Quando o trans-humano molda o mundo. Entrevista com Albert Cortina

Foto: Pixabay

10 Agosto 2021

 

É possível hibridar o computador e o ser humano? Com a queda das grandes ideologias dos séculos XIX e XX, o mundo parece pronto para entrar no novo arquipélago do trans-humanismo.

 

A reportagem é de Leonardo Servadio, publicada por Avvenire, 07-08-2021. A tradução é de Anne Ledur Machado.

 

Albert Cortina, urbanista e jurista catalão, há muito tempo adverte sobre os múltiplos problemas inerentes a esses desenvolvimentos e, como autor de várias obras sobre o assunto, acaba de publicar, pela editora da Universidade de Navarra, um livro que fala de trans-humanismo e da/, e soa como um premente apelo: “Despertad!” (“Despertem!”).

 

“Esta nova ideologia tem muitas facetas e – explica – se espalha a partir de vários ambientes: centros de pesquisa avançados como a Nasa, algumas universidades, os gurus do Vale do Silício, até se infiltrar no modo de pensar comum, seguindo o filão da nova utopia: que o ser humano pode ser liberado do trabalho, mas sobretudo dos seus limites naturais. Que a tecnologia pode suprimir o sofrimento, afastar a morte, aperfeiçoar o organismo e o seu desempenho, dar aos indivíduos o direito de decidir sobre o seu próprio modo de ser e sobre o seu próprio destino. Ser mais forte, alcançar a imortalidade, transferir-se para a memória do computador: estas são algumas das perspectivas futuras. Entre os defensores do trans-humanismo, há quem siga a tendência pragmática da eugenia, quem busque a ideia da hibridação entre ser humano e máquina, quem o veja como uma nova mística e imagine que pode criar o super-homem, superinteligente, capaz de tudo. Trata-se da velha abordagem materialista temperada com tecnologia avançada: como só se vê o corpo do ser humano, ele é entendido como uma máquina passível de contínuas melhorias.”

 

Eis a entrevista.

 

O que isso tem a ver com a nova ordem mundial?

 

As instituições nascidas após a Segunda Guerra Mundial e articuladas em órgãos especializados (Unesco para a cultura, OMS para a saúde etc.), como se sabe, são afetadas não só pela contribuição dos Estados, mas também pela influência de grandes empresas privadas, que dominam as novas tecnologias. Nesse contexto, afirma-se que há quem aspire a um “reset” das relações internacionais mediadas por tais órgãos.

 

Estamos no campo das hipóteses, mas consideremos a medida em que o uso da internet já influenciou as relações supranacionais e como a hegemonia estadunidense é desafiada e, em perspectiva, poderia ser substituída pela China, com a qual compete na exploração espacial, nos supercomputadores, na genética, nas finanças: todos fenômenos muito distantes do possível controle democrático da cidadania, que, em vez disso, está sob a sua influência.

 

Existem poderes de alcance global que têm a capacidade de influenciar por toda a parte. Vimos isso a pandemia: a OMS dava diretrizes, e os Estados as executavam. Surge a pergunta: existe uma estratégia para um controle global? Ninguém pode dizer, mas os fatos ocorrem como se houvesse.

 

O fato de haver concorrência com a China não indica, antes, que não existe uma estratégia única?

 

Eu me pergunto, dada a capacidade chinesa de obter resultados excelentes em todos os campos tecnológicos, mantendo um estrito controle social, se isso também não sugere aos gurus do Vale do Silício que o modelo oriental é mais eficiente do que o ocidental, centrado na igual dignidade das pessoas. Porque, tanto na China quanto no Vale do Silício, vemos elites que usam os instrumentos mais avançados para exercer o seu poder.

 

Daí o apelo a “despertar”?

Em uma época de fake news distribuídas a torto e a direito pelos trolls, de inteligência artificial, que opera nos mercados financeiros manipulando enormes quantias monetárias em frações de segundo, conhecer a fundo a realidade que nos cerca e que é global absolutamente não é simples. Portanto, como “despertar” para nos reapropriarmos dessa realidade que parece depender de um novo Olimpo, separado de nós, reles mortais? Estou pensando no que ocorreu depois da crise de 2008: a resposta foi de caráter econômico e favoreceu o consumismo e os lucros, ou seja, a velha lenga-lenga do homo oeconomicus.

 

A crise pandêmica dos últimos anos, em vez disso, nos isolou nos lockdowns e nos colocou diante de nós mesmos. Sofremos as nossas limitações e a nossa fragilidade: encontramo-nos em condições de nos perguntar o que somos como seres humanos. Eu acredito que isso abriu os corações à esperança, e essa é uma mensagem universal que não nos deixa indiferentes. Durante o confinamento, eu me levantei esses problemas e escrevi os textos, já publicados no site Frontiere.eu, reunidos no livro agora lançado.

 

Por isso, acho que existem as condições para surjam as perguntas essenciais, não nos contentando com sermos melhores na inteligência, mas desejando sermos melhor nas virtudes. Na capa do livro, vê-se a mão que oferece as duas pílulas, a azul e a vermelha, do filme “Matrix”. A esperança é de que não se escolha tomar a pílula que faz dormir, mas aquela que ajuda a indagar a realidade e a se interrogar. Se nos iludirmos que nos tornamos criadores de nós mesmos, como o trans-humanismo gostaria, nos reduziremos a máquinas. Se formularmos as perguntas essenciais, aceitando os nossos limites de criaturas, saberemos nos voltar ao mistério do Criador. Essa é a única resposta possível à aberração trans-humanística.

 

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