos atraem grande público mas, passadas as emoções do espetáculo, cada qual retoma sua vida cotidiana sem reforçar seus laços com a Igreja.

Tudo isso enfraqueceu o ímpeto das inovações introduzidas pelo Concílio (a atitude ecumênica e inter-religiosa, a Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base, os organismos colegiados, a liturgia inculturada, a renovação da vida religiosa, a abertura dos seminários, e outras), sem entretanto implantar um novo modelo de Igreja católica apto a dialogar com o mundo contemporâneo. O enrijecimento da Igreja ao insistir em sua convicção de ser portadora de verdades absolutas em oposição ao “relativismo” do mundo criou uma barreira na comunicação entre eles. De um lado, estava o corpo clerical cada vez mais empoderado pelo projeto de restauração identitária; de outro, estava a grande massa de leigas e leigos reduzidos à condição de auxiliares dos padres, senão de simples usuários de serviços religiosos.

O fracasso do projeto de restauração identitária levou à renúncia de Bento mas não desmantelou sua rede de apoio: ele continua tendo adeptos na Cúria romana – seu principal reduto – nos Movimentos eclesiais que explícita ou dissimuladamente cultivam a tradição tridentina e entre muitos bispos, padres, seminaristas, religiosas e religiosos formados para aquele modelo de Igreja. Embora esses setores declarem sua devota obediência ao papa, há indícios de que lhes desagradam tanto as críticas de Francisco à ostentação mundana de pessoas consagradas, quanto seu estímulo a uma Igreja pobre e servidora dos pobres.

Além disso, não se pode esquecer a importância do patrimônio econômico acumulado pela Igreja: ele pode assegurar-lhe uma sobrevida independente de contribuições dos fiéis.

Diante dessa situação de “empate técnico” entre os dois projetos, qual será o caminho do desempate a favor da Igreja “em saída”? Como foi indicado antes, esse desempate será decidido antes na base formada pela grande comunidade católica do que nas instâncias eclesiásticas. É preciso então examinar quais são setores da comunidade católica que têm afinidade com o projeto de Francisco.

A Igreja “em saída” não pode contar nem com os Movimentos tradicionalistas, nem com os oriundos da Renovação Carismática que voltaram aos tempos de Pio XII – como Shalon, Toca de Assis, Canção Nova e outros. Tampouco pode contar com os e as fiéis praticantes do catolicismo popular – devocional e protetor. A sustentação da Igreja “em saída” só pode residir nos setores cujas raízes se encontram no Concílio Vaticano II: de um lado, o setor polarizado pelas Comunidades Eclesiais de Base e Pastorais sociais; de outro, os variados grupos congregados pelo Movimento carismático. Vejamos isso mais de perto.

O Catolicismo da libertação é fruto da recepção latino-americana do Concílio Ecumênico de 1962-65 e ganhou importância pela atuação das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs – e Pastorais Sociais junto aos movimentos sociais. Ele tem sua fundamentação na Teologia da Libertação que, apesar de desqualificada nos espaços eclesiásticos oficiais, continua bem viva na sociedade brasileira. Embora evidentemente minoritário ele tem representantes de vulto no episcopado, no clero e principalmente na intelectualidade católica.

O Catolicismo carismático é hoje a forma hegemônica na Igreja do Brasil. Introduzido nos anos 1970 pela Renovação Carismática Católica – RCC – ele conjuga oração de louvor, música e curas. Sua organização por meio de grupos de oração apoiados por equipes de serviço lhe dá grande autonomia face às autoridades eclesiásticas, enquanto sua ênfase na prática dos sacramentos favorece sua integração nas estruturas paroquiais. Nos anos 1990 o Movimento carismático desdobrou-se em duas vertentes: uma assumiu a pastoral nas paróquias dando-lhe o tom carismático, enquanto a outra formou Movimentos independentes com comunidades “de vida” e “de aliança” que gradualmente retornaram ao catolicismo de salvação individual revestindo-o com um estilo carismático. É necessário ter em mente essa distinção, porque a RCC não se identifica com aqueles Movimentos nem com os padres midiáticos, e sim com os grupos de oração. Convém observar também que embora a forma carismática seja hoje hegemônica na maioria das paróquias e dioceses brasileiras, sua fundamentação teológica continua frágil.

Observe-se que tanto o catolicismo da libertação quanto o carismático nasceram do Concílio Vaticano II, embora tenham tomado trajetórias divergentes: enquanto os setores polarizados pelas CEBs e Pastorais sociais buscam realizar o Reino de Deus no mundo dos pobres, os setores afinados com a RCC querem implantá-lo no coração de cada pessoa; enquanto uns realizam celebrações que alimentem a relação entre fé e política, outros fazem celebrações de louvor. Tais divergências, porém, não implicam necessariamente incompatibilidade entre esses dois frutos do Concílio Vaticano II, pois são como dois irmãos separados por circunstâncias históricas e não por inimizade ou antagonismo de fundo. Neste sentido, convém lembrar dois fatos: cresce tanto o número de animadores de CEBs que são membros de grupos de oração carismáticos, quanto o número de pessoas que participam ativamente de lutas sociais sem abandonarem o jeito carismático de rezar.

Podemos então concluir esta análise de conjuntura eclesiástica lembrando que Francisco iniciou seu pontificado – criação de pontes – pedindo que rezássemos por ele. Não basta, porém, rezar. É preciso também mobilizar a comunidade católica para a realização de seu projeto. Depois de anos habituados a entender “missão” como arrebanhamento de pessoas afastadas da Igreja para levá-las à prática dos sacramentos, assumir o projeto de Igreja “em saída” requer elaboração teórica e ações práticas. Teórica, porque se trata de recuperar e atualizar a visão do Concílio Vaticano II; prática, porque se trata de construir um “novo jeito de ser Igreja” não a partir dos templos, mas a partir das casas e da rua.

Francisco é, sem dúvida, o personagem principal desse projeto, mas só poderá realizá-lo com a colaboração dos setores eclesiásticos intermediários – bispos, padres, religiosas e religiosos – e com a mobilização das bases. Aqui reside o ponto-chave desta análise: da participação ativa de leigos e leigas depende o êxito do projeto de Igreja “em saída”. Neste sentido, é fundamental a reconciliação e o entendimento entre os setores católicos polarizados pelas CEBs e Pastorais sociais, e os setores agregados aos grupos de oração de raízes carismáticas. A partir daí poderá crescer a sua colaboração em favor do êxito do projeto de Igreja “em saída”.

Estamos em meio a uma crise eclesial onde importantes setores intermediários obstruem o projeto papal de Igreja “em saída”. Para desobstruir o processo e levar em frente o projeto é indispensável a mobilização das bases eclesiais que só terão a ganhar forçar na medida em que os setores de libertação e os setores carismáticos caminharem juntos. Essa tarefa não é fácil, mas é na crise que somos mais criativos.

Notas do Autor:

1.- A sociologia inspirada em E. Durkheim faz ver a Igreja como a instituição que visibiliza a coletividade de fiéis. É a grande comunidade católica a base sobre a qual está assentada a Igreja como instituição social. Duas imagens bem ilustram essa teoria: o iceberg (onde é a parte submersa que faz flutuar a parte visível) e a árvore que só se sustenta pela capilaridade das raízes sob a terra. Na relação entre a instituição eclesiástica e a comunidade católica reside a explicação da sua estrutura e dinâmica. Este tema foi apresentado no 38° congresso de Teologia Moral, em São Paulo, e o texto original encontra-se em L. PESSINI e R. ZACHARIAS: Ética Teológica e Transformações Sociais, pp. 159-181: Santuário, 2014.

2.- A comparação dos dados dos censos de 2000 e 2010 indica que está chegando ao fim a “cultura católica de longa duração” que há séculos tem sido uma característica brasileira. Não é necessário sofisticar a análise para se prever que quando as atuais crianças, adolescentes e jovens chegarem à idade adulta (ao mesmo tempo em que morrerem os atuais idosos), o catolicismo não terá mais o peso que ainda tem na sociedade brasileira. Mais importante, contudo, do que a diminuição numérica, é a fragilidade da identidade religiosa: embora muitas famílias continuem a transmitir o catolicismo às novas gerações, difunde-se cada vez mais o modelo religioso de “crer sem pertencer”, ou “espiritualidade não-religiosa”, que são frutos maduros da desafeição às instituições religiosas.

Veja também:

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Igreja “em saída” x restauração identitária: como desempatar? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU