Paradigma do punitivismo coloca o Brasil em terceiro lugar no ranking mundial do encarceramento. Entrevista especial com Juliana Borges

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Por: Ricardo Machado | 06 Fevereiro 2018

O Brasil ocupa o terceiro lugar no mundo em número de pessoas encarceradas, depois de “subir” uma posição no ranking do punitivismo, ultrapassando a Rússia em 2016 e ficando atrás somente da China e dos Estados Unidos, no topo da lista. “Mais de 90% destas pessoas são homens. Ao menos 64% da população prisional é negra, 55% é jovem, por exemplo. Mas o mais preocupante é que, enquanto países como Estados Unidos, país com maior número de pessoas encarceradas, estão mantendo uma linha estável e a China está em curva decrescente de taxas de encarceramento, o Brasil está em curva ascendente”, analisa Juliana Borges, pesquisadora e autora do livro O que é encarceramento em massa? (São Paulo: Editora Letramento, 2018), em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Há vários fatores em jogo quando se trata de discutir a questão do encarceramento massivo no país, dentre eles um sistema jurídico que sempre privilegiou a propriedade privada. “O fenômeno do superencarceramento é como o sistema de justiça criminal, mais do que uma entidade perpassada pelo racismo, é um poder que se constitui no Brasil pela necessidade da garantia da propriedade privada”, pondera Juliana. Não obstante a questão étnico-racial e o corte por renda, que determinam o perfil dos presos no Brasil, nos últimos anos, houve um boom no aprisionamento feminino. “As mulheres têm sido cada vez mais penalizadas pelo sistema prisional em algo relacionado, primeiramente, às vulnerabilidades sociais que, cada vez mais, acometem seus lares”, destaca a entrevistada.

Como se pode prever, não há solução simples para este complexo cenário. Mas Juliana aponta que um caminho mais humano na resolução desses conflitos é a construção de uma “agenda de garantia de direitos. Muitas destas pessoas encontravam-se em vulnerabilidade social e sem alternativas. Não podemos mais responder com prisão a problemas sociais”, complementa.

Juliana Borges | Foto: Justificando

Juliana Borges é feminista negra. Pesquisa na área de Antropologia o que se tem chamado geração tombamento. Estuda Sociologia e Política na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESPSP. É colunista do Blog da Boitempo Editorial e do site Justificando. Foi Secretária Adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo na gestão Haddad no ano de 2013. É articuladora política da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quando você fala de violência, do que exatamente está falando? Como você compreende o conceito de violência e como isso se relaciona com o encarceramento em massa?

Juliana Borges – Violência, de forma muito resumida, já que temos uma bibliografia extensa no campo das Ciências Sociais sobre isso, é uma ação que tem como efeito o ato de violentar o outro ou um determinado grupo social. As violências são variadas e não se consolidam apenas no ato físico, mas também simbólico, epistemológico, conceitual, político, cultural etc. Ao falar do fenômeno do encarceramento em massa, compreendo como uma violência do Estado em relação a um grupo social marcado, notadamente jovem, periférico e negro. Ou seja, uma articulação violenta entre Sistema de Justiça Criminal e ação das Polícias como instituições estatais que atuam de modo a garantir a manutenção das desigualdades baseadas em hierarquias raciais em sociedades que constituíram-se pelo colonialismo, segundo aponta a advogada criminalista e ativista pela Reforma do sistema de Justiça Criminal norte-americano Michelle Alexander [1]. Neste sentido, a ação de criminalização e punição do Estado se volta contra um determinado grupo social. Mas esta violência não se inicia com o encarceramento. Diversas são as violências enfrentadas por este grupo social e seus indivíduos até chegar ao encarceramento e, no caso do Brasil, também à violência física que acarreta em morte, no chamado Genocídio da População Negra. A falta de acesso a direitos básicos e essenciais, causando grave vulnerabilidade social, política e econômica, é também uma violência que, no caso dos que entram em conflito com a lei, tem como consequência a morte simbólica destas pessoas.

IHU On-Line – Você tem dados atuais sobre o número total e o perfil da população carcerária no Brasil? De que forma ela poderia ser descrita em termos estatísticos e sociológicos?

Juliana Borges – A população carcerária no Brasil conseguiu ultrapassar a Rússia em 2016. Somos, hoje, o terceiro país em população carcerária. São mais de 700 mil pessoas presas, segundo dados do Infopen, o sistema de informações do departamento penitenciário, ligado ao Ministério da Justiça. Mais de 90% destas pessoas são homens. Ao menos 64% da população prisional é negra, 55% é jovem, por exemplo. Mas o mais preocupante é que, enquanto países como Estados Unidos, país com maior número de pessoas encarceradas, estão mantendo uma linha estável e a China está em curva decrescente de taxas de encarceramento, o Brasil está em curva ascendente. Ou seja, se mantivermos o ritmo em que estamos, em 2075 uma em cada 10 pessoas estará em situação prisional. No caso das mulheres, entre 2006 e 2016, tivemos um aumento de 567,4%, metade delas têm entre 18 e 29 anos e 67% são negras. Pelo menos 62% estão presas por tráfico ou associação, sendo que 54% das penas são de até oito anos, demonstrando que a maioria delas está presa por pequenos delitos. Muitas são mães e estão desprovidas do convívio com os filhos, sendo que a maioria delas é chefe de família.

A situação é absurda e demonstra como a sociedade brasileira é punitivista. Estamos vendo as prisões como a única saída para a resolução de conflitos. E uma resolução falha porque ela está agravando a situação de (in)segurança tanto do ponto de vista social quanto do Estado.

IHU On-Line – Que processos históricos conduziram à atual conjuntura e ajudam a explicar o encarceramento em massa no Brasil?

Juliana Borges – Nosso país já surge por interesses privados e corporativos. Há um pesquisador, Gabriel Gaspar, que nos lembra algo importante: o Brasil e a Costa do Marfim são os únicos países com nome de commodity. O que isso demonstra para nós? Que já no nascedouro temos um direito que não é exercido para garantir direitos a todos, mas para garantir direitos privados e corporativos, de extração e exploração.

A primeira grande mercadoria do país é o corpo negro escravizado, visto como propriedade. Estas são marcas que vão perpetuar toda a nossa história. O Sistema de Justiça Criminal, desde a primeira Lei Criminal, de 1830, já tem um forte elemento de seletividade e diferenciação na aplicação de penas se a pessoa é negra ou branca, mesmo entre negros libertos naquele período. As prisões são vistas como elemento de controle e tortura e não apenas como espaços de privação de liberdade. Um espaço, como diz Angela Davis [2], no qual as pessoas compreendem que todos os “indesejáveis” sociais devem ser deixados e abandonados. Mas isto nos faz esquecer que as prisões são parte da sociedade e não algo alternativo e fora de nosso meio social. Reproduzir este modelo tem impactos nas comunidades e na sociedade como um todo. Historicamente, diversos foram os processos de criminalização da população negra e pobre no país. Seja passando pela “lei da vadiagem”, que abria o precedente para a criminalização de homens negros recém libertos e que não encontravam ocupação, passando pela criminalização da capoeira, escolas de samba, organização de ordens negras, passando pela criminalização dos terreiros e religiões de matriz africana; seja pela criminalização e repressão pesada contra todas as revoltas populares, e notadamente negras, no país; até, vindo a contemporaneidade, a lei de drogas de 2006 que, ao passo que descriminaliza o usuário, faz com a diferenciação entre quem é usuário e traficante fique nas mãos dos policiais e delegados para efetuar a prisão e flagrante.

Por fim, temos uma polícia que se foca em pequenas apreensões. Em pesquisa do Instituto de Segurança Pública, em 2014, foi demonstrado que a maioria das apreensões no Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, é de pequenas quantidades de drogas. Em 50% das ocorrências, o volume de maconha não passava de 6 gramas. Ou seja, a situação é de urgência e calamidade.

IHU On-Line – De que forma questões ligadas ao racismo estão relacionadas às dinâmicas de superencarceramento?

Juliana Borges – Racismo é uma opressão estrutural e estruturante da sociedade brasileira. O que significa dizer que ela está presente e perpassa, como argamassa, toda a constituição do nosso país. O que alguns ativistas e intelectuais, principalmente mulheres negras, têm formulado sobre o fenômeno do superencarceramento é como o sistema de justiça criminal, mais do que uma entidade perpassada pelo racismo, é um poder que se constitui no Brasil pela necessidade da garantia da propriedade privada. Se pensarmos que a maior e mais valiosa propriedade dos senhores de engenho no país era o corpo negro escravizado, a ligação é direta e incontestável. Diferente do que muitos imaginam, as elites brasileiras se constituíram e tinham suas riquezas relacionadas diretamente à mão de obra escravizada e não à agricultura. Este era o “bem” valioso das elites. E era esse o bem a ser “resguardado” pelo direito e pelo judiciário, primordialmente.

Estas questões de gênese não são desconstruídas e apagadas em um passe de mágica. Aliás, a distinção, o direito à propriedade e a manutenção das desigualdades passam todas pelo Racismo.

Como disse, a nova lei de drogas tem um elemento que acaba sendo determinante nesta matemática. Ao relegar à polícia a diferenciação entre traficante e usuário, e se formos retomar o histórico de uma polícia que mais mata (e mais morre também com o elemento racial presente) e que segue suas abordagens seguindo um “padrão” de suspeito, e ele é negro, fica fácil fazer a conta que leva ao flagrante em maior número para homens, jovens, negros. É uma série de fatores complexos do racismo presentes determinando a tipificação, o tratamento, acompanhamento jurídico, sentença e pena para pessoas em conflito com a lei.

IHU On-Line – O Brasil tem uma população carcerária majoritariamente masculina, mas como entender as questões de gênero nesse universo aparentemente tão heteronormativo?

Juliana Borges – São muitas as redes que vão lançando as mulheres negras no centro deste sistema. Se, primeiro, o genocídio que acometia as mulheres negras passava mais por outros âmbitos do sistema como negação de acesso à saúde, saneamento, políticas de autonomia dos direitos sexuais e reprodutivos, a violência sexual e doméstica, superexploração do trabalho, notadamente o doméstico, estas violências vão, também, se sofisticando e tomando contornos cada vez mais complexos, modificando-se do controle para o extermínio necropolítico. Mudanças e crises sistêmicas econômicas têm impacto direto na vida das mulheres.

O encarceramento feminino tem crescido de modo imenso. É um aumento de mais de 500% em dez anos. E estas mulheres, infelizmente, também respondem a um “padrão” de grupo marcado na sociedade: negras e jovens. Muitas delas são mães, chefes de família. A maioria delas está presa por pequenos delitos, foram presas no momento do flagrante de seus parceiros, e quando estão envolvidas no tráfico, não estão em espaços de direção desta organização. Ou seja, as mulheres têm sido cada vez mais penalizadas pelo sistema prisional em algo relacionado, primeiramente, às vulnerabilidades sociais que, cada vez mais, acometem seus lares. Além disso, há um fator moral nas penalizações, sendo mais duras, envolvendo discursos e forte tom condenatório como se estas mulheres estivessem rompendo com o papel de gênero que a sociedade patriarcal lhes atribui.

IHU On-Line – Diante deste cenário, quais são os principais desafios do Estado?

Juliana Borges – Acho que das principais questões que envolvem esta temática complexa, estão melhorias no sistema prisional, que não tem médicos e condições de salubridade para vivência digna dos presos. Como disse, as prisões são espaços de privação de liberdade, mas o que temos hoje é um cenário de tortura e descaso. Outro ponto é uma agenda de garantia de direitos. Muitas destas pessoas encontravam-se em vulnerabilidade social e sem alternativas. Não podemos mais responder com prisão a problemas sociais. Não podemos mais responder com prisão a questões psiquiátricas, de dependência química, por exemplo, e que ainda se perpetuam em nossa lógica prisional.

Outra questão é uma agenda pelo desencarceramento. As audiências de custódia foram e são um elemento importante, mas continuam não dando conta dos desafios do sistema prisional. Cerca de 40% das pessoas presas hoje são provisórias. Quando falamos em déficit de vagas, os números são próximos aos dados relativos aos presos provisórios. Há tanto esta necessidade de manter estas pessoas presas sem julgamento? E, na perspectiva mais de horizonte utópico e estratégico, é uma agenda que nos leve a nos questionar se precisamos, de fato, de prisões, que construamos processos mais restaurativos e reparadores para a solução de conflitos sociais.

Notas:

[1] Michelle Alexander (1967): é escritora, ativista de direitos civis nos Estados Unidos. Tornou-se mais conhecida por seu livro The New Jim Crow: Mass Incarceration in the Age of Colorblindness (New York: New Press, 2010). (Nota da IHU On-Line)

[2] Angela Davis (1944): é uma professora e filósofa socialista estadunidense que alcançou notoriedade mundial na década de 1970 como integrante do Partido Comunista dos Estados Unidos, dos Panteras Negras, por sua militância pelos direitos das mulheres e contra a discriminação social e racial nos Estados Unidos e por ser personagem de um dos mais polêmicos e famosos julgamentos criminais da recente história dos EUA. Na década de 1960, Angela tornou-se militante do partido e participante ativa dos movimentos negros e feministas que sacudiam a sociedade norte-americana da época, primeiro como filiada da SNCC de Stokely Carmichael e depois de movimentos e organizações políticas como o Black Power e os Panteras Negras. (Nota da IHU On-Line)

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