O horizonte dos desafios contemporâneos foi traçado no mapa de Junho de 2013. Entrevista especial com Bruno Cava

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Por: Ricardo Machado | 23 Junho 2018

Se, de um lado, Junho de 2013 é o mês que não terminou, de outro é o mês que continua não sendo. Essa ambivalência não explica Junho de 2013, mas o situa em um contexto de profunda repressão que levou à restituição das forças contra as quais ele lutava. “A restauração foi bem sucedida em destruir Junho, de maneira que o levante não teve uma consequência direta. Com isso, o levante foi estrangulado várias vezes, por meio de uma orquestração de técnicas: repressão e cooptação, chantagem e concessão”, analisa Bruno Cava em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

No arco do tempo, as Jornadas de Junho encontram a greve dos caminhoneiros. “Junho de 2013 e Maio de 2018 formam duas metades que se complementam. Junho foi a greve da metrópole que parou as principais vias internas das grandes cidades, enquanto Maio foi a greve da logística que interrompeu as vias externas, as rodovias. Somadas, as duas colocam em questão a integralidade das cadeias bioprodutivas que nos constituem, em seu duplo aspecto: na face dura dos corpos que precisam se locomover, se alimentar e sobreviver, e na face virtual dos corpos que trafegam pelas vias informacionais e se relacionam no regime dos signos”, pondera.

Se Junho de 2013 deixou de existir concretamente devido às forças de restauração, sua força vital tem a forma de um espectro a assombrar a institucionalidade de nossa política em ruínas. “A gênese dos desafios de hoje só é inteligível no mapa que Junho traçou, bagunçando no processo as categorias e binarismos prévios. Junho foi kairós e potência e a esquerda não soube se relacionar bem com ele. Resta saber se foi um problema acidental, devido a uma contingência histórica, ou se estruturalmente a esquerda não tem mais poder transformador, perdendo a sua própria razão de ser”, provoca.

Bruno Cava | Foto: João Vitor Santos (IHU)

Bruno Cava é pesquisador associado à rede Universidade Nômade (uninomade.net). Professor de Filosofia, oferece cursos livres em instituições culturais no Rio de Janeiro (Cinemateca do MAM, Casa de Rui Barbosa, Museu da República). É graduado em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, pela qual também é mestre em Filosofia do Direito. Autor de vários livros, em 2018 publicou New Neoliberalism and the Other. Biopower, antropophagy and living money (Lanham: Lexington Books, 2018), com Giuseppe Cocco.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que foi o acontecimento de Junho de 2013?

Bruno Cava – Junho foi o levante da multidão que, no Brasil, distendeu-se no longo arco entre os primeiros atos pela redução do preço da passagem, no começo de junho de 2013, até a greve dos garis em fevereiro de 2014 e os protestos contra a organização da Copa do Mundo (#NãoVaiTerCopa). Seus antecedentes imediatos foram o ciclo de ocupas que se alastrou pelas cidades brasileiras a partir de outubro de 2011, a primavera gaúcha de 2013 e uma série de cenas de dissenso em várias cidades, como Goiânia, Vitória ou Santa Maria. O substrato do levante junhista foi, de um lado, a torrente de indignações devido à saturação das condições de vida urbana, especialmente quanto aos gargalos de mobilidade, moradia, renda e poluição. O acontecimento foi destituinte para os governos em todos os níveis e o próprio modelo representativo ao explicitar, em sua estética de ações diretas, enxame e ativismo autoral, a enorme defasagem entre o horizonte de expectativas propagandeado pelos megaeventos e seus discursos ufanistas de Brasil Maior, e a experiência real das pessoas.

Nesse sentido, Junho de 2013 foi a primeira greve metropolitana do país, se considerarmos o conceito de "metrópole" em seu aspecto delirante e congestivo, como na obra de Rem Koolhaas [1]. Por outro lado, Junho de 2013 foi a emergência de uma nova organização de corpos e uma expressão de conteúdos que inscreveu definitivamente as lutas no país no ciclo global das primaveras árabes (2010-16). Várias práticas desse ciclo, como pesquisado por Paolo Gerbaudo [2] (The Mask and the Flag) [3], se repetiram no Brasil e no mundo: protocolos de autoconvocação, uso essencial das redes sociais aliado à ocupação dos espaços urbanos, ausência de unificação de liderança ou ideologia, rechaço da aparelhamentos partidários ou sindicais, presença de símbolos nacionais.

IHU On-Line – Como passamos de uma multiplicidade de pautas políticas das manifestações de Junho de 2013 (transporte, educação, moradia, meio ambiente) para uma radical polarização (petralhas versus coxinhas)? Que implicações políticas esse tipo de subjetividade produz?

Bruno Cava – Junho não continua sendo. A restauração foi bem sucedida em destruir Junho, de maneira que o levante não teve uma consequência direta. Como nas jornadas de junho de 1848, a partir do segundo semestre de 2013 se organizou informalmente um Partido da Ordem que reuniu a quase totalidade das instituições e forças político-partidárias brasileiras. Com isso, o levante foi estrangulado várias vezes, por meio de uma orquestração de técnicas: repressão e cooptação, chantagem e concessão. O roteiro foi semelhante noutros países, como na Turquia do governo Erdogan [4], como resposta aos protestos de Gezi Park. O ponto do golpe Termidor se deu com o segundo turno eleitoral de 2014, quando uma operação ortopédica enquadrou as indignações numa polarização artificial entre candidatos, ao custo colateral de muitos bilhões desviados dos fundos públicos para as respectivas campanhas. Esse foi o momento de aniquilação subjetiva de Junho, tendo disseminado uma onda de rachas, autofagias, guerras culturais e sarampões identitários. A instauração de um clima político de pânico moral também contribuiu para dissolver as novas composições surgidas em Junho. É a tática do "dividir para conquistar": fragmenta-se a multidão em segmentos insulados e, a seguir, se prega a sua unidade a título de disputa hegemônica contra o Mal da semana (o candidato X, o fascismo, a direita, o imperialismo). Então Junho não existe mais, tendo sido absorvido pelo inferno das conjunturas pós-2014, cuja subjetividade repleta de cargas paranoicas e neuróticas passou a ser guiada pelo medo, o espírito gregário, uma moral de pertencimento e patota.

IHU On-Line – Passados cinco anos, em que as Jornadas de Junho de 2013 mantiveram seu devir criativo e em que foram domesticadas pela política e pela mídia?

Bruno Cava – As várias causas históricas não são suficientes, contudo, para esgotar o seu sentido. Junho produziu um efeito que excede as próprias causas, uma espécie de suplemento móvel que se destacou da trama de causalidades e que passa a assombrar as conjunturas. Por isso que, embora não se possa dizer que o biênio de ocupas nas escolas brasileiras, o movimento anticorrupção de 2015-2016 ou mesmo a greve dos caminhoneiros de 2018 tenham sido causados por Junho, foram lutas de toda maneira afetadas por ele. O próprio impeachment de Dilma não se explica sem os protestos de Junho, ainda que, contrariamente ao que alguns anti-junhistas defendem, não tenha sido causado pelas jornadas.

No ensaio "O 18 de brumário brasileiro" [5], escrevi como o êxito total da Restauração em acabar com Junho o fez continuar subsistindo como um espectro, que continuou nos afetando na forma de sua ausência empírica. O impeachment foi um trabalho dessa força, assim como a tomada do poder pelo empolado sobrinho de Napoleão, na França de 1851. Para parafrasear o que Pablo Ortellado [6] escreveu, a gênese dos desafios de hoje só é inteligível no mapa que Junho traçou, bagunçando no processo as categorias e binarismos prévios. Tentando então alguma precisão conceitual, Junho é quase-causa de acontecimentos posteriores, um afeto e não um fator causador, a "vertigem de Junho" (Alexandre Mendes e Clarissa Naback).

IHU On-Line – De que maneira a greve dos caminhoneiros atualiza Junho de 2013 e que rupturas ela produz (o pedido de intervenção militar)?

Bruno Cava – Junho de 2013 e Maio de 2018 formam duas metades que se complementam. Junho foi a greve da metrópole que parou as principais vias internas das grandes cidades, enquanto Maio foi a greve da logística que interrompeu as vias externas, as rodovias. Somadas, as duas colocam em questão a integralidade das cadeias bioprodutivas que nos constituem, em seu duplo aspecto: na face dura dos corpos que precisam se locomover, se alimentar e sobreviver, e na face virtual dos corpos que trafegam pelas vias informacionais e se relacionam no regime dos signos.

Tanto 2013 quanto 2018 rapidamente contagiaram para além daqueles diretamente envolvidos nos atos, numa velocíssima imitatio afecti, como diria Spinoza [7]. Assim como Junho, o Maio caminhoneiro pode vir a deixar de existir, ser destruído, ter suas lideranças neutralizadas e suas demandas neutralizadas/absorvidas, mas seguirá nos afetando, existindo como fantasma inconjuntural. Ainda é cedo para analisar o slogan da intervenção militar e, ao mesmo tempo, tarde demais. Outro timing provavelmente foi desperdiçado por nossa percepção falha ou quem sabe certa demais. Para não arriscar errar muito, colocaria que exprime mais uma vez a recusa destituinte dos governos e do modelo da representação e, paralelamente, é um grito de indignação que anseia por um conduto direto, não mediado. Claro que esse foi só um slogan entre milhares de outros veiculados pelo movimento que os caminhoneiros produziram em torno de si, segundo uma intuição vital plena que ainda tem muitas repercussões a gerar.

IHU On-Line – Como a esquerda institucional tem compreendido fenômenos políticos que escapam aos modelos tradicionais de política?

Bruno Cava – Junho foi kairós [8] e potência e a esquerda não soube se relacionar bem com ele. Resta saber se foi um problema acidental, devido a uma contingência histórica, ou se estruturalmente a esquerda não tem mais poder transformador, perdendo a sua própria razão de ser, senão como outro enunciado pacificado na paisagem. As únicas forças vermelhas que se amalgamaram às jornadas de junho para viver um mundo desconhecido foram setores jovens ou militantes da oposição de esquerda. Porém, nos anos seguintes, com as guerras culturais e a queda de Dilma [9], o repuxo terminou por arremessar boa parte dessas forças, como num estilingue gravitacional, de volta para o planeta do PT. E o PT preferiu sempre que pôde ficar do lado do poder e não da potência, seja para salvaguardá-lo a todo custo, até 2016, seja para nutrir a obsessão de voltar a ele, de 2017 em diante... como se nada tivesse dado errado. As esquerdas têm muita dificuldade em lidar com a nova realidade da multidão, tendendo a reduzi-la a massas desorganizadas, histéricas e a um passo do fascismo.

Notas:

[1] Remment Lucas ou Rem Koolhaas (1944): é um arquiteto, urbanista e teórico da arquitetura neerlandês. É professor de arquitetura e desenho urbano na Universidade Harvard. (Nota da IHU On-Line).

[2] Paolo Gerbaudo: professor de Cultura e Sociedade Digital, o Departamento de Ciências Humanas Digitais no King's College London. Anteriormente, era docente associado em jornalismo e comunicação, no departamento de mídia da Universidade Middlesex e professor adjunto de sociologia na Universidade Americana do Cairo (AUC). Além de seu trabalho acadêmico, Paolo também atuou como jornalista em áreas que abrangem movimentos sociais, assuntos políticos e questões ambientais, e como um novo artista de mídia que exibe festivais e shows de arte. Ele possui um doutorado em mídia e comunicação da Goldsmiths College. (Nota da IHU On-Line).

[3] Oxford University Press, 2017. (Nota da IHU On-Line).

[4] Recep Tayyip Erdoğan (1954): político turco, presidente da Turquia desde 28 de agosto de 2014, e anteriormente, entre 14 de março de 2003 e 28 de agosto de 2014, primeiro-ministro de seu país. É também o líder do Partido da Justiça e Desenvolvimento, em turco Adalet ve Kalkınma Partisi, normalmente referido como AK Parti, que tem a maioria dos assentos na Grande Assembleia Nacional da Turquia. Teve diversos cargos públicos, entre eles o de prefeito de Istambul, que ocupou de 1994 a 1998. (Nota da IHU On-Line).

[5] O artigo em questão foi publicado nas Notícias do Dia, do sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível aqui. (Nota da IHU On-Line).

[6] Pablo Ortellado: filósofo, com doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP. É professor do curso Gestão de Políticas Públicas e orientador no programa de pós-graduação em Estudos Culturais da mesma universidade. É coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação – Gpopai. (Nota da IHU On-Line).

[7] Baruch Spinoza (ou Espinosa, 1632–1677): filósofo holandês. Sua filosofia é considerada uma resposta ao dualismo da filosofia de Descartes. Foi considerado um dos grandes racionalistas do século 17 dentro da Filosofia Moderna e o fundador do criticismo bíblico moderno. Confira a edição 397 da IHU On-Line, de 6-8-2012, intitulada Baruch Spinoza. Um convite à alegria do pensamento. (Nota da IHU On-Line).

[8] Kairós (em grego καιρός): é uma palavra da língua grega antiga que significa “o momento oportuno”, "certo" ou “supremo”. Na mitologia, Kairós é filho de Chronos (Deus do tempo e das estações). Os gregos antigos possuíam duas palavras para a moderna noção de "tempo": chronos e kairós. Enquanto a primeira era usada no contexto de tempo cronológico, sequencial e linear, ao tempo existencial os gregos denominavam Kairós e acreditavam nele para enfrentar o cruel e tirano Chronos. Enquanto o primeiro é de natureza quantitativa, Kairós possui natureza qualitatitva. Em grego antigo e moderno, kairós (em grego moderno pronuncia-se kerós) também significa "tempo climático", como a palavra weather em inglês. (Nota da IHU On-Line).

[9] Dilma Rousseff (1947): economista e política brasileira, filiada ao Partido dos Trabalhadores – PT, eleita duas vezes presidente do Brasil. Seu primeiro mandato iniciou-se em 2011 e o segundo foi interrompido em 31 de agosto de 2016. Em 12 de maio de 2016, foi afastada de seu cargo durante o processo de impeachment movido contra ela. No dia 31 de agosto, o Senado Federal, por 61 votos favoráveis ao impeachment contra 20, afastou Dilma definitivamente do cargo. O episódio foi amplamente debatido nas Notícias do Dia no sítio do IHU, como, por exemplo, a Entrevista do Dia com Rudá Ricci intitulada Os pacotes do Temer alimentarão a esquerda brasileira e ela voltará ao poder. Durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a chefia do Ministério de Minas e Energia e posteriormente da Casa Civil. (Nota da IHU On-Line).

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