Apoio evangélico a Bolsonaro é marcado por uma grande volatilidade. Entrevista especial com Christina Vital da Cunha

Foto: Fernando Frazão | Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 27 Setembro 2019

Estabelecer uma correlação direta entre a eleição de Bolsonaro e o voto evangélico requer “responsabilidade para não cairmos em uma cilada: ou empoderarmos muito os evangélicos – o que só é bom para líderes religiosos com interesses patrimoniais; ou localizarmos neles o ‘mal’ a ser combatido”, adverte a socióloga Christina Vital da Cunha à IHU On-Line.

Na avaliação da pesquisadora, Bolsonaro foi eleito ao mobilizar de forma eficaz a “retórica da perda”, mobilizando “os sentimentos de ameaça dispersos na população” e se apresentando como aquele que iria “promover o resgate” e “o retorno de algo que tinha sido perdido”. A retórica da perda, explica, é “uma tática discursiva articulada por diferentes lideranças sociais e políticas (dentre elas, religiosas) baseada em um imperativo: o retorno da ordem, da previsibilidade, da segurança, da unidade”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Christina comenta as compatibilidades e incompatibilidades entre líderes evangélicos e o governo. Apesar do apoio de Silas Malafaia e Edir Macedo ao presidente, “as incompatibilidades emergem”. “A IURD é muito interessada nesta afinação de Bolsonaro com Israel, mas, claro, não precisa do presidente para aumentar sua proximidade do país que emerge cada vez mais como mítico em suas narrativas e estratégias político-religiosas. Então Silas Malafaia recebeu Bolsonaro em seu púlpito para agradecer pela vitória. Mas, posteriormente, veio a criticá-lo por sua relação e defesa acrítica dos filhos. Na Frente Parlamentar Evangélica também sofreu contestação por parte de alguns integrantes quanto ao encaminhamento de sua agenda de campanha. Por exemplo, a questão da ampliação do uso de armas de fogo no Brasil”, lembra. Christina menciona ainda que a maior parte daqueles que apoiaram Bolsonaro na campanha “se mantém por inúmeras razões ao seu lado e outros tantos se afastam e situacionalmente mostram concordância” e que “uma grande volatilidade marca este apoio”.

A socióloga assegura que entre os eleitores evangélicos também aumentaram os índices de reprovação ao governo, porque eles esperavam recuperar a melhoria de vida adquirida entre 2003 e 2014. “O discurso de campanha fazia crer que tudo se resolveria em um passe de mágica. Isso não aconteceu e as pessoas começaram a observar comportamentos contraditórios que as indignam”.

Christina Vital da Cunha (Foto: João Flores | IHU)

Christina Vital da Cunha é professora do Programa de Pós-graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense – PPCULT/UFF, também PPG Sociologia e no Departamento de Sociologia da mesma universidade. É doutora em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – PPCIS/UERJ e mestra em Antropologia e Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IFCS/UFRJ. Integra a equipe de pesquisadores da Rede de Pesquisadores Luso-Böll Brasileiros de Artes e Intervenções Urbanas, coordenada por Glória Diógenes (UFC) e Ricardo Campos (Universidade Nova de Lisboa) e o grupo Religião, arte, materialidade, espaço público: grupo de antropologia, coordenado por Emerson Giumbelli (PPGAS-UFRGS). É autora dos livros Religião e Conflito (Ed. Prismas, 2016), em parceria com Melvina Araújo; Oração de Traficante: uma etnografia (Ed. Garamond, 2015); Religião e Política: uma análise da participação de parlamentares evangélicos sobre o direito de mulheres e de LGBTs no Brasil (Fundação Heinrich Böll: Instituto de Estudos da Religião, 2012), em parceria com Paulo Victor Leites Lopes; e Religião e Política: medos sociais, extremismo religioso e as eleições 2014 (Fundação Heinrich Böll: Instituto de Estudos da Religião, 2017), em conjunto com Paulo Victor Leite Lopes e Janayna Lui. É colaboradora ad hoc do Instituto de Estudos da Religião – ISER, desde 2002.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Numa entrevista que nos concedeu em 2017, a senhora disse que o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, não tinha sido eleito por ser evangélico ou por ter apoio dos evangélicos, mas por conta das alianças políticas que fez e pelo discurso que contemplava anseios sociais. No caso da eleição de Bolsonaro, aconteceu o mesmo fenômeno ou o voto evangélico foi determinante para a eleição do presidente?

Christina Vital da Cunha – Os evangélicos não foram aqueles a viabilizar a vitória de Bolsonaro. A despeito do que a retorsão das estatísticas possa nos sugerir, mais católicos do que evangélicos votaram em Bolsonaro para presidente. Mais católicos estão afinados com as propostas que Bolsonaro fez durante as eleições, conforme podemos observar em pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha e que publicamos em nosso livro de 2017. Houve uma coincidência na diferença numérica de votos entre Bolsonaro e Haddad e o número de votos de evangélicos em Bolsonaro. Em termos proporcionais, os evangélicos estavam majoritariamente apoiando a candidatura dele em detrimento de outros grupos religiosos que estavam mais divididos, isso é verdade. Mas eles não foram responsáveis por esta vitória. Precisamos ter responsabilidade ao falar disso para não cairmos em uma cilada: ou empoderarmos muito os evangélicos – o que só é bom para líderes religiosos com interesses patrimoniais; ou localizarmos neles o “mal” a ser combatido.

Uma conjugação de fatores muito complexa produziu a vitória de Bolsonaro: o uso das redes sociais com emprego de profissionais que difundiam massivamente informações sobre o candidato (verídicas ou não); o descrédito com a política e a colagem dele como “não político” ou como representante de uma “nova política” – mesmo ele ocupando cargos desde vereador a deputado federal há quase três décadas direto - ou seja, desde que foi exonerado das forças armadas, caiu para a política e de lá não saiu sem ter conseguido aprovar nenhum projeto de lei que beneficiasse nem militares e nem qualquer segmento da população brasileira; a antipatia generalizada no país e no mundo em relação às elites liberais ilustradas – ele conseguiu se apresentar como popular a partir de uma forte ação de marketing político porque não há como dizer que ele é um popular, dado que reside em uma casa em condomínio de luxo na Barra da Tijuca, de frente para a praia e está há anos na política desfrutando de todos os benefícios das elites mais criticadas no país; a explosão da violência no campo e nas cidades. Isso produziu um sentimento muito generalizado de insegurança patrimonial e física.

Bolsonaro apresentava um discurso que a população se acostumou a avaliar como “enérgico” no combate ao crime, ou seja, um discurso de combate ao crime com ações ostensivas e de uso extremo da força. A percepção dele como um messias a garantir o retorno de uma segurança perdida foi importantíssima. Minha reflexão fica mais acentuada em torno disto que estou chamando de uma retórica da perda que foi mobilizada por ele de modo muito eficaz. Ou seja, Bolsonaro e outros candidatos que tiveram sucesso eleitoral mobilizaram os sentimentos de ameaça dispersos na população para se apresentarem como aqueles em condição de promover o resgate, a retomada, o retorno de algo que tinha sido perdido.

A retórica da perda seria uma tática discursiva articulada por diferentes lideranças sociais e políticas (dentre elas, religiosas) baseada em um imperativo: o retorno da ordem, da previsibilidade, da segurança, da unidade. Ou seja, diante do sentimento de insegurança, de ameaça em termos patrimoniais, físicos, financeiros e morais, articulou-se um discurso que produzia uma sensação de segurança, uma esperança de retorno ao passado (ainda que idealizado) do pleno emprego, das definições de papéis entre homens e mulheres – base da família e de toda a vida social tal como “existia”, da garantia de ir e vir em segurança. A religião operou como uma rede institucional de apoio. Mas este sentimento de ameaça e o desejo de solução imediata por uma via “enérgica” foi partilhado por um contingente muito maior de pessoas sem uma orientação necessária de qualquer institucionalidade.

Em um quesito muito específico a base religiosa foi importante: na agenda de defesa de um padrão de família. Isso tomou a atenção dos cristãos no Brasil. Mas somente isso não seguraria o voto nele. Somado a tudo o que já disse, uma estratégia muito importante articulada por Bolsonaro foi justamente jogar com duas identidades religiosas majoritárias no Brasil: a católica e a evangélica. Ou seja, ele se apresentava como católico, mas tinha nas instituições evangélicas uma base de apoio para a qual acenava frequentemente. Ele é o ADE (Aliados dos Evangélicos) mor. Venho trabalhando esta noção em alguns artigos: a de que Bolsonaro e outros aproveitam bem esta relação tornando-se ADEs situacionalmente com vistas ao alcance e manutenção do poder. Ou seja, ser ADE conformou uma importante estratégia de campanha, mas também de manutenção desta base de apoio aquecida e fidelizada (o que não acontece, necessariamente, vide as vaias que recebeu durante seu pronunciamento na Marcha para Jesus em SP e os dados recentes do Instituto Datafolha sobre a perda do apoio de eleitores evangélicos ao governo Bolsonaro, por exemplo).

IHU On-Line – Alguns pesquisadores avaliam que a eleição de Bolsonaro representa a conclusão de um projeto dos evangélicos, que era chegar ao poder Executivo. É isso mesmo ou não?

Christina Vital da Cunha – Em parte sim, mas os evangélicos são muitos. Quais são, dentre eles, os evangélicos ou as instituições evangélicas que saíram fortalecidas neste processo? Certamente não todas, certamente não a maioria. As disputas continuam por representação e poder por parte de algumas denominações. Com esse mecanismo do ADE conseguiram estar de modo mais consistente no Executivo. Tentaram em 2014 com a proposição de um pastor como candidato, a primeira candidatura confessional evangélica à Presidência da República, mas não tiveram êxito. Pelo contrário, Pastor Everaldo terminou em quinto lugar. O “recuo estratégico” veio nas eleições de 2018. Você poderia perguntar: mas e as eleições para prefeitura no Rio? A candidatura de Crivella não é resultado de um projeto evangélico, e sim da Igreja Universal do Reino de Deus - IURD. Não significa uma rede de várias denominações dando suporte ao candidato. Isso não quer dizer que evangélicos não votaram nele. Claro que não. Muitos votaram, mas não por uma ação coordenada forte de um pool de denominações de apoio. 2018 foi o grande laboratório da tática ADE e deve se manter para as próximas eleições presidenciais e para governador. No entanto, não é responsável da parte de nenhum cientista social dizer que assim o será por tal ou qual período. A vida social é absolutamente dinâmica e cheia de reveses.

IHU On-Line – Nos primeiros meses do governo Bolsonaro parece haver uma aproximação com o bispo da Universal, Edir Macedo. De outro lado, Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, criticou a ingerência de Olavo de Carvalho no governo Bolsonaro e as declarações de Eduardo Bolsonaro nos EUA sobre imigrantes ilegais. Como vê a relação e a aproximação de atores evangélicos com o presidente e, de outro lado, as críticas feitas ao governo? O que isso significa?

Christina Vital da Cunha – Uma coisa era a campanha e as promessas. Outra coisa é o curso da gestão. As incompatibilidades emergem: seja no plano ideológico, seja no plano dos interesses econômicos e institucionais. Sendo assim, a IURD é muito interessada nesta afinação de Bolsonaro com Israel, mas, claro, não precisa do presidente para aumentar sua proximidade do país que emerge cada vez mais como mítico em suas narrativas e estratégias político-religiosas. Então Silas Malafaia recebeu Bolsonaro em seu púlpito para agradecer pela vitória. Mas, posteriormente, veio a criticá-lo por sua relação e defesa acrítica dos filhos. Na Frente Parlamentar Evangélica também sofreu contestação por parte de alguns integrantes quanto ao encaminhamento de sua agenda de campanha. Por exemplo, a questão da ampliação do uso de armas de fogo no Brasil. Estes e outros casos que diuturnamente emergem na mídia são importantes para prezarmos que o que se poderia chamar de “bolsonarismo” corresponde a uma fidedignidade muito restrita.

A maior parte daqueles que o apoiaram na campanha se mantém por inúmeras razões ao seu lado e outros tantos se afastam e situacionalmente mostram concordância. Isto é, uma grande volatilidade marca este apoio. É muito circunstancial porque Bolsonaro nem é um líder carismático nem tem grande competência política. Ele era um político de nicho, compunha o subterrâneo da política e foi alçado à tamanha visibilidade. Mas as bases que mantêm isso até aqui são voláteis. Ele não é agregador. Brutalidade não produz agregação política e social sólidas.

IHU On-Line – Os governos petistas também se aproximaram dos evangélicos em seus governos. Em que aspectos as aproximações do governo atual são diferentes ou semelhantes às relações de outros governos?

Christina Vital da Cunha – Os segmentos religiosos são disputados avidamente desde a redemocratização por diferentes partidos. O PT tem uma origem de base cristã católica, mas, atendendo às mudanças em seu interior e no perfil religioso da base social, foi se tornando também cada vez mais próximo dos evangélicos. Na mesma agenda da vinculação que mantinha com os católicos: justiça social, melhoria na condição de vida para as populações mais vulneráveis, emprego, ampliação de políticas públicas, manutenção de benefícios fiscais para igrejas e líderes religiosos, colaboração com a ação social das igrejas.

Mas é bom lembrar que, eleição a eleição, os evangélicos na política foram se tornando cada vez mais exigentes de cargos e visibilidade. Acusavam o PT de aparelhar o Estado, mas buscavam seu quinhão, como apresentamos no livro de 2017: “Religião e Política: medos sociais, extremismo religioso e as eleições 2014”. Muito do que acompanhamos nesta disputa em 2018 pouco tem a ver com religião em seu sentido de meio social de integração e trabalho espiritual. Acompanhamos disputas institucionais por recursos públicos para ação social de denominações, reprodução política de líderes evangélicos que são também empresários, figuras da mídia e das redes que buscam crescimento próprio. Em meio a interesses escusos acompanhamos um ou outro político que vive sua fé evangélica e acredita que tem algo a contribuir para a sociedade a partir de sua atuação no Congresso Nacional e Assembleias Legislativas. A maioria usa situacionalmente a defesa da religião e de uma moral específica com propósitos invisíveis aos olhos de seus eleitores.

Respondendo ainda mais diretamente a sua questão, o segmento evangélico foi se tornando cada vez mais organizado em sua ação política. Neste processo podemos observar o crescimento de um perfil cuja defesa do “trabalho” da própria denominação, de benefícios fiscais e de reprodução social de líderes foi crescendo. E justamente este perfil é o que se aproximou mais (em termos de lideranças e candidaturas) de Bolsonaro. Os evangélicos que continuam na defesa prioritária da justiça social e que incluíram os novos temas da agenda social tais como o combate ao racismo estrutural no Brasil e da liberdade feminina não tiveram (e não têm) proximidade com Bolsonaro e seguiram pulverizados no apoio às candidaturas de esquerda e de centro-esquerda.

IHU On-Line – Qual tem sido o protagonismo e o peso dos evangélicos no governo federal? Que atores evangélicos têm se aproximado do governo e de quais evangélicos o governo tem buscado apoio?

Christina Vital da Cunha – Evangélicos ligados a denominações pentecostais ou às chamadas históricas renovadas são aqueles presentes majoritariamente no primeiro e segundo escalões do governo, segundo pesquisa que realizamos em parceria com o Instituto de Estudos da Religião - ISER e a Fundação Heinrich Böll sobre os primeiros seis meses de governo Bolsonaro. É neste grupo de pentecostais que o governo busca seu apoio. Não por afinidade ideológica ou doutrinária, vale lembrar, mas porque este é o segmento evangélico que reúne o maior número de adeptos no país desde 1990.

IHU On-Line – Qual foi e tem sido o significado do slogan “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos” nas eleições presidenciais de 2018 e nos primeiros meses do governo Bolsonaro? Esse slogan tem apoio entre os evangélicos?

Christina Vital da Cunha – Este slogan tem apelo entre diferentes grupos sociais e pode ser pensado como um código que comunica muitas ideias e remexe muitos sentimentos: nacionalista, protecionista, de união. Projeta um sentimento de unidade e a ideia de unidade atualiza um sentimento público de segurança. Os sentimentos públicos são muito importantes na vida social e em pleitos políticos. Nestas eleições e com o fortalecimento do uso das redes sociais, os sentimentos têm se tornado cada vez mais centrais em diferentes disputas.

IHU On-Line – A reprovação ao governo Bolsonaro subiu nos últimos meses entre os seus eleitores. Alguns dizem que ele tem intensificado o contato com os evangélicos para evitar a queda de popularidade. Entre os evangélicos, avalia que a popularidade do presidente também tem diminuído?

Christina Vital da Cunha – Certamente. Os evangélicos compõem a maior parte da classe C. Esta corresponde a mais de 50% do eleitorado nacional. Esta camada social experimentou uma melhoria de vida grande de 2003 a 2014 com o incremento de variadas políticas públicas e mesmo com o aquecimento econômico vivido no período. Se sentiu em perda e foi a mais atingida pelas ameaças sobre as quais falei no início da entrevista. Muitos trabalhos com etnografias consistentes mostram isso. Este segmento queria recuperar a experiência de dignidade e de esperança. E, claro, para problemas imediatos gostariam de receber respostas imediatas. O discurso de campanha fazia crer que tudo se resolveria em um passe de mágica. Isso não aconteceu e as pessoas começaram a observar comportamentos contraditórios que as indignam. Novamente reforço que a maior parte dos que votaram em Bolsonaro não o fizeram por uma fidelidade ou aliança maior com seus propósitos, mas por acreditarem que ele era um político “novo”, que era “gente como a gente”. Mas a observação da rotina no poder foi dissolvendo certas ilusões e expectativas desta população em relação ao presidente.

IHU On-Line – Quais discursos do presidente têm mais apelo entre os evangélicos e, de outro lado, de quais discursos os evangélicos buscam se afastar?

Christina Vital da Cunha – A maior parte dos evangélicos se aproxima quanto à defesa do retorno de padrões que identificavam como importantes na sociedade e para eles próprios. O ideal romântico de família, por exemplo. Digo que se trata do retorno de algo imaginado porque, segundo dados do IBGE, mais de 50% das famílias no Brasil têm mulheres como chefes com ausência significativa de homens não só como provedores, mas como componentes da família na criação dos filhos. E isso não é recente e afeta, principalmente, a camada social mais baixa em termos de renda e escolaridade. Então, é como se as pessoas acreditassem que ia voltar uma coisa que nunca houve. Mas o marketing político vive disso mesmo: sonhos, expectativas. Os evangélicos se afastam quando da defesa da ampliação do uso de armas de fogo, redução da maior idade penal, castração química de estupradores, por exemplo.

IHU On-Line – Que avaliação faz do governo Crivella no Rio de Janeiro?

Christina Vital da Cunha – O Rio de Janeiro, como já disseram Renata Menezes e Lívia Reis em entrevista aqui no IHU, tinha a missão de ser um laboratório da gestão da IURD. Ou seja, dando certo, seria o maior cartão de visitas da denominação para o exercício futuro de seu plano de poder. Mas a administração de uma cidade, sobretudo complexa como o Rio, não é como cuidar (para usar os termos de campanha) da própria igreja ou da própria casa. A dinâmica política requer composição. Edir Macedo tem grande expertise em produzir visibilidade, de fazer crescer a sua denominação, de ocupar espaços, mas a composição lhe é um limite e estamos vendo isso na gestão de Crivella. Evidentemente ele também assumiu depois de um tempo glorioso de investimentos vultosos na cidade e dos quais Paes recebeu todo o capital político. A sua administração se deu em momento de crise generalizada. Mas nada disso, e nem mesmo a oposição da Globo a sua gestão, explicam o seu fracasso. Ele é o prefeito menos presente da cidade nos últimos anos. Depois das eleições fez uma opção pela comunicação prioritária com as bases religiosas e tomou a administração com nomes de fiéis da sua igreja. Mas não emplacou nada significativo e não tem nenhum poder de comunicação. Diria que sua gestão tem sido um fracasso para a cidade e para os projetos de sua denominação de origem.

IHU On-Line – É possível fazer um balanço de como os evangélicos do Rio de Janeiro reagem ao governo Crivella hoje, quase no final do mandato?

Christina Vital da Cunha – Sabemos que os evangélicos não são extraterrestres. Com isso, sinalizo para o fato de que recebem, junto com a população de um modo geral, os acontecimentos públicos. A questão é que Crivella não conseguiu agradar nenhum segmento: nem embelezou a cidade – o que poderia ser um fator positivo para os moradores das Zonas mais abastadas e do comércio e turismo; não incrementou o atendimento público de saúde e educação – o que agradaria a maior parte da população do município; não fez obras ou melhorias em ruas, calçadas e iluminação. Ou seja, para evangélicos ou não evangélicos, a percepção de sua administração é negativa ou entraria no box de pesquisa “não saberia responder” de tão omissa.

IHU On-Line – No Rio de Janeiro já há movimentações políticas para a eleição municipal do próximo ano? Que articulações estão sendo feitas no momento?

Christina Vital da Cunha – O PSL tem pretensões de ampliar sua base no Rio a partir de composições muito duvidosas como vimos na entrevista de José Cláudio Alves no IHU. Seu poder de composição será limitado. As candidaturas liberais terão espaço, assim como de esquerda religiosa. O novo pleito promete.

IHU On-Line – Alguns dizem que o governador Witzel está se aproximando de setores evangélicos em vista de conseguir apoio para uma eventual candidatura à Presidência da República em 2022. Tem visto aproximações nesse sentido?

Christina Vital da Cunha – Witzel não está se aproximando. Ele já é próximo. Ele foi eleito como católico e aliado dos evangélicos - ADE. A mesma estratégia de Bolsonaro, como disse acima. Witzel se elegeu por um partido dirigido por um pastor e fez campanha fortemente com o público evangélico a partir desta aliança. Então ele segue nesta linha apostando na composição cristã rumo à Presidência da República. Mas o que o exemplo acima de Crivella e mesmo o de Bolsonaro informam é o seguinte, usando a máxima deste universo cristão: o fiel não é nada sem as obras. Então, para a campanha, quando não se é muito conhecido, a estratégia de ADE funciona. Mas as “obras” falarão mais do que mil palavras: as pessoas querem emprego, condições dignas de vida, liberdade de ir e vir. A questão moral só fica tão importante quando aquilo ali não está garantido. Ninguém vai abrir mão de sua vida feliz, de serviços públicos bons, de emprego, por um candidato que sai pregando “retorno da moral”, um novato. A população quer estabilidade e segurança. O resto é jogada de marketing que funciona em meio à crise. O que a população em geral deseja, nós analistas inclusive, é que não se continue investindo em crises e desestrutura como arma de exercício de poder. A bem-aventurança produz um bem geral, mesmo para os poderosos. A cegueira maior é não vislumbrar isso.

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