Celibato dos padres, Papa Francisco: com Ratzinger o caso está encerrado. Eugenio Scalfari relata seu encontro com o Papa Francisco

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17 Janeiro 2020

Há alguns dias, falei por telefone com o nosso Papa Francisco para marcar um encontro do qual relataria aos leitores o conteúdo. Nossos leitores sabem já há algum tempo que tenho um relacionamento muito intenso com Sua Santidade, que é capaz de ter amplo conhecimento da fase atual, não apenas na Itália e nem apenas na Europa, mas em todo o mundo. Existe um Deus único, esta é a opinião de Sua Santidade. E o Papa Francisco considera que tem a tarefa de irmanar a todos, não apenas católicos e protestantes, mas todas as religiões que cultivam seu Deus, sujeitando-se às suas regras: existem no mundo outras religiões monoteístas e existem outras politeístas, como acontecia antes. Os deuses dessas religiões frequentemente se ignoravam entre si ou combatiam um com o outro até os limites. Esse era o mundo do passado: hoje não se chega a tais extremos, mas às vezes até se ignora a existência de outras religiões.

Francisco está no oposto desse pensamento e isso explica por que ele encontra algumas vozes contrárias à sua também na religião cristã. Mas ele vai muito além. O Deus único por ele identificado vai muito além. Mas tudo isso é bem conhecido daqueles que estão interessados nessas questões de tipo teológico, que tenham fé ou não sejam crentes (como acontece comigo), mas que estejam interessados em problemas teológicos que têm repercussões na cultura em geral e até mesmo em alguns casos sobre a vida intelectual das pessoas.

Algumas semanas atrás, decidimos nos encontrar e retomar nossas conversações face a face sobre questões que interessam o mundo religioso. Sua Santidade me propôs às 4 da tarde do dia 14 deste mês e em tal data nos encontramos no Vaticano em Santa Marta, o edifício onde ele reside.

Enquanto isso, o papa que renunciou ao cargo depois de exercê-lo por mais de oito anos tinha recebido do cardeal Sarah um pedido de um texto sobre o celibato sacerdotal. Sarah pretendia contrastar as posições de Francisco e esperava que Ratzinger se associasse à sua posição. Bento havia fornecido seu próprio texto e, com base nisso, Sarah enviou para a impressão um livro de dupla assinatura com um conteúdo muito polêmico. Quase todos os principais jornais italianos forneceram com muita evidência essas notícias que, se fosse verdadeira, teria produzido uma crise considerável reunindo sob as bandeiras de um cardeal e de um Papa demissionário, mas ainda plenamente ativo, uma quantidade de bispos mais ou menos descontentes do pontificado atual e, portanto, colocando o Papa Francisco em considerável dificuldade.

Sendo essa a situação, Ratzinger informou que não tomara nenhum partido com Sarah nem jamais havia autorizado um livro com dupla assinatura com ele. Bento então enviou toda a sua solidariedade a Francisco. O nosso papa não havia absolutamente levado a sério a tentativa de um grupo de cardeais às costas de Sarah e aceitou a oferta amistosa e até fraterna de Ratzinger no dia anterior ao nosso encontro.

Quanto a mim, conhecendo a tentativa de Sarah, perguntei no início do nosso encontro com que reação interior estava observando a existência de um grupo em oposição ao seu pontificado. A resposta foi que sempre há alguém contra em uma organização que abraça centenas de milhões de pessoas em todo o mundo. A questão com Ratzinger estava, portanto, encerrada e o pouco ou muito que resta dos opositores deve ser considerado um fenômeno bastante normal em estruturas desse tipo.

Assim começou nossa conversa, com uma questão considerada superada. Apertamos as mãos e nos abraçamos também na sala de Santa Marta, no Vaticano, onde o Papa realiza seus encontros e, depois de trocar notícias recíprocas sobre como estamos e o que pensamos sobre o que está acontecendo ao nosso redor, começamos com uma pergunta minha.

O texto é do jornalista italiano Eugenio Scalfari, publicado por La Repubblica (do qual é fundador), 16-01-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o diálogo.

Santidade, o senhor me disse em nosso último encontro quais são os Santos do passado que venera mais que os outros. Se importaria de repetir essa sua especial devoção?

Lembro-me bem da sua pergunta e também da minha resposta que ainda vale: foram os santos que contribuíram com mais força para a história da Igreja. São Paulo de Tarso, Agostinho bispo de Hipona, Santo Inácio, fundador dos jesuítas, da ordem da qual venho, e Francisco de Assis, o santo do qual tomei o nome. Por que você me fez essa pergunta?

Acima de tudo, Santidade, pelo que Agostino disse. Entre as muitas coisas das quais Agostinho tratou durante a sua vida, teve o tema da Graça. Agostinho era parcialmente um místico. De fato, o tema da Graça afundava no misticismo. Ele havia dito que a Graça poderia ser concedida por Deus a todos os cristãos que a levariam com eles até a morte, a menos que cometessem pecados graves durante toda a vida, perdendo assim a graça recebida. Esta era uma primeira versão, mas houve uma segunda: Deus confiava a Graça apenas a uma parte da humanidade, a outra estava desprovida da mesma, mas no decorrer da vida aquele que tinha a Graça corria o risco de perdê-la e aquele que não a possuía conseguia obtê-la. Essa foi a teoria da Graça de Agostinho; aparentemente, eram duas hipóteses diferentes e, na realidade, eram porque a segunda tornava os homens mais empenhados em seus comportamentos. Eles não tinham a Graça de saída e precisavam conquistá-la; a conquista é muito mais laboriosa do que a perda e, portanto, segundo Agostinho, era um desafio para a humanidade. Como vê essa questão?

Concordo plenamente com o que você diz. Agostinho é um grande santo de grande intelecto. Ele também teve algumas ondas de misticismo que reviveram sua fé e tornaram grande sua figura, tanto por sua teoria da Graça, quanto pelo esforço que ele dedicou ao tentar e conseguir pelo menos três ou quatro vezes viver um relacionamento místico com o Deus criador que está acima de nós. Mas Agostinho não pode ser definido como místico, não como não pode sê-lo Inácio de Loyola, que também teve experiências desse tipo com Deus.

Vossa Santidade nunca teve ondas de misticismo? Francisco de Assis as teve.

Francisco, depois de suas desventuras como jovem briguento com o próximo, transformou-se em místico e pagou com a própria desatinada juventude a vida que teve. Ele foi um místico total, rezava, se identificava com o Pai Eterno, enquanto com seu corpo e alma reunia com ele aqueles que, como ele, pensavam e rezavam, arava a terra do convento, encontrava o Papa da época e pedia que seus seguidores fossem vistos em Roma como uma companhia religiosa. Ele foi até à Terra Santa e também se encontrou com o sultão que a governava. Tudo isso não afetava nem um pouco seu misticismo. Ele o exercitou não apenas com as pessoas, mas também com os animais. Ele amansava os mais ferozes, começando com os lobos selvagens que se aproximaram dele até lamber suas mãos como se fossem cães fiéis ao dono. Morreu deitado em um gramado segurando a mão de Clara, que depois também foi proclamada santa.

Mas o senhor não tem nada de místico, ou eu estou errado?

Não, não tenho nada e por isso tomei o nome de Francisco. Não porque eu queira me tornar um místico, mas porque tenho uma compreensão bem clara em minha mente e alma do que consiste o misticismo. Eu sou movido, como você já sabe porque já falamos sobre isso várias vezes, pelo desejo de uma sobrevivência ativa da nossa Igreja, de atualizar o nosso espírito coletivo para a sociedade civil e moderna. As religiões, e não apenas a católica-cristã, devem conhecer muito bem a sociedade moderna em sua profundidade cultural, espiritual e ativa. Uma modernidade que começa quatro ou cinco séculos atrás. Essas foram as nossas conversas sobre as quais você também escreveu um livro de que eu gostei muito: ‘Il dio unico e la società moderna’ (O único deus e a sociedade moderna, em tradução livre). Também separei um livro para lhe dar e vou lhe entregar quando nos despedirmos daqui a pouco.

Santidade... .

Não me chame assim. Prefiro Papa Francisco ou até simplesmente Francisco. Somos amigos, não somos?

Não garanto que conseguirei, mas lhe agradeço muito. Gostaria de discutir com o senhor quais são os sentimentos profundos que cada um de nós tem dentro de si e que direcionam nossa vida para o bem ou para o mal. Como o senhor chama esses sentimentos?

Você sabe qual é o primeiro e mais importante desses sentimentos, sensações ou modos de existir de nossa alma? O Si próprio e o Eu. Eles praticamente se identificam e esse é um dos sentimentos fundamentais: o Eu ou Si próprio. Foi Deus quem os criou. Ele é o criador do universo, mas nós, humanos, recebemos essa particularidade: o Eu, nós mesmos, consciente de ser criaturas que, no entanto, têm entre as várias faculdades que o Deus criador também nos atribuiu esta também, ser por nossa vez criadores das infinitas, mas microscópicas, criações que nós mesmos somos capazes de fazer.

São todas criações, mas nem sempre são positivas. Isso significa que o Deus criador não entra no mérito, mas concede a faculdade criativa para o bem, mas também para o mal. É o que os católicos chamam de maldade. Na base da questão do Eu está Descartes: cogito, ergo sum. Descartes fez uma revolução com essas três palavras que nos distinguem dos animais, que, mesmo assim, foram uma criação divina. Posso perguntar-lhe, caro Francisco, o sentido dessa nossa autocriação?

Deus nos criou e, entre outras atribuições, existe a de responsabilidade. Portanto, religiosidade, responsabilidade, consciência, mas também ambição, raiva, amor, mas também ódio pelo próximo, em substância a nossa alma contém aspectos positivos e outros negativos. Comparado com quem? Ao próximo que representa muitas vezes os mais fracos e os mais pobres em relação aos ricos e aos fortes.

Então, batizamos a alma que, junto com muitas outras qualificações, também tem a da maldade?

Ao lado da maldade, há também a bondade e a faculdade de liberdade e da igualdade.

Existe também política?

Sim, existe também a política.

Boa ou ruim?

Boa ou ruim, o juízo também é bom ou ruim.

Então Deus tem que suportar?

Hoje de manhã eu celebrei uma missa em Santa Marta e entre as várias questões que abordei havia uma em que eu dizia isso: a autoridade não é comando, mas coerência e testemunho. Jesus tinha autoridade porque era coerente no que ensinava e no que fazia, na maneira como vivia. A autoridade mostra-se nisto: coerência e testemunho.

Posso perguntar-lhe, Santo Padre, o tema da mestiçagem tantas vezes abordado pelo senhor?

É um tópico muito importante nos tempos atuais, mas de alguma forma a mestiçagem sempre existiu. São povos que procuram em todo o mundo lugares e sociedades que possam hospedá-los e até transformá-los em cidadãos do país em que chegaram. Provavelmente ter filhos e esposa naquele país. Dessa maneira, os povos da nossa espécie tendem a criar um povo novo, onde as qualidades e defeitos dos povos originais se combinam para produzir um que se espera melhor. É o tema das emigrações e imigrações, que sempre foi atual e não apenas agora: a população do nosso planeta mudou continuamente em suas características físicas, mentais e de personalidade. O mesmo pode ser dito do mundo em que vivemos. Agora, por exemplo, há o problema do clima. Em algumas áreas, a altura do mar está aumentando, em outras, está diminuindo. É um dos temas de maior interesse que todos devemos nos responsabilizar.

Houve na história batalhas e massacres motivados pelas diferenças religiosas. Em certos casos, a religião provocou guerras e massacres, um dos quais ainda lembramos historicamente: a noite de São Bartolomeu. Aconteceu em Paris em 1572 e os guardas franceses movidos pelo governo massacraram os vinte mil calvinistas. Esse foi apenas um dos casos que se destacou dos demais pela época e pela massa de pessoas envolvidas. O Deus único não interveio para impedir um crime coletivo dessa dimensão? Como se explica isso?

O Deus único havia deixado para as criaturas mortais a liberdade de comportamento.

O homem, portanto, era soberano de si mesmo: não lhe parece, caríssimo Francisco, que o homem criado é ele próprio criador?

Evidentemente Deus criou uma espécie livre para o bem ou para o mal. O homem, se queremos defini-lo com uma palavra, é liberdade e Jesus é o exemplo disso pelo que sabemos sobre ele. O Evangelho de Marcos nos narra sobre Jesus que ensina no templo e a reação que provoca entre as pessoas a sua maneira de ensinar. A diferença está em ter autoridade interior como justamente Jesus: é aquele estilo do Senhor, aquela maestria, por assim dizer, com o qual o Senhor se movia, ensinava, curava, escutava. Coerência. Jesus tinha autoridade porque havia coerência entre o que ele ensinava e o que ele fazia, isto é, como ele vivia. Aquela coerência é a expressão de uma pessoa que tem autoridade. A autoridade mostra-se nisto: coerência e testemunho.

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Nos despedimos. Ele, como sempre faz quando nos encontramos, me acompanha até o portão externo e me ajuda a entrar no carro que me espera. Nos despedimos, ele do lado de fora do portão e eu no carro que vai saindo lentamente. Espero reencontrá-lo em breve e, de qualquer forma, penso nele com muito carinho e ele me retribui com o mesmo sentimento.

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