China ascende nas áreas econômica e militar, mas não projeta sua cultura pelo mundo. Entrevista especial com Marcos Reis

Foto: Divulgação

Por: Patricia Fachin e Wagner Fernandes de Azevedo | 03 Outubro 2019

A ascensão da China na geopolítica mundial nos últimos anos é consequência de um “planejamento estratégico do Partido Comunista Chinês - PCC”, iniciado no final dos anos 1970. Há 40 anos, o líder supremo da República Popular da China entre 1978 e 1992, Deng Xiaoping, criou um programa de reformas em setores estratégicos, como na indústria, na agricultura, nas forças armadas e na área de ciência e tecnologia, e implantou as “Zonas Econômicas Especiais - ZEE, verdadeiras plataformas de exportação, o que resultou na exploração de suas inigualáveis vantagens comparativas dentro da ordem econômica capitalista global”, explica Marcos Reis, professor de Relações Internacionais da Unisinos, à IHU On-Line. Hoje, pontua, a China se transformou no “único país capaz de rivalizar com os EUA e, ao que tudo indica, irá ultrapassá-lo em poderio e influência”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Reis diz que o objetivo do PCC é fazer da China uma nação hegemônica global. “Esse macro-objetivo estratégico está umbilicalmente relacionado, por exemplo, com o projeto da Nova Rota da Seda, com o seu programa de reaparelhamento e modernização militar, sua política de estabelecer relações privilegiadas com mercados produtores de commodities como a África e a América do Sul, tornar seus parceiros comerciais cada vez mais dependentes dos investimentos e produtos chineses, garantir e controlar suas rotas marítimas comerciais, estabelecer e aprofundar relações econômico-comerciais e financeiras em seu entorno regional dentro do marco ‘ganha-ganha’”, esclarece.

De acordo com o pesquisador, também faz parte do projeto chinês intensificar os investimentos em aparato militar para ultrapassar seu único concorrente, os EUA. “Os vultosos investimentos de defesa chineses estão atrelados ao objetivo estratégico de tornar o Exército Popular de Libertação - EPL uma poderosa máquina de guerra capaz de apoiar e garantir a liderança chinesa nos níveis global e regional”, informa. Segundo Reis, “a Força Aérea chinesa é a primeira na região e a terceira maior do mundo e conta com cerca de 2.500 aeronaves multiuso e mais de 1.700 aeronaves caças diversos, sendo que está desenvolvendo caças de quinta geração com aviônica e tecnologia de ponta. O desenvolvimento de drones capazes de operar a grandes distâncias é uma marca do poder aeroespacial chinês, assim como as complexas missões espaciais”. Além disso, menciona, “a China dá uma grande prioridade ao ciberespaço e está aprimorando suas capacidades militares nesse ambiente operacional”.

Apesar das significativas mudanças no país nas últimas décadas, Reis salienta que um dos maiores desafios da China está no âmbito cultural, porque os chineses têm dificuldades em projetar sua cultura para outros países. “A projeção dos valores e da cultura ocidental no mundo foi tão forte, tão profunda e está tão arraigada que esse fator é um grande óbice para as ambições chinesas”, afirma.

Marcos Reis (Foto: Arquivo Pessoal)

Marcos Aurélio Barbosa dos Reis é graduado em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras - Aman e em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidade de Caxias do Sul - UCS, mestre em Operações Militares pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais - EsAO e em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense - UFF, e doutor em Ciências Militares, Notório Saber, pelo Exército Brasileiro, e em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Atualmente, é professor dos Cursos de Graduação e de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos.

Marcos Reis estará participando do “2º Ciclo de Estudos a China e o mundo. A (re)configuração geopolítica global”, em que ministrará a palestra intitulada “A geopolítica sinocêntrica e a sua dimensão securitária”, no dia 29-10-2019, às 16h, na Unisinos Porto Alegre.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Os pesquisadores da área de Relações Internacionais divergem acerca da compreensão e do significado da ascensão da China na geopolítica internacional. Como o senhor compreende a inserção e o papel da China na geopolítica internacional?

Marcos Reis - A ascensão e a inserção da China na geopolítica mundial é o resultado de anos de planejamento estratégico do Partido Comunista Chinês - PCC, iniciado com a firme e resoluta liderança de Deng Xiaoping, em 1978, quando da implantação de seu programa de reforma e abertura, aliado às quatro modernizações (indústria, agricultura, forças armadas e ciência e tecnologia), bem como à implantação das Zonas Econômicas Especiais - ZEE, verdadeiras plataformas de exportação, o que resultou na exploração de suas inigualáveis vantagens comparativas dentro da ordem econômica capitalista global. Sua gigantesca população – configurando um fantástico mercado consumidor, a mão de obra barata e a centralização política nas decisões estratégicas, tomadas pelo PCC, foram fundamentais nesse processo exitoso.

IHU On-Line - Que elementos determinam a força e a ascensão da China na geopolítica internacional e como isso repercute na geopolítica sinocêntrica?

Marcos Reis - A China, em cerca de três décadas, se tornou a locomotiva do crescimento global. É hoje a maior consumidora de commodities, é a segunda economia, só atrás dos EUA, sendo a primeira em paridade do poder de compra, sua pujança e a sua prosperidade se refletem nos quatro cantos do mundo.

Não há dúvida de que sua força provém da sua meteórica ascensão econômica, financeira e comercial. A China é uma grande investidora estratégica e uma superpotência comercial. Único país capaz de rivalizar com os EUA e ao que tudo indica irá ultrapassá-lo em poderio e influência.

A geopolítica sinocêntrica resume-se em todos os esforços do PCC em tornar a China uma nação hegemônica global, para tanto o primeiro passo é atingir a hegemonia regional e depois a global.

Esse macro-objetivo estratégico está umbilicalmente relacionado, por exemplo, com o projeto da Nova Rota da Seda, com o seu programa de reaparelhamento e modernização militar, sua política de estabelecer relações privilegiadas com mercados produtores de commodities como a África e a América do Sul, tornar seus parceiros comerciais cada vez mais dependentes dos investimentos e produtos chineses, garantir e controlar suas rotas marítimas comerciais, estabelecer e aprofundar relações econômico-comerciais e financeiras em seu entorno regional dentro do marco “ganha-ganha”, entre outras políticas estabelecidas pelo PCC para que a China atinja o status de potência hegemônica global.

Nova Rota da Seda (Fonte: BrasilNaval.com)

IHU On-Line - No seu livro intitulado “A privatização da guerra no mundo contemporâneo”, o senhor menciona que a terceirização dos serviços militares passou a ser uma tendência depois da Guerra Fria. Como a China trata seus investimentos militares e em que aspectos o tratamento dela se difere do de outros países?

Marcos Reis - A China tem o segundo maior orçamento militar do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Os vultosos investimentos de defesa chineses estão atrelados ao objetivo estratégico de tornar o Exército Popular de Libertação - EPL uma poderosa máquina de guerra capaz de apoiar e garantir a liderança chinesa nos níveis global e regional.

O PCC sabe que a China somente se converterá numa superpotência global e regional se tiver forças armadas à altura da sua estatura político-estratégica; para tanto, ele tem empreendido um ambicioso plano de modernização militar. E isso é o seu diferencial, ou seja, converter o EPL no maior e mais eficiente instrumento de defesa do mundo.

Cabe ressaltar que os investimentos chineses na área da defesa crescem cerca de 10% ao ano, demonstrando a grande prioridade dada pelo PCC. Como exemplo, pode-se citar seu majestoso programa naval de construção de porta-aviões e porta-helicópteros, sendo que tais investimentos já se fazem sentir nas ambições de Pequim, no Mar do sul da China com a presença dessas belonaves garantindo os interesses chineses nessa área.

 Veja mais sobre os investimentos em aparato militar: 

 

IHU On-Line - Hoje a China está entre os países que mais investem em tecnologias digitais e inteligência artificial. Como esse investimento se desdobra para a área militar?

Marcos Reis - A China dá uma grande prioridade ao ciberespaço e está aprimorando suas capacidades militares nesse ambiente operacional. Para tanto, a Força de Apoio Estratégico do EPL é o primeiro passo para desenvolver uma ciberforça com amplas capacidades de atuação. Os poderes aeroespacial, naval e nuclear também são fartamente aquinhoados e priorizados.

A Força Aérea chinesa é a primeira na região e a terceira maior do mundo e conta com cerca de 2.500 aeronaves multiuso e mais de 1.700 aeronaves caças diversos, sendo que está desenvolvendo caças de quinta geração com aviônica e tecnologia de ponta. O desenvolvimento de drones capazes de operar a grandes distâncias é uma marca do poder aeroespacial chinês, assim como as complexas missões espaciais.

A China tem enfatizado a necessidade de desenvolver um poder naval compatível com as suas aspirações regionais e globais e para tanto tem construído belonaves de alto valor estratégico e tecnológico – como submarinos e porta-aviões – com capacidade de operar não só em função da sua defesa marítima próxima, mas também de atuar a longas distâncias. Cabe destacar que grande parte do bilionário fluxo comercial chinês provém de rotas marítimas que passam pelo Oceano Índico, pelo Mar da China e pelo Oceano Pacífico, logo o PCC entende que desenvolvimento do poder naval é de vital importância para a garantia dos direitos e interesses chineses não apenas na região Indo-Pacífico, mas também em outras regiões do mundo onde a China tenha interesse de atuar.

Quanto ao poder nuclear, a China tem uma Força de Mísseis balísticos intercontinentais, a qual opera com armamento nuclear e convencional, tem mísseis nucleares com alcance de cerca de 13.000 quilômetros, o que por si só já demonstra toda sua força e capacidade tecnológica.

IHU On-Line - A China tem parcerias para fortalecer seu aparato militar?

Marcos Reis - Sim, a principal parceria é com a Rússia, sendo que ambos fazem exercícios militares conjuntos e a Rússia inclusive vende material de defesa para a China, demonstrando assim o alto grau de cooperação existente entre os dois países. Como exemplo, cito os exercícios navais conjuntos sino-russos realizados no Mar do Japão. Essa parceria na área de defesa se estende também à cooperação estratégica. Cabendo lembrar que o inimigo comum dos dois são os EUA.

IHU On-Line - Quais são as diferenças tecnológicas, de investimento e de potência do aparato militar chinês em comparação com o americano?

Marcos Reis - O aparato militar norte-americano ainda é superior ao chinês, mas isso vem diminuindo paulatinamente. Os EUA dividem o mundo em comandos militares, têm o maior orçamento (cerca de três vezes o chinês), têm bases em todos os continentes, e são a única superpotência com capacidade militar de articulação global, ou seja, deslocam tropa, armamento e equipamento para qualquer parte do mundo em condições inigualáveis, sua indústria de defesa é muito sofisticada e seus armamentos, equipamentos e pessoal foram testados em recentes conflitos armados mundo afora, o que não ocorre com a China. Na área de defesa, a China ainda tem um longo caminho a percorrer, para superar os EUA, em que pese todos os esforços empreendidos pelo PCC nessa direção.

IHU On-Line - Há uma especulação acerca de uma possível guerra entre China e EUA. Graham T. Allison, no livro “Destined for War: Can America and China Escape Thucydides’s Trap?”, afirma que pode haver uma guerra por conta da ascensão chinesa e da decadência norte-americana. O senhor concorda com esse tipo de análise? Quais as evidências que corroboram ou não essa tese?

Marcos Reis - Há várias formas de se abordar a questão da “Armadilha de Tucídides” - que trata da ascensão de uma potência em detrimento de outra infletindo na fatalidade da guerra entre ambas.

Como acadêmico, eu diria que se considerarmos a guerra comercial, a guerra cibernética e a guerra do conhecimento, os EUA e a China já estão em guerra faz muito tempo, ou seja, aí a trama se confirma. Por outro lado, embora os EUA e a China sejam os dois maiores investidores na área de defesa no mundo, seus estrategistas não desejam o conflito por terem ciência das consequências catastróficas para ambos. No curto e médio prazo, não há qualquer intenção de ambos em entrar num conflito armado, ou seja, a possibilidade de concretização dessa tese é muito baixa.

A estratégia do PCC é de ascensão pacífica, rumo às hegemonias regional e global, e não por meio de um conflito militar com os EUA, pois a ordem econômica capitalista é muito favorável à China. O PCC sabe que o tempo e as vantagens comparativas da China jogam a seu favor. Enquanto os EUA perdem poder e influência, paradoxalmente nessa ordem econômica capitalista, a China, inversamente, comandada pelo PCC, se empodera a passos largos.

Cabe ressaltar que os dois países têm economias interdependentes e esse fator é crucial para se opor a um conflito armado. Além disso, a China é o maior credor dos EUA, com trilhões de títulos norte-americanos em seu poder, assim a ocorrência da “Armadilha de Tucídides” torna-se pouco provável.

Veja mais sobre a Armadilha de Tucídides: 

 

IHU On-Line - A China tem como projeto implantar uma série de rotas comerciais que atravessam o mundo todo. O país tem capacidade ou poder militar, econômico ou cultural de manter influência sobre territórios que historicamente estiveram alinhados com o Ocidente?

Marcos Reis - Há uma tese geopolítica que defende que quem controlar a Eurásia (também chamada de Heartland ou coração do mundo) controlará a Ilha do Mundo (constituída por Europa, Ásia e África) e quem controlar a Ilha do Mundo controlará o Mundo.

A “Nova Rota da Seda” – projeto macroestratégico chinês que visa a implantação de uma gigantesca rede de comércio e superinfraestrutura entre a China, a Eurásia, a Europa e a África – atesta a ambição e o poder político e econômico-financeiro chinês em se tornar a nação hegemônica global. Sua concretização marcaria o início do que chamamos de “Nova Ordem Sinocêntrica Global”, tendo a China como o novo centro político, econômico-financeiro e comercial do mundo.

Em outras palavras, com a Nova Rota da Seda em funcionamento como planejado pelos chineses, a visão teórica geopolítica de controle do mundo pela Eurásia estaria se confirmando, mas isso só o tempo dirá. Por outro lado, como disse anteriormente, o primeiro passo para se tornar “Hegemon” é obter hegemonia regional; sem ela não é possível obter a hegemonia global.

Outra questão fundamental é a projeção cultural. Em que pese todos os seus esforços, a China encontra muita dificuldade em projetar sua cultura pelo mundo. A projeção dos valores e da cultura ocidental no mundo foi tão forte, tão profunda e está tão arraigada que esse fator é um grande óbice para as ambições chinesas.

Ao fim e ao cabo, pode-se dizer que a China é a “Dona do Futuro” e que o PCC tem pleno conhecimento de todas essas variáveis, colocando todo seu foco no objetivo estratégico de materializar essa futura ordem sinocêntrica, a qual, ao que tudo indica, se concretizará ainda no século XXI.

 

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