“Privilégio de branco do Primeiro Mundo”: jornalista indiana critica os antivacinas americanos, enquanto os pobres do mundo não têm acesso

Foto: UN Women/Jacob Crawfurd

13 Agosto 2021

 

A estatística oficial de mortes pela covid-19 na Índia está registrada entre 429 mil, mas muitos pesquisadores acreditam que é pelo menos cinco vezes maior. A Índia viveu uma onda devastadora de infecções em Abril e Maio, e menos de 10% da população foi totalmente vacinada. “Quando nós vemos o que está acontecendo nos EUA... é chocante que pessoas que tenham acesso às vacinas estejam escolhendo não ser vacinados”, disse Barkha Dutt, uma premiada jornalista indiana e escritora. “É contra a ciência. É autoindulgente. Isso é muito privilégio de branco do Primeiro Mundo”.

A entrevista é de Amy Goodman Nermeen Shaikh, publicada por Democracy Now, 12-08-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis a entrevista.

 

Amy Goodman – A Organização Mundial da Saúde está alertando que mais de 100 milhões de pessoas serão infectadas pela covid-19 no próximo ano se a variante delta seguir se espalhando rapidamente, segundo o diretor-geral Tedros Adhanom Ghebreyesus falou na quarta-feira passada. Vejamos:

Tedros Adhanom Ghebreyesus – (em conferência de imprensa) Os números de casos e mortes continuam aumentando, na última semana, o caso de número 200 milhões foi registrado pela OMS, justamente seis meses depois do mundo ultrapassar os 100 milhões de casos. E nós sabemos que o número real é muito maior. Como eu disse recentemente, para chegarmos a 300 milhões e quão rápido chegaremos lá, dependerá de todos nós. Na atual trajetória, nós poderíamos ultrapassar 300 milhões de casos registrados no início do próximo ano.

 

Amy Goodman – Hoje nós estamos olhando para a pandemia em três dos países mais atingidos: os Estados Unidos, Indonésia e Índia. Ao longo das últimas quatro semanas, os três países contabilizaram mais de ¼ dos casos de covid registrados no mundo.

Nós começamos pela Índia, onde a estatística oficial de mortes por covid-19 registra em torno de 429 mil, mas muitos pesquisadores acreditam que o número é pelo menos cinco vezes maior. A Índia sofreu uma devastadora onda de infecções em Abril e Maio.

Agora, nós vamos à Nova Délhi, onde se juntará a nós Barkha Dutt. Ela é uma premiada jornalista indiana e escritora, autora de “This Unquiet Land: Stories from India’s fault lines”. Ela é colunista de opinião no Hindustan Times e The Washington Post. Seu último artigo para o WaPo é intitulado “As as Indian, I am enraged by America’s refusal to set vaccine mandates”. Seu pai morreu de covid-19 em abril.

Primeiramente, Barkha, nossas condolências pela morte do seu pai. Podemos falar sobre o que ocorreu ao seu pai – de fato, ele tinha tomado uma dose da vacina de duas doses –, certo? E como você se sente pelo nível de resistência e hesitação sobre as vacinas nos Estados Unidos, como você conecta esses dois fatos?

 

Barkha Dutt – Obrigado, Amy.

Sim, meu pai tinha tomado a primeira dose e tinha a segunda agendada para a semana em que testou positivo, e depois precisou ser hospitalizado. Penso que, como eu, muitas filhas na Índia hoje são assombradas pelo “e se”. Sabe, e se eu tivesse conseguido dar-lhe uma vacina a tempo? A verdade é que ele tomou a vacina assim que pôde. A verdade também é que enquanto estou furiosa, como mencionei no Post, com o que está acontecendo nos Estados Unidos, também fiquei um tanto furiosa com meu próprio governo por não ter previsto a ferocidade da segunda onda e não ter agido com rapidez suficiente para solicitar, adquirir e fabricar mais vacinas.

Dito isso, você sabe, quando observamos o que está acontecendo nos EUA a partir de, digamos, Délhi, é surpreendente que as pessoas que têm acesso a vacinas estejam optando por não as aplicarem. E, você sabe, é anticiência. É autoindulgente. É um privilégio de branco do Primeiro Mundo, porque grandes partes do mundo não têm acesso às vacinas. E a crise em meu país é que não temos vacinas suficientes. Fora isso, nosso programa de vacinação tem funcionado tranquilamente. Portanto, há filas sinuosas de pessoas esperando para serem vacinadas, e nosso problema é que não há vacinas suficientes para todos.

 

Nermeen Shaikh – E, Barkha, o governo Modi comprometeu-se a vacinar todos os adultos até o final do ano. Qual é a probabilidade disso? E o que precisa acontecer para garantir que haja vacinas suficientes?

Barkha Dutt – Então, apenas para dar um contexto ao público, a Índia fabrica 60% das vacinas do mundo. Temos experiência com programas de imunização em massa, e é por isso que, com as vacinas que temos, nosso programa tem sido bem tranquilo. Mas nós – e eu preciso destacar isso repetidamente, é por isso que meu sangue ferve ao ver o que está acontecendo nos EUA – simplesmente não temos vacinas suficientes para todos.

Então, para dar a vocês os números, estamos vacinando, digamos, em um dia bom, cerca de 4 milhões de indianos por dia. Precisamos vacinar 9 milhões para cumprir a meta que você acabou de mencionar, que foi fixada pelo próprio governo – ou seja, todos os adultos vacinados até o final do ano. Não podemos fazer isso a menos que tenhamos apenas uma explosão de vacinas no prazo final de produção ou no mercado.

E, no momento, os países ricos, os países ocidentais, de certo modo, acumularam a maioria das vacinas. Eles têm vacinas em excesso. E se seus próprios cidadãos não estiverem prontos para usar essas vacinas, elas precisam ser enviadas para os países que mais precisam delas.

 

Nermeen Shaikh – Barkha, você relatou extensivamente de toda a Índia sobre o impacto que a pandemia está tendo, e também, é claro, portanto, a urgência de se obter vacinas. Você pode explicar o que viu e, em particular, o impacto nos pobres – sobre os pobres? Como o suprimento de oxigênio acabou, você falou sobre pessoas fazendo fila nas ruas e morrendo nas ruas à espera por oxigênio, também aumentou o número de pessoas agora abaixo da linha da pobreza. Você poderia falar sobre isso?

Barkha Dutt – Sim. É importante dizer que podemos estar no que alguns chamam de calmaria antes da próxima tempestade. Mas, certamente, emergimos de um pesadelo como um que nunca vivi em minha vida adulta. Você sabe, fomos informados que este vírus é o grande equalizador. Não poderia haver mentira maior.

Na primeira onda da pandemia, vimos milhões de indianos pobres tendo que deixar as cidades e caminhar, caminhar de volta para suas aldeias durante o lockdown, porque a Índia optou por fechar o transporte público, em pânico total, quando a covid-19 nos atingiu pela primeira vez. E eu documentei essa jornada. E, você sabe, a catástrofe humanitária foi significativamente, eu diria, maior do que a emergência médica.

Na segunda onda, por acharmos que não haveria uma segunda onda, mais uma vez, foram os pobres que foram atingidos de forma desproporcional. A maioria deles, famílias que conheci, tiveram que fazer empréstimos, hipotecar joias de herança de família, talvez vender o único pedaço de terra que eles tinham, só para poder pagar as taxas exorbitantes dos hospitais, que então os fizeram assinar formulários de consentimento, que basicamente chamo de mandados de morte modernos, porque esses formulários diziam que se seus entes queridos morressem, digamos, porque não havia oxigênio suficiente no hospital, o hospital não teria responsabilidade legal a enfrentar. E eu literalmente vi pessoas fora das portas fechadas desses hospitais morrendo nas ruas, morrendo nas ambulâncias, morrendo não apenas de covid, mas morrendo, por exemplo, porque não conseguiram um leito ou porque não tiveram acesso ao oxigênio.

Portanto, devemos reconhecer – e agora estamos na próxima fase, onde, em meio à esperança de uma recuperação, você está vendo os indianos assalariados perderem empregos. Você está vendo, você sabe, trabalhadores de salário diário incapazes de pagar aluguel. Você está vendo milhões de crianças pobres saindo do sistema educacional porque as escolas físicas permanecem fechadas em grandes partes do país. Portanto, quando falamos em covid, devemos parar de dizer que o vírus é um grande equalizador, porque é qualquer coisa, menos isso.

 

Amy Goodman – Barkha Dutt, nos Estados Unidos há uma discussão sobre uma dose extra. Está sendo administrada primeiro a imunodeprimidos. Agora mulheres grávidas estão sendo recomendadas a tomar vacina, e parece que crianças abaixo de 12 anos também receberão. O Wall Street Journal relatou que a Índia está buscando acesso às vacinas da Pfizer, Moderna, Johnson & Johnson. Você poderia explicar quais os impedimentos para conseguir um acordo com essas empresas estrangeiras para ter vacinas mRNA na Índia, e por que importa que eles são proprietários das patentes, das fórmulas?

Barkha Dutt – Boa questão. Você sabe, pessoalmente, eu tenho defendido uma suspensão desses impedimentos e a distribuição dessas vacinas para nós assim que possível. Particularmente, as vacinas mRNA têm sido testadas em crianças, e nós sabemos que são seguras. E para mencionar, provavelmente somos o único país no mundo onde a maioria das escolas presenciais não abriram por mais de 500 dias. E devido à divisão digital, porque apenas 11% da Índia tem acesso a dispositivos de informática, para as crianças pobres, isso significa não educação. Isso significa perda – para milhões de crianças pobres, e particularmente para meninas. Nas casas ondem há um smartphone, isso significa que o menino usará o telefone, não a menina, e essas meninas estão sendo obrigadas a serem babás. Então, eu estou explicando isso para destacar o porquê as vacinas mRNA são tão importantes para países como o meu.

O impedimento é que o governo se recusa a basicamente assinar a renúncia de responsabilidade dessas empresas, caso sejam processadas. E o argumento é que essa isenção de responsabilidade não foi fornecida aos fabricantes indianos de vacinas. Alguns de nós estão dizendo para dar a todos, porque é isso que os países ao redor do mundo têm feito. Mas, infelizmente, você sabe, estamos vendo uma negociação demorada sobre esta cláusula de indenização, e é lamentável, porque não acho que temos tempo para ser tão burocráticos e lentos quanto a isso.

 

Nermeen Shaikh – E, Barkha, antes de terminarmos, a última questão das dívidas médicas que milhões de indianos acumularam ao tratar de pessoas que sofreram com a covid. Você poderia falar sobre isso e o estado dos hospitais e clínicas que agora lidam com os pacientes de covid?

Barkha Dutt – Então, para o ponto em que estamos, realmente, estamos sentados no precipício de uma terceira onda. Não sabemos qual seria a natureza disso. Estamos vendo ondas localizadas em nosso país agora. O que quero dizer com isso é que, em vez de haver esse tipo de catástrofe nacional, estamos vendo isso localizado, e o número máximo de casos vindo de estados específicos – o estado de Kerala no sul, o estado de Maharashtra no oeste e assim por diante.

E em termos de mortes, eu só quero deixar claro que, novamente, não sabemos algumas coisas. Pessoalmente, meu relato deixa bem evidente para mim, e acho que é evidente para todos agora, que contamos muito menos nossos mortos. Você sabe, vimos valas comuns de corpos abandonados suspeitos de serem de pacientes de covid, ao norte do país, às margens do rio Gagara. Eu mesmo documentei pessoalmente cinco dessas valas comuns. Vimos a subnotificação e a ausência de contagem em locais de cremação e cemitérios.

E, você sabe, é apenas importante dizer que somos um país onde 1.300 pessoas morrem de tuberculose, outras 1.300 de câncer, diariamente. Estamos vendo uma queda acentuada até mesmo no registro desses casos, o que faz com que milhões de indianos não tenham acesso a exames, a internações por outras doenças que não a covid-19. E, em minha opinião, eles fazem parte do número de vítimas desta pandemia e devem ser contados como tal. Mas não temos documentação formal ou oficial do que podem ser essas fatalidades.

Os especialistas em saúde pública estão alertando contra os familiares da complacência que nos custaram tão gravemente na segunda onda. Eles estão alertando contra isso para a terceira onda. Ninguém sabe ao certo quando virá a terceira onda. No momento, os hospitais não estão enfrentando o tipo de pressão e o tipo de loucura que vimos, digamos, no mês de maio. Então, dedos cruzados. Não podemos nos dar ao luxo de ser complacentes e precisamos desesperadamente dessas vacinas que tantos americanos se recusam a tomar.

Confira o vídeo da entrevista (em inglês)

 

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