"A bandeira de uma Igreja pós-colonial, com rosto amazônico, está apontando para um longo caminho, para uma via-sacra com esperança pascal”. Entrevista especial com Paulo Suess

Viagem do papa Francisco a Puerto Maldonado | Foto: Vatican Media

Por: Ricardo Machado | 17 Fevereiro 2020

No dia 12 de fevereiro, em que se faz memória do assassinato da missionária Irmã Dorothy Stang por pistoleiros no Pará, o papa Francisco publicou a Exortação Apostólica Querida Amazônia, documento inspirado pelo Documento final do Sínodo Pan-Amazônico e na sua Carta Encíclica Laudato si’. O documento é articulado a partir de quatro eixos - sonhos – campo social (n. 8-27), cultural (n. 28-40), ecológico (n. 41-60) e eclesial (n. 61-110) – resultado, também, da escuta de mais de 86 mil pessoas. “A Exortação ‘Querida Amazônia’, em seus três primeiros capítulos, mostra uma contextualização importante da Encíclica Laudato si’ na Amazônia, mas decisões internas da Igreja católica que poderiam, na quarta parte do texto, fortalecer essa contextualização e sua bandeira ecológica e sociocultural através de uma presença ministerial plena, aguardam ainda luz verde”, resume o teólogo Paulo Suess, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Quanto ao documento final, seus limites têm a ver com a própria natureza do processo de sinodalidade. “Quando não se resolvem as questões com autoritarismo ou nos moldes de um sistema democrático, mesmo funcionando bem, as decisões levam mais tempo. Podemos aprender isso com os povos indígenas que discutem noite adentro para conseguir um consenso em determinadas questões. E nas discussões da Igreja, depois de ter discutido noite adentro, ainda não podemos ver a estrela da manhã e da unidade que anunciaria o consenso”, pondera Suess. “Seguramente, a bandeira de uma Igreja pós-colonial, inculturada em todas as dimensões sociais, culturais e pastorais, com rosto amazônico, defensora de todos os habitantes da região, uma Igreja missionária, militante e martirial está apontando para um longo caminho, para uma via-sacra com esperança pascal”, complementa.

A propósito, é justamente esse movimento de esperança que deve animar o trabalho pastoral da igreja católica junto às populações amazônicas, vilipendiadas de inúmeras formas e vulneráveis às mais variadas formas de extermínio. “Não temos o direito de privar os povos, em nome de uma lei humana, da celebração dessa esperança decisiva ou reduzi-la a uma mera doutrina catequética”, avalia o entrevistado.

Paulo Suess durante o Sínodo para a Amazônia (Foto: Luis Miguel Modino)

Paulo Suess é doutor em Teologia Fundamental, fundador do curso de Pós-Graduação em Missiologia, na então Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário - Cimi e professor em várias Faculdades de Teologia no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia. Participou do Sínodo dos Bispos sobre Amazônia, como perito. Entre suas últimas publicações, destacamos Introdução à Teologia da Missão (Petrópolis: Vozes, 4a ed., 2015); Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007); Dicionário da Evangelii gaudium (São Paulo: Paulus, 2015); Missão e misericórdia - A transformação missionária da Igreja segundo a Evangelii gaudium (São Paulo: Paulinas, 2017); e Dicionário da Laudato si’ – Sobriedade feliz (São Paulo: Paulus, 2017).

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Qual é sua avaliação geral do documento?

Paulo Suess – A Exortação Apostólica Querida Amazônia, do papa Francisco, inscreve-se no gênero literário de uma Carta de Amor dirigida à Amazônia. Nas quatro partes de sua carta, o Papa fala com a sua amada Amazônia de quatro sonhos, sonhos que procuram antecipar novas realidades e horizontes concretos no campo social (n. 8-27), cultural (n. 28-40), ecológico (n. 41-60) e eclesial (n. 61-110).

Nas três primeiras partes do documento, portanto no seu sonho social, cultural e ecológico, que se dirigem a “todas as pessoas” e ao “mundo inteiro” (n. 4 e 5), o Papa se inspira com criatividade no Documento final do Sínodo, na sua Carta Encíclica Laudato si’ e nas consultas prévias feitas ao povo de Deus. Nessas consultas foram ouvidas e sintetizadas as vozes de mais de 86 mil pessoas. Nas três primeiras partes Francisco fala com sua amada Amazônia mais ou menos assim: “Nós, a Igreja, te amamos apaixonadamente (n. 3), nós aprendemos muito de você (n. 26 e 55) e nós te defendemos (n. 63), tua vida, teus direitos, tuas culturas e terras. Podes contar conosco no que der e vier”.

 Assista os vídeos sobre os "sonhos do papa Francisco":

 

 

 

 

Na quarta parte, que se dirige aos “pastores e fiéis católicos” (n. 60), muda o tom da carta como se o amante tivesse esquecido algo. O sonhador parece “cair na real” e a amada, a “Querida Amazônia”, recebe uma lição-lembrete que, na “cultura do encontro” (n. 61), o passado, que deixou condicionantes contraditórias e heranças históricas, não pode ser esquecido.

Existe, por exemplo, a condicionante da evangelização explícita que pressupõe um direito dos habitantes da Amazônia “ao anúncio do Evangelho” (n. 64). Esse direito está vinculado a um dever dos missionários visitantes de anunciá-lo, independente de uma solicitação dos visitados. Por outro lado, a condicionante da celebração eucarística (Presbyterorum ordinis, 6), necessária para a edificação de uma comunidade cristã, e que recebeu uma atenção especial no Documento final do Sínodo (DF 111), não encontrou o encaminhamento esperado.

Resumindo: A ExortaçãoQuerida Amazônia”, em seus três primeiros capítulos, mostra uma contextualização importante da Encíclica Laudato si’ na Amazônia, mas decisões internas da Igreja católica que poderiam, na quarta parte do texto, fortalecer essa contextualização e sua bandeira ecológica e sociocultural através de uma presença ministerial plena, aguardam ainda luz verde.

IHU On-Line – Quais são as principais chaves de leitura do documento?

Paulo Suess – Depois da leitura da “Querida Amazônia”, também eu tive um sonho. Me encontrei com o papa Francisco, agradeci a sua carta pós-sinodal, mencionei algumas pérolas do texto e apontei com aquela “audácia missionária” (n. 95), que ele pediu na sua Exortação e em visitas anteriores para algumas esperanças, aparentemente, frustradas. Pacientemente, o papa escutou as minhas perplexidades.

Em várias ocasiões, o Senhor nos pediu propostas corajosas e agora nem menciona o pedido dos padres sinodais ‘para ordenar sacerdotes a homens idôneos e reconhecidos pela comunidade (...) para o presbiterado, podendo ter uma família legitimamente constituída e estável, para sustentar a vida da comunidade cristã mediante a pregação da Palavra e a celebração dos Sacramentos nas áreas mais remotas da região amazônica’ (DF 111). Diante desse seu silêncio, o que significa, que ‘é necessário aceitar corajosamente a novidade do Espírito’ (n. 69)? O Senhor nos convidou para edificar uma ‘Igreja de rostos amazônicos’ (n. 94) e agora pede ‘ser mais generosos’ (n. 90) no envio de missionários de outras culturas e países que levarão muitos anos para viver e exercer seu ministério segundo o jeito amazônico. Aliás, sempre promovemos ‘a oração pelas vocações sacerdotais’ (n. 90), mas talvez o Espírito bata na porta da Igreja ‘exigindo uma resposta específica e corajosa’ (n. 85) para os dias de hoje”.

O papa interveio suavemente em meu sonho. “Sim, meu caro missionário, eu sei que ‘a pastoral da Igreja tem uma presença precária na Amazônia, devido em parte à imensa extensão territorial, com muitos lugares de difícil acesso, grande diversidade cultural, graves problemas sociais’ (n. 85) e pastorais. A minha resposta, disse o papa, está no item 86 da ‘Querida Amazônia’: ‘É necessário conseguir que o ministério se configure de tal maneira que esteja ao serviço de uma maior frequência da celebração da Eucaristia, mesmo nas comunidades mais remotas e escondidas. Em Aparecida, convidou-se a ouvir o lamento de tantas comunidades na Amazônia, ‘privadas da Eucaristia dominical por longos períodos de tempo’. Mas, ao mesmo tempo, há necessidade de ‘ministros que possam compreender a partir de dentro a sensibilidade e as culturas amazônicas’ (n. 86). É a minha resposta para a questão dos ‘viri probati’, que se tornou uma expressão emotiva. Eu não tive a pretensão de repetir nem de substituir os pontos marcantes do Documento conclusivo do Sínodo (cf. n. 2). A fase importante do Sínodo é o tempo pós-sinodal. É o tempo da inculturação das propostas sinodais acolhidas na Exortação Querida Amazônia. O Papa, disse Francisco, falando de si na terceira pessoa, tem o ministério de zelar pela unidade. Peço compreensão das mulheres, dos leigos e dos agentes de pastoral. Para decisões mais apressadas nos falta o consenso no interior da Igreja. Não posso deixar ninguém fora da canoa eclesial. Sempre tem mais um lugar para um náufrago. Tenho uma afinidade e paciência particular com eles. A minha primeira viagem, se lembram, fiz para Lampedusa. ‘Não se perturbe o vosso coração! (...) Na casa de meu Pai há muitas moradas’ (Jo 14,1-2).” Falou e acordei.

Assista ao vídeo do Pe. Adelson, um dos apresentadores da Querida Amazônia, no Vaticano 

 

IHU On-Line – Quais são os limites do documento?

Paulo Suess – Os limites da “Querida Amazônia” são os limites da sinodalidade. Quando não se resolvem as questões com autoritarismo ou nos moldes de um sistema democrático, mesmo funcionando bem, as decisões levam mais tempo. Podemos aprender isso com os povos indígenas que discutem noite adentro para conseguir um consenso em determinadas questões. E nas discussões da Igreja, depois de ter discutido noite adentro, ainda não podemos ver a estrela da manhã e da unidade que anunciaria o consenso. Na caminhada precisamos aprender a misericórdia de uns com os outros, a paciência e, sobretudo, compreender a solidariedade como coração da sinodalidade para com aqueles aos quais queremos servir e cuja vida está ameaçada. Na sinodalidade precisamos ter foco nas questões essenciais da humanidade e clareza sobre as prioridades eclesiais, também para não confundir as discussões sobre o celibato com as questões da vida ameaçada na Amazônia.

IHU On-Line – Qual é o impacto que se pode prever?

Paulo Suess – A Exortação Apostólica Querida Amazônia não fecha nenhuma questão discutida durante o Sínodo, mas tampouco acelera a sua realização. Ela devolve essas questões às regiões como está previsto na Constituição Apostólica Episcopalis Communio (2018), que regulamenta o estatuto canônico dos sínodos: “As Conferências Episcopais coordenam a atuação das referidas conclusões em seus territórios” (EC Art. 19,2), porque “as culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral (...) se quiser ser observado e aplicado, precisa ser inculturado. Desse modo, observa-se que o processo sinodal não apenas tem seu ponto de partida, mas também o seu ponto de chegada no Povo de Deus” (EC 7). O “impacto”, ou melhor, o resultado, vai aparecer lentamente, segundo o andar do próprio rio Amazonas e as distâncias geográficas que se impregnaram na cultura amazônica. O desenvolvimento acelerado que, em função de lucros dos quais a “querida Amazônia” não participa, exige também acelerar a implementação de decisões pastorais que visam ao protagonismo dos atores sociais e pastorais a partir da sua própria cultura (cf. n. 40).

Seguramente, a bandeira de uma Igreja pós-colonial, inculturada em todas as dimensões sociais, culturais e pastorais, com rosto amazônico, defensora de todos os habitantes da região, uma Igreja missionária, militante e martirial está apontando para um longo caminho, para uma via-sacra com esperança pascal. Precisamos comparar as discussões pós-conciliares com as discussões pós-sinodais para não parar no meio do caminho.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Paulo Suess – Os participantes do Sínodo para a Amazônia, que o papa Francisco convocou com o tema: “Amazônia – Novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”, reclamaram, às vezes, o suposto sensacionalismo da imprensa, que se debruçou mais sobre o tema do celibato e da possibilidade de que homens casados possam celebrar a eucaristia, do que sobre as questões de uma “ecologia integral”. Sem entrar nas razões desse destaque jornalístico, quero apontar para três elementos com certa relevância pastoral para essa discussão.

1. A ausência ordinária da celebração eucarística e de outras celebrações sacramentais, em muitas comunidades, contribuiu para uma mutilação da identidade católica que se baseia na Palavra de Deus e no Sacramento. Essa mutilação sacramental, que é consequência da fragilidade ministerial, é indiretamente responsável pela proliferação do neopentecostalismo na Amazônia que se instalou em muitas comunidades, originalmente, católicas.

2. A Amazônia é uma terra disputada não somente por grupos econômicos multinacionais, mas também por grupos neopentecostais que propagam uma teologia da prosperidade com base em leituras fundamentalistas da Bíblia. O neopentecostalismo, em geral, consegue contextualizar e indigenizar seus ministérios. Sua teologia desarticula a luta pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos. Seu fundamentalismo teológico contribui para a destruição da herança cultural de muitos povos indígenas e assim os enfraquece na defesa dos seus direitos políticos.

3. O Documento final do Sínodo e a Exortação Apostólica “Querida Amazônia” enfatizam a importância da presença eucarística para as comunidades cristãs. A Eucaristia, que é a memória de morte e ressurreição de Jesus Cristo, é a garantia de uma justiça definitiva, de um Juízo final, portanto, de uma esperança além da morte e além da vitória dos assassinos. “No fim, no banquete eterno, não se sentarão à mesa indistintamente os malvados junto com as vítimas, como se nada tivesse acontecido” (Spe salvi, 44). Na Eucaristia celebramos “a revogação do sofrimento passado, a reparação que restabelece o direito” (ibid.). Não temos o direito de privar os povos, em nome de uma lei humana, da celebração dessa esperança decisiva ou reduzi-la para uma mera doutrina catequética.

 

Veja a apresentação da Exortação Apostólica Querida Amazônia, em português:  

 

 

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