“Uma catástrofe no século XXI, a menos que a humanidade mude subitamente de rumo”. Entrevista com John Bellamy Foster

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08 Abril 2020

“Hoje em dia, não há dúvida de que no Antropoceno, o capitalismo está criando fissuras antropogênicas nas espécies, nos ecossistemas e na atmosfera, gerando uma crise socioecológica, que em última instância se deve às contradições do sistema de acumulação. O regime capitalista cria grandes disparidades de classe e imperiais, fazendo com que os perigos ambientais recaiam sobre os mais pobres e vulneráveis, ao passo que os ricos são relativamente seguros, dando um novo significado à acusação de Engels de ‘assassinato social’”, afirma John Bellamy Foster, professor de sociologia na Universidade de Oregon, Estados Unidos.

A entrevista é publicada por Observatorio de la crisis, 03-04-2020. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Você analisou e elaborou, durante muito tempo, o conceito de Karl Marx sobre a ruptura metabólica. Hoje, tendo em vista a pandemia de coronavírus, como vê a situação à luz de suas análises?

Obviamente, a situação associada ao repentino surgimento do vírus SARS2 e da pandemia da COVID-19 é sombria em todo o mundo. Tanto causas como as consequências estão estreitamente relacionadas com as relações sociais capitalistas.

A teoria da ruptura metabólica de Marx é uma forma de olhar para as relações ecológicas e metabólicas. Em particular, as complexas relações interdependentes entre a natureza e a sociedade, a partir de uma abordagem sistêmica muito antes que se desenvolvesse a moderna ecologia e que de fato surgiu sobre bases semelhantes.

Marx, baseado no trabalho do químico alemão Justus von Liebig, se concentrou na quebra do metabolismo do solo. O transporte de alimentos a centenas e até milhares de quilômetros do campo - para a cidade - provocava a perda de nutrientes essenciais do solo, como nitrogênio, fósforo e potássio. A pesquisa de Liebig demostrou que os nutrientes não foram devolvidos ao solo, mas acabaram contaminando as cidades. Esses processos se intensificaram com a produção e a acumulação capitalista, gerando rupturas nas trocas de seres humanos com a natureza, que Marx chamou de “metabolismo universal da natureza”.

O ponto de vista da “ruptura metabólica” é na realidade um ponto de vista ecológico radical no que se refere às relações sociais capitalistas e é fundamental para compreender a atual pandemia de coronavírus.

O biólogo evolutivo e epidemiologista Rob Wallace, autor do livro “Big Farms Make Big Flu”, argumentou - junto com sua equipe de colegas cientistas - que tanto a origem como a propagação da COVID-19 devem ser consideradas diretamente relacionadas aos circuitos do capital (“COVID-19 and Circuits of Capital”, Monthly Review on-line, 27 de março de 2020).

O próprio capitalismo é o principal vetor da doença. Wallace explicou que a origem da COVID-19 e outros vírus recentes tem sido a penetração mais intensiva do agronegócio nos sistemas naturais, o que criou fissuras nos ecossistemas e entre as espécies, causando o surgimento de pandemias globais. Em “Notes on a Novel Coronavirus”, Wallace argumenta que a solução estrutural é a construção de “um ecossocialismo que atenue a lacuna metabólica entre ecologia e economia, entre o urbano, o rural e o selvagem. Evitando assim o surgimento de patógenos piores desse tipo”.

É importante entender que essa crítica ecológica/epidemiológica não é nova. O jovem Frederick Engels tratou amplamente das doenças e condições epidemiológicas prevalecentes na época da Revolução Industrial, particularmente em seus aspectos relacionados à classe trabalhadora, em seu livro A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, publicado em 1845.

Engels denunciou o “assassinato social” que essas situações implicavam. Muito disso também foi tratado em passagens do O Capital de Marx.

Há mais de um século, o protegido de Charles Darwin e Thomas Huxley e amigo íntimo de Marx, o zoólogo Ray Lankester, escreveu em “O Reino do Homem” (no capítulo chamado “As revanches da natureza”): “Em um esforço ambicioso para produzir uma grande quantidade de animais e plantas... o homem acumulou grandiosas espécies, de maneira antinatural, em campos e fazendas e também concentrou multidões em cidades-fortalezas”. O resultado está à vista. Foi o crescimento de novas doenças associadas a parasitas, vírus e bactérias.

Para Lankester, um crítico agudo do capital, o problema estava em última instância nos “mercados” e nos “comerciantes cosmopolitas das finanças”.

No entanto, as advertências de Lankester sobre “as revanches da natureza” foram ignoradas. Na Monthly Review, de setembro de 2000, Richard Levins argumentou, em “Es el capitalismo una enfermedad?”, que a falta de compreensão da crescente ameaça de pandemia se devia ao fato de “a saúde pública convencional não observar outras espécies, a evolução e a ecologia”. Em relação a isso, o trabalho de Wallace, “Las grandes granjas provocan la gripe”, foi uma contribuição importante, porque explica que toda a estrutura do agronegócio imperialista teve que ser transformada para parar a profusão de epidemias.

Hoje em dia, não há dúvida de que no Antropoceno, o capitalismo está criando fissuras antropogênicas nas espécies, nos ecossistemas e na atmosfera, gerando uma crise socioecológica, que em última instância se deve às contradições do sistema de acumulação. O regime capitalista cria grandes disparidades de classe e imperiais, fazendo com que os perigos ambientais recaiam sobre os mais pobres e vulneráveis, ao passo que os ricos são relativamente seguros, dando um novo significado à acusação de Engels de “assassinato social”.

Em seu livro ‘El Planeta Vulnerable’, argumenta que a economia capitalista não apenas destrói o meio ambiente - ameaçando a vida do planeta -, mas também sacrificou a ciência no altar do lucro, colocou a medicina e a ciência a serviço de acumulação de capital, que os habitats humanos se organizam de maneira irracional e desumana. Como está o planeta em razão dessa atual pandemia?

Quando escrevi El Planeta Vulnerable (1994), há mais de um quarto de século, minha motivação era a mudança climática, a extinção de espécies em todo o mundo, o desmatamento e a destruição da camada de ozônio. Parecia claro que só poderíamos abordar a gravidade da crise ecológica planetária, se entendêssemos a economia capitalista que estava por trás dela.

Um argumento central é que “na medida em que a economia mundial continua crescendo, os processos econômicos humanos começam a rivalizar com os ciclos ecológicos do planeta, abrindo como nunca a possibilidade de um desastre ecológico planetário”. Isso foi agravado dramaticamente pela produção de resíduos e sintéticos (tóxicos). No fundo, está a lógica da acumulação de capital, porque constitui a realidade estrutural do capitalismo monopolista. A colisão entre capitalismo e meio ambiente não significa outra coisa que uma catástrofe no século XXI, a menos que a humanidade mude subitamente de rumo.

Naquele momento, essa lógica irracional me parecia bastante óbvia e foi confirmada por um consenso científico emergente. Mas, embora o livro adquirisse uma considerável reputação nos círculos ecológicos de esquerda, me surpreendeu a resistência determinada a suas teses por uma certa esquerda socialista. Por exemplo, o geógrafo marxista David Harvey criticou meu livro em Justice, Nature, and the Geography of Distanc (1996), argumentando vigorosamente que a “proclamação apocalíptica de que um ecocídio é iminente é pelo menos uma história duvidosa”.

Harvey acrescentou que as ideias de um risco ambiental global foram exageradas: “o pior que podemos fazer é recusar a transformação material de nosso ambiente para tornar a vida menos confortável para nossa espécie”. Essas opiniões conduziram a um interessante debate entre Harvey e eu na edição de abril de 1998 da Monthly Review.

No entanto, olhando hoje para o livro “El planeta vulnerable”, depois de todos esses anos, minha principal autocrítica é contrária à objeção de Harvey. Acredito que, no lugar de exagerar o perigo ecológico, o texto falhou em abarcar toda a gravidade da iminente fissura planetária. Uma grave ameaça para todos, se continuarmos no caminho capitalista.

Cinco anos depois, em um artigo de setembro de 1999 sobre “A teoria da ruptura metabólica de Marx”, no American Journal of Sociology, cheguei a uma análise histórico-materialista mais desenvolvida, baseada na redescoberta dos estudos ecológicos de Marx. Esses trabalhos me abriram o caminho para uma compreensão mais profunda da colisão entre o capitalismo e o planeta.

De fato, a parte mais importante da análise da ruptura metabólica foi que nos permitiu compreender mais plenamente a dialética negativa do capitalismo e do meio ambiente.

Todo esse debate levou a uma pesquisa sistemática, realizada por numerosos marxistas ecológicos, incluindo figuras como Ian Angus, Paul Burkett, Brett Clark, Rebecca Clausen, Ryan Gunderson, Hannah Holleman, Stefano Longo, Fred Magdoff, Andreas Malm, Kohei Saito, Eamonn Slater, Weston e Richard York.

Todos esses estudiosos pesquisaram a dialética materialista subjacente à mudança climática, extinção de espécies, desmatamento (desertificação), abuso industrial de animais, capital fóssil e uma série de outros temas, incluindo o que E. P. Thompson chamou de “extermínio”.

Seria um grave erro NÃO compreender que a crise ecológica planetária e a crise da economia capitalista global são elementos dialeticamente interconectados de uma crise estrutural do capital que define nossa época.

A humanidade mundial nunca enfrentou uma situação como a atual. Qual é a saída?

Hoje, algumas pessoas da esquerda dizem que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Como resultado da mudança climática, da COVID-19 e da crise financeira em desenvolvimento, essa ideia finalmente está se invertendo. De repente, ficou mais fácil imaginar o fim do capitalismo do que o fim do mundo. De fato, o fim do capitalismo provavelmente ocorrerá primeiro.

O sistema capitalista fracassou. Agora, a humanidade (em consonância com a ideia de “a liberdade como consciência da necessidade”) terá que passar a lutar para construir um novo mundo mais sustentável e igualitário, apoiando-se nos meios materiais disponíveis e no novo e criativo que podemos oferecer em uma ordem mais coletiva. Mas isso não acontecerá automaticamente.

Isso exigirá o que Samir Amin chamou de “audácia, sempre audácia”. Será necessária uma ruptura revolucionária não apenas com o capitalismo no sentido estrito, mas também com toda a estrutura do imperialismo, que é o campo em que a acumulação hoje opera. A sociedade terá que ser reconstituída sobre uma base radicalmente nova. A escolha que temos diante de nós é nua e crua: a ruína ou a revolução.

 

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