Viver a ciência do vestígio errático, mas sobretudo viver. Entrevista especial com Flávia Cêra

Foto: Caco Argemi | CPERS Sindicato

Por: Ricardo Machado | 19 Outubro 2019

Não há possibilidade da política sem o encontro dos corpos, sem a ocupação dos espaços onde a vida acontece. Não por acaso, é próprio de um tipo de política patriarcal a tentativa de estabelecer limites, os mais variados, como tentativa de controle e disciplinamento, que são as bases que dão sustentação ao patriarcado. Enriquecer as formas de vida pode ser o antídoto contra os males da repressão. “O matriarcado poderia ser retomado no avesso da proposição dominante que é a extrema precarização dos modos. Sempre me lembro do Eduardo Viveiros de Castro dizendo da transformação do índio em pobre. O que implica, para além das relações materiais, uma perda de contato com o mundo e com a vida. É por aí”, pondera a psicanalista Flávia Cêra, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

A inspiração antropofágica, nos termos de Oswald de Andrade, se orienta por um desejo de conexão com os corpos e com a vida. “A antropofagia é um modo de manter pulsante o apetite pela vida, uma relação de interesse pela diferença que faz valer a lei do antropófago: ‘só me interessa o que não é meu’. E nesse sentido, acho que o mais interessante da proposta oswaldiana é menos a utopia e muito mais o método que ele nos deixou, a saber, ‘a ciência do vestígio errático’ que retira o patriarcado de um horizonte estável e estanque e também nos tira de uma espera paralisante de um ‘outro mundo possível’”, aponta.

É o movimento que mobiliza a transformação e de onde a democracia se converte em algo, no fundo, real. “Talvez tenhamos que abrir mão de saber ‘como’ fazer, no sentido prescritivo, para ir fazendo, para sair um pouco da imobilidade das estratégias bem definidas, dos horizontes bem marcados, dos ideais muito puros e mergulhar nas contingências. A imaginação política que governa o país tem cheiro de morte: das instituições, da educação, da população. Por isso, aproveitar toda e qualquer manifestação na política que seja capaz de transmitir um desejo que se enlace com a democracia é vital”, complementa.

Flávia Cêra (Foto: Reprodução | Facebook)

Flávia Cêra é psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa sobre Psicanálise e Cultura na Escola Brasileira de Psicanálise - EBP-PR.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os limites das políticas oriundas do patriarcado e como elas se manifestam na atualidade?

Flávia Cêra – Esse é o princípio da sua fundação: estabelecer limites. O patriarcado tenta dar conta do todo com suas leis e ordens, mas sempre existiram seus excessos, o que ele não pode comportar: seja o louco, a mulher, o índio, a criança. O limite do patriarcado, para dar uma “forma”, é o ingovernável dos corpos contra o qual ele não medirá esforços para disciplinar e controlar. Por outro lado, ele também se deparou com os limites do mundo, do planeta. Sua fúria de dominação teima em alcançar pontos irreversíveis para a existência da vida humana e não-humana.

Hoje, me parece, o patriarcado se manifesta, paradoxalmente, contra o fracasso dele mesmo, por isso, talvez, o emprego de tanta violência e ódio a céu aberto. Poderíamos pensar que se trata da tentativa da manutenção de uma ordem que quer prescindir do discurso. Daí toda sorte de absurdos naturais, biológicos, religiosos que, regados com uma boa dose de fake news, vêm fazer uma suplência de sentido para tentar fazer coincidir, corpo e organismo, sexo e gênero, e coisas do tipo. Não parece mero acaso, portanto, que o golpe fatal que pretende a política do patriarcado seja o da abolição da política numa vã, mas não menos violenta, tentativa de eliminar os espaços onde a vida acontece, onde se travam as batalhas.

IHU On-Line – Como se caracterizam as políticas da existência de viés patriarcal e a matriarcal? Quem mundos cada uma delas produz?

Flávia Cêra – Não sei se vou responder exatamente essa pergunta, mas ela me levou a outra. Quanto ao mundo patriarcal, como eu disse acima, me parece que ele topou com alguns limites ou que seus limites se romperam. Embora exista a propriedade privada, o Estado etc., as coisas mudaram. Será que podemos pensar, por exemplo, essa generalização do empreendedorismo de si mesmo dentro de uma lógica patriarcal ou teríamos que dar algum outro nome? Ultimamente eu tenho pensado sobre isso lendo Achille Mbembe. Tenho a impressão que a passagem que ele assinala da biopolítica para a necropolítica marca um ponto de virada na lógica patriarcal (para pior, é claro). O que não quer dizer que tenhamos que voltar a ela.

Nesse sentido, o matriarcado poderia ser retomado no avesso da proposição dominante que é a extrema precarização dos modos. Sempre me lembro do Eduardo Viveiros de Castro dizendo da transformação do índio em pobre. O que implica, para além das relações materiais, uma perda de contato com o mundo e com a vida. É por aí. Como fazer de outro jeito? Me parece que o matriarcado de Oswald vem ajudar aí num ponto fundamental, sobretudo, em relação à antropofagia que entende a vida como “devoração pura”. Ou seja, a antropofagia é um modo de manter pulsante o apetite pela vida, uma relação de interesse pela diferença que faz valer a lei do antropófago: “só me interessa o que não é meu”. E nesse sentido, acho que o mais interessante da proposta oswaldiana é menos a utopia e muito mais o método que ele nos deixou, a saber, “a ciência do vestígio errático” que retira o patriarcado de um horizonte estável e estanque e também nos tira de uma espera paralisante de um “outro mundo possível”. Cabe a nós encontrarmos esses vestígios, que são também, ao modo de Clarice , os “sopros de vida”, fazer alguma coisa com eles, abrir algumas brechas porque o ar está irrespirável.

IHU On-Line – De que forma Oswald de Andrade se coloca em oposição a Freud e sua psicanálise no Manifesto Antropófago?

Flávia Cêra – Oswald leu, muito cedo (o manifesto é de 1924, mas antes ele já falava de Freud), o fracasso da centralidade do pai na teoria freudiana e fez uma crítica tão interessante quanto inteligente apontando para o que ficava fora dessa lógica. E, ao mesmo tempo, bebeu muito dessa fonte. Mas ainda penso que é mais interessante, senão urgente, ler Oswald com Freud em vez de Oswald contra Freud (ou, pior ainda, Freud contra Oswald).

IHU On-Line – Os mal-estares moderno, nos termos de Freud, e pós-moderno, nos termos de Bauman, possuem raízes psicanalíticas que se convertem em dilemas sobre nossas formas de vida. Diante de tal contexto, como irrigar nossa imaginação política?

Flávia Cêra – São dois regimes distintos: o primeiro proíbe de fazer, o segundo manda fazer. É uma mudança que incide nas modalidades discursivas que daria para situar em Lacan entre o discurso do mestre e o discurso capitalista. Este último, na verdade, é um falso discurso porque não faz laço ou porque não serve de borda para o gozo, mas, ao contrário, manda gozar. Bem, isso somado ao ódio inflamado que é suscitado por toda parte só pode dar muito errado como política porque rompe com qualquer pacto de civilidade. Como irrigar a imaginação política? Difícil saber de antemão. Talvez tenhamos que abrir mão de saber “como” fazer, no sentido prescritivo, para ir fazendo, para sair um pouco da imobilidade das estratégias bem definidas, dos horizontes bem marcados, dos ideais muito puros e mergulhar nas contingências. A imaginação política que governa o país tem cheiro de morte: das instituições, da educação, da população. Por isso, aproveitar toda e qualquer manifestação na política que seja capaz de transmitir um desejo que se enlace com a democracia é vital.

IHU On-Line – Como você vê o papel das mulheres na reinvenção política do Brasil?

Flávia Cêra – Como múltiplo, vivo e corajoso. Acho que o movimento que criou o #ELENÃO passa por isso que eu falava acima: de não recuar diante do pior, mas colocando em cena o desejo de democracia. Pudemos ver como mulheres desejantes desconcertam o coro dos contentes. Por isso, a presença cada vez maior das mulheres na política, seja ela institucional ou não, em um país como o Brasil é, ela mesma, uma pergunta sobre o seu papel. E quanto mais aberto à diferença são os movimentos que se reúnem em torno das pautas das mulheres, mais interessante eles se tornam porque mostram que os direitos reprodutivos, o feminicídio, o racismo etc., não são “problemas” das mulheres ou “questões” de gênero, mas sintomas de uma sociedade, de como ela se estrutura e não cessa de se reproduzir sobre um sexismo violento que já não pode mais caber.

IHU On-Line – Se estamos (e parece que estamos) diante de um cenário precário de imaginação política, como os erros, “a contribuição milionária de todos os erros”, dirá Oswald no Manifesto Poesia Pau-Brasil, podem nos inspirar de reinvenção política?

Flávia Cêra – Vou retomar o contexto da frase de Oswald: ele estava se referindo ao uso da língua. E é, sem dúvida, uma das frases mais bonitas da língua portuguesa. Porque o campo democrático tem a ver com isso, uma batalha pelos usos da língua, seu jogo se dá nas tensões da língua. Ou ao menos é o que se espera dele. Uma das coisas mais espantosas desse momento é, para usar o termo da moda, a corrupção da palavra, quando não a supressão da mesma. A reinvenção da política precisa, necessariamente, passar por uma reinvenção do discurso sobre a democracia incluindo aí a “contribuição milionária de todos os erros”.

IHU On-Line – Como a arte pode nos inspirar a pensar novos caminhos políticos e novas formas de vida, enfim, outras ontologias?

Flávia Cêra – Tem uma frase do Hélio Oiticica que eu gosto muito: a arte não é a produção infinita do objeto, é a criação de uma possibilidade de vida. A arte é um dos instrumentos essenciais para nosso tempo, sempre é, mas nesse, especialmente, ela figura como uma máquina de guerra. E é nesse sentido que ela tem muito a ver com a psicanálise: tanto uma quanto a outra não são discursos de poder. No entanto, questionam a língua do poder e, assim, inventam a vida, inventam línguas, se enlaçam com o mundo e são, fundamentalmente, subversivas.

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Em maio deste ano Flávia Cêra esteve no Instituto Humanitas Unidinos - IHU. Na ocasião a professora proferiu a conferência O matriarcado de pindorama. O papel das mulheres na reinvenção política do Brasil, atividade que integra o Ciclo Ontologias Anarquistas. Assista à palestra no vídeo a seguir.

 

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