O Papa Francisco, a pandemia e o pós-pandemia: metáforas e encruzilhada

Papa Francisco reza na Igreja de San Marcello al Corso, diante do Cristo que salvou Roma da Grande Peste. Foto: CNS | Vatican Media

Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 25 Julho 2020

Francisco desde o início do pontificado comunica com simplicidade, utilizando-se de metáforas para falar pedagogicamente a todos sobre o projeto de Igreja que deseja construir.

Muitas vezes reiterou o sonho de uma “Igreja em Saída”, para dizer uma Igreja missionária, de acompanhamento próximo, machucada nas ruas e calcada na vida do Povo de Deus. E de fato, o Papa nos últimos sete anos viajava às periferias e acolhia em sua casa, os pobres, os migrantes, os refugiados, os indígenas, as vítimas de abusos sexuais...

Papa Francisco em visita a um campo de refugiados em Lesbos, Grécia, 2016. Foto: Paul Haring | CNS

Expressou também, desde sua primeira encíclica, a necessidade da “cultura do encontro” contra a “cultura do descarte”. Reforçava assim uma sociedade inclusiva, de valorização e participação de todos os pobres do mundo, superando as agruras geradas por um sistema econômico financeirizado em crise.

A pandemia do coronavírus atravancou o caminho da “normalidade”, de toda a sociedade, incluindo também o papado ao “estilo Francisco”. O mundo, e a Igreja que nele está inserida, depararam-se com o desafio de se transformar e repensar. O Papa, em entrevista por videoconferência, afirmou: “Tenho esperança na humanidade. Vamos sair melhores”.

Porém, contra Francisco, a pandemia freou uma agenda de viagens e os rotineiros encontros com o público, limitando o Papa das periferias, do encontro e da Igreja em saída, à reclusão entre a paredes do Vaticano - e à comunicação on-line, com transmissão do Ângelus, Audiência Geral e das missas matinais.

Transmissão da Audiência Geral, 25-03, direto da Biblioteca do Palácio Apostólico. Foto: Vatican News

Contudo, a leitura de mundo, e da Igreja, que Francisco soube fazer e divulgar em sete anos de pontificado gerou outra metáfora ainda mais pertinente no atual tempo: a Igreja como hospital de campanha. O teólogo Tomáš Halík destaca no artigo "Igrejas fechadas: um sinal de Deus?":

 

“Se a Igreja deve ser um 'hospital de campanha', obviamente ela deve continuar oferecendo a mesma assistência sanitária, social e caritativa que ofereceu desde as origens da sua história. Mas, como qualquer bom hospital, a Igreja também deve realizar outras tarefas. Deve fazer diagnósticos (identificando os 'sinais dos tempos'), fazer prevenção (criando um 'sistema imunológico', em uma sociedade em que dominam os vírus malignos do medo, do ódio, do populismo e do nacionalismo), e fazer convalescência (ultrapassando os traumas do passado com o perdão)”.

 

Halík compreende o fechamento das Igrejas como uma oportunidade de provar um futuro que poderia em breve acontecer. E é ao confinamento no vazio (agora forçado por uma emergência sanitária) que a metáfora da Igreja em saída faz-se antítese. Para ele, o “ser Igreja” e “ser Cristão” não é estático, imutável, e a história de Cristo e os apóstolos demonstrara isso.


“Do tesouro da tradição que nos foi confiada, queremos tirar coisas novas e velhas e fazê-las participar de um diálogo com os que buscam, um diálogo no qual possamos e devamos aprender uns com os outros. Devemos aprender a ampliar radicalmente os limites da nossa visão da Igreja. Já não nos basta abrir, magnanimamente, um ‘pátio dos gentios’. O Senhor já bateu à porta a partir ‘de dentro’ e saiu – e cabe a nós buscá-lo e segui-lo. Cristo atravessou a porta que nós havíamos trancado por medo dos outros. Pulou o muro que tínhamos erigido à nossa volta. Abriu um espaço cuja amplitude e profundidade nos dão vertigens”.

 

Em 21-12-2019, dias antes de o novo coronavírus ser sequenciado e meses antes de a OMS declarar pandemia, Francisco reforçava à Cúria Romana as rápidas transformações de um novo mundo:

 

“Estamos a viver, não simplesmente uma época de mudanças, mas uma mudança de época. Encontramo-nos, portanto, num daqueles momentos em que as mudanças já não são lineares, mas epocais; constituem opções que transformam rapidamente o modo de viver, de se relacionar, de comunicar e elaborar o pensamento, de comunicar entre as gerações humanas e de compreender e viver a fé e a ciência”

 

A pandemia colocou o Francisco definitivamente na encruzilhada “do velho que está morrendo e do novo que ainda não nasce”. Relembramos abaixo alguns eventos e algumas análises desse período e o futuro do pontificado. 

 

As orações de Francisco

A Itália foi o primeiro país ocidental a sofrer com a catástrofe do coronavírus. Cenas como os caminhões militares carregando corpos de mortos pela covid-19 em Bérgamo chocaram o mundo. Na tarde de 15 de março, Francisco saiu pelas ruas vazias de Roma em peregrinação à Basílica de Santa Maria Maggiore para fazer oração à Virgem "Protetora do Povo Romano", Salus Populi Romani. Na sequência, seguiu, caminhando, à Igreja de San Marcello al Corso, onde está o Crucifixo milagroso que em 1522 foi levado em procissão pelos bairros da cidade para que terminasse a "Grande Peste" em Roma.

Foto: Il Sismografo

Foto: Il Sismografo

Os meses de março e abril foram dramáticos, a Itália atingiu o pico de mortes em 27-03, com 919 óbitos. No anoitecer deste dia, Francisco celebrou a oração Urbi et Orbi, em uma Praça São Pedro escura e vazia. Em sua homilia disse que estamos todos no mesmo barco e reafirmou a necessidade de construir um rumo comum: “não é o momento do juízo de Deus, mas sim de nosso juízo: o tempo para escolher entre o que conta verdadeiramente e o que passa, para separar o que é necessário do que não é”.


Foto: Vatican News


Foto: Vatican News

 

 

Uma comissão de resposta à pandemia

Para março de 2020, Francisco havia convocado um encontro com milhares de jovens economistas para discutir novos modelos de economia, inspirados em Francisco e Clara de AssisUma economia que faz viver e não mata. O encontro presencial da “Economia de Francisco” ficou adiado devido à pandemia, embora as discussões virtuais tenham continuado.

Porém, as projeções de diversos organismos internacionais alertam para uma “crise sem precedentes” como consequência da pandemia. Em função disto, em abril, o Vaticano criou uma Comissão para abordar os desafios postos ao mundo pelo coronavírus. Sob a liderança do cardeal Peter Turkson, prefeito do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral a comissão tem como objetivo “a análise e a reflexão sobre os desafios socioeconômicos e culturais do futuro e a proposta de diretrizes para enfrentá-los”. Segundo Turkson: “O Papa está convencido de que estamos em uma mudança de época e está refletindo sobre o que virá depois da emergência, sobre as consequências econômicas e sociais da pandemia, sobre o que teremos que enfrentar e, acima de tudo, sobre o modo como a Igreja poderá se oferecer como ponto de referência seguro para o mundo desorientado diante de um evento inesperado”.

Para ajudar a planejar o papel da Igreja no mundo pós-pandemia, Francisco convocou para a comissão o padre argentino Augusto Zampini. Em entrevista ao portal Religión Digital, Zampini disse perceber na pandemia "uma oportunidade ver a Igreja que sai, que arregaça as mangas e se suja de barro, para dar esperança, abraçando a todos, especialmente aos mais pobres”.

 

 

Quinto aniversário da Laudato Si’

Em meio à pandemia também se celebrou os cinco anos da publicação da carta encíclica Laudato Si’. Em 04-03, o Papa fez um chamado urgente para responder à crise ecológica, com a intenção de reunir milhares de paróquias, movimentos, instituições de ensino e indivíduos por todo o mundo para promoverem debates e ações concretas na semana de 16 e 24 de maio. Com o avanço do coronavírus pelo mundo, a proposta inicial de março ganhou novos significados. A pandemia acentuou a necessidade do debate sobre a ecologia integral e, via internet, reuniu as milhares de iniciativas.


Trechos da Laudato Si'. Arte: Natália Froner | IHU

 

Apelos de Francisco

Sem se saber quando terminará a pandemia, o pontificado de Francisco está delimitado no marco temporal do “pré-pandemia” e “durante a pandemia”. No entanto, esse processo temporal está conectado. Além de reforçar algumas das metáforas de Francisco, a pandemia trouxe novos apelos para o futuro.

Em mensagem de Páscoa aos Movimentos Populares de todo o mundo, o Papa pela primeira vez se manifestou a favor de uma renda universal:

 

“Vocês, trabalhadores informais, independentes ou da economia popular, não têm um salário estável para resistir a esse momento ... e as quarentenas são insuportáveis para vocês. Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos”.

 

Em entrevista ao jornal inglês The Tablet, Bergoglio afirmou que este é um tempo de grande incerteza, mas alertou para as oportunidades de reinvenção que a crise do coronavírus pode abrir e reforçou novamente a opção preferencial pelos pobres, como um caminho a ser seguido na Igreja e sociedade:

 

“Desçamos ao subterrâneo e passemos do mundo hipervirtual e sem carne para o sofrimento da carne dos pobres. Esta é a conversão que temos que passar. E se não começarmos por aí, não haverá conversão. O que estamos vivendo agora é um lugar de metanoia (conversão), e temos a chance de começar. Então, não vamos deixar escapar isso, e vamos seguir em frente”.

 

Em uma reunião virtual da Scholas Ocurrentes, o papa Francisco reforçou a necessidade de uma educação conduzida pela escuta e pelo encontro, em um discurso marcado por fundar uma "universidade do sentido":

 

“A cultura do encontro reúne o sonho das crianças e os jovens com a experiência dos adultos e os velhos. Esse encontro precisa acontecer sempre, caso contrário, não há humanidade. Sem esse encontro não há raízes, não há história, não há promessa, não há crescimento, não há sonhos, não há profecia”.

 

Em 13 de junho, na mensagem pelo Dia Mundial dos Pobres, que será celebrado em novembro, Francisco condenou o desprezo aos pobres durante as crises econômicas, financeiras e políticas, e as costumeiras ajudas que brotam de essências corruptas:

 

“Neste cenário, ‘os excluídos continuam a esperar. Para se poder apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe’ (Francisco, Exort. ap Evangelii gaudium, 54). Não poderemos ser felizes enquanto estas mãos que semeiam morte não forem transformadas em instrumentos de justiça e paz para o mundo inteiro”.

 

Opositores organizados

Os opositores de Francisco seguiram atuando durante a pandemia, e com o confinamento do Papa ganharam destaque em holofotes de algumas mídias.

Uma das principais polêmicas do período pandêmico deu-se com a determinação dos administradores públicos de proibir a celebração de missas. Para muitos, era a vitória do Estado sobre a Igreja com a cumplicidade de Francisco. Ao final de abril, quando a Itália passava a uma nova fase de retomada das atividades, os bispos do país protestaram pelas restrições ao culto. De acordo com reportagem do jornal La Stampa, o Papa pediu a Conferência Episcopal para que não houvesse confronto contra as autoridades estatais.

No entanto, esse posicionamento despertou um movimento de protestos por todo o mundo. Na Espanha, Colômbia, México, Brasil e Argentina, um grupo de leigos e clérigos conservadores divulgaram vídeos e posicionamentos exigindo a volta das missas.

Na sequência, o movimento pela volta dos ritos litúrgicos ganhou adeptos de maior peso. Entre eles, o arcebispo Carlo Maria Viganò, que em 2018 acusou Francisco de encobrir as denúncias de abuso contra o cardeal Theodore McCarrick e pediu ao Papa para que renunciasse. Somavam-se a Viganò os cardeais Joseph Zen, de Hong Kong, e Gerhard Müller, ex-prefeito da Congregação para Doutrina da Fé. Outro cardeal a aderir ao movimento, embora tenha voltado atrás, foi Robert Sarah, prefeito da Congregação para a Liturgia do Vaticano, que em janeiro manifestou-se em livro contra as propostas oriundas do Sínodo Pan-Amazônico, contrariando a possibilidade de ordenação de homens casados e usando o nome do papa emérito Bento XVI para endossar sua posição e constranger as futuras decisões de Francisco

 

Nos Estados Unidos um ataque mais duro ao papado foi articulado. A partir do lançamento de dois livros com o mesmo título e teor "The Next Pope", um de autoria de Edward Pentin e outro de George Weigel. Críticos acusam o livro de Weigel de ser politiqueiro e promover ataques passivos a Francisco. Aproveitando-se disso, o cardeal Timothy Dolan, de Nova York, enviou cópias da obra para cardeais de todo o mundo, a fim de influenciar votos em um próximo conclave.

“O próximo papa: o ofício de Pedro e uma Igreja em missão”, novo livro de George Weigel. (Foto: Divulgação)

Dolan ainda aproveitou o ano de 2020 para formar aliança com o presidente Donald Trump, e candidato à reeleição ao final do ano que também recebeu apoio de Viganò, para receber fundos públicos para bolsas em escolas católicas. 

 

No início de julho, o Papa sofreu outro golpe do mundo político. O presidente turco Recep Tayyip Erdogan transformou a milenar basílica de Santa Sofia, símbolo do encontro entre o ocidente cristão e o oriente islâmico, em uma mesquita. No Ângelus de 12-07, Francisco afirmou ter ficado triste com a decisão de Erdogan.

Santa Sofia, em Istambul (Foto: Unsplash)

 

Algumas análises

O atual confinamento propicia, como sugere o historiador Massimo Faggioli, um olhar com mais cuidado para o pontificado de Francisco.

No artigo Os limites de um pontificado (parte I e parte II), o historiador aponta que desde o ano passado o dinamismo do serviço papal demonstra suas limitações e a exortação Querida Amazônia é um exemplo concreto do quanto o Papa cede a seus opositores mais barulhentos:

 

"Mas algo perturbador ocorreu no ano passado. Temos a impressão de que, nos últimos meses, o dinamismo do seu certificado começou a atingir o seu limite. E essa não é apenas a opinião dos teólogos que estão envolvidos nos debates sobre a reforma da Igreja. Mas ficou evidente para mim, pelo menos, que as ideias espirituais muito importantes de Francisco carecem de uma clara estrutura sistemática que possa ser colocada em uma estrutura teológica e em uma ordem institucional".

 

Para ele, Francisco criou esperança em muitos que sonhavam com as grandes reformas na Igreja. Mas o engessamento institucional pode fazer com que elas ocorram demasiadamente tarde, ou não ocorram:

 

"O Papa Francisco mudou profundamente a vida de muitos e está moldando a Igreja Católica em algo mais evangélico e semelhante ao Evangelho. Muito disso se deve à sua capacidade incomparável de oferecer uma leitura espiritual das situações existenciais. Mas essa mudança também requer algumas mudanças estruturais. Ele e os bispos não devem menosprezar ou rejeitar os pedidos de reforma institucional como tecnocratas ou elitistas".

 

Em resposta a Faggioli, o jornalista Michael Sean Winters concorda, acrescenta mais elementos às preocupações com os "limites" do atual pontificado e esboça algumas respostas, como na seguinte afirmação:

 

"Quando ele se tornou papa, de fato na fala que levou à sua eleição, Francisco chamou a Igreja a olhar para fora, a sair da sacristia, a se tornar uma Igreja de discípulos-missionários. Talvez ele pense que essa mudança de foco do 'ad intra' para o 'ad extra' é uma pré-condição que precisa ser atendida ainda mais se a Igreja quiser fazer reformas internas de uma forma que não a divida mais do que já está".

 

Já o jornalista John Allen Jr., fundador e diretor do portal Crux, considera que a pandemia cria ainda mais restrição às reformas. Em entrevista ao Wall Street Journal afirmou que "se o Papa não é capaz de se projetar na conversa, devido a sua impossibilidade de viajar ou de fazer grandes eventos públicos, então ele perde a relevância.

 

O monge beneditino Marcelo Barros faz uma análise similar, afirmando que "por mais que o papa Francisco tenha se esforçado por transformar o Vaticano e libertar a Igreja do clericalismo e de suas consequências nefandas, por trás dele, há a contradição de uma estrutura eminentemente anti-profética e pouco aberta à renovação".

 

Para o jornalista Christopher Lamb no momento há quatro saídas para a Igreja procurar e ao fim da pandemia poderia sair na verdade mais fortalecido: "1. Simplicidade missionária; 2. Foco nos pobres; 3. Relação renovada com o mundo natural e a ciência; 4. Criatividade litúrgica e pastoral".

 

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O fim da pandemia é imprevisível. E Halík alerta "a atual pandemia não é, certamente, a única ameaça global para o nosso mundo, nem agora nem no futuro". No entanto Francisco já entendia a necessidade de construir, demonstrado com suas metáforas e ações, um projeto que se inseria nas transformações que o mundo exige.

 

Papa Francisco reza na Igreja de San Marcello al Corso, diante do Cristo que salvou Roma da Grande Peste. Foto: Vatican Media

 

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