O nascimento de Jesus, uma nova visão. Perguntas e respostas com John Shelby Spong

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11 Janeiro 2018

O sítio da agência italiana Adista, 04-01-2018, publicou alguns excertos do novo livro de John Shelby Spong, La nascita di Gesù tra miti e ipotesi [O nascimento de Jesus entre mitos e hipóteses], com introdução e edição do Pe. Ferdinando Sudati (Ed. Massari, 2017).

Trata-se de trechos do apêndice, que consistem em uma seleção das cartas às quais o autor respondeu em seu sítio (johnshelbyspong.com). Como observa Sudati, tais excertos assumem a mesma importância que o texto principal do livro.

A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Pergunta – Sou um cristão progressista, alguém que segue o seu ensino e o do meu pastor. De fato, o senhor visitou a nossa igreja, e eu o ouvi falar pessoalmente. Foi uma experiência maravilhosa para mim. O problema que estou tendo neste período de festas [de Natal] é que o ensino, a música e as imagens tradicionais de Natal não estão de acordo umas com as outras. Quando participo das formas tradicionais da liturgia e do imaginário natalícios, eu sinto que abandono o meu conhecimento intelectual. O senhor poderia sugerir como eu posso apreciar tanto o ensino quanto as tradições do Natal sem me sentir em conflito? (Charles Brittain, Oklahoma City, Oklahoma)

Caro Charles, obrigado pela sua pergunta, que é perfeita para a coluna que aparece na véspera de Natal. Não há dúvida de que muitas pessoas assumiram literalmente as imagens usadas por Mateus e Lucas nas suas histórias sobre o nascimento de Jesus (cf. Mt 1-2 e Lc 1-2), mas eu acredito que está bastante claro que nem Mateus nem Lucas pensaram nelas como descrições literais de eventos. A grande maioria dos biblistas compartilha essa perspectiva.

O fato é que as estrelas não viajam através do céu tão lentamente a ponto de homens sábios poderem acompanhá-las; os anjos não irrompem do céu da meia noite para cantar aos pastores das colinas; e os seres humanos não seguem as estrelas para prestar homenagem a um recém-nascido, rei de uma nação estrangeira, especialmente quando o mesmo Evangelho que nos conta essa história também nos diz que Jesus era filho de um carpinteiro. (...).

Uma estrela não conduz magos ao longo de uma estrada a seis milhas de Jerusalém e depois não envolve a casa onde se encontra o menino com uma luz celestial para mostrar a esses magos onde a criança que eles procuram podem ser encontrada. Homens sábios não trazem presentes que simbolizem a realeza (ouro), a divindade (incenso) e o sofrimento (mirra) que marcarão a vida dessa criança. Nenhum sábio é tão presciente.

Virgens não concebem, exceto na mitologia, da qual havia muitos exemplos no mundo mediterrâneo. Reis não ordenam que as pessoas retornem à pátria dos seus antepassados para se submeterem a um censo. Havia 1.000 entre Davi e José, ou cerca de 50 gerações. Davi teve múltiplas esposas e concubinas. Em 50 gerações, os descendentes de Davi poderiam ser contados aos bilhões. Se todos tivessem retornado para Belém, não seria de se admirar que não havia lugar na hospedaria!

Um homem não leva sua esposa, que está grávida de um menino, a percorrer 94 milhas de Nazaré a Belém, no dorso de um asno, de modo que o Messias esperado possa nascer na cidade de Davi. Uma teóloga leiga católica disse sobre esse relato: “Só um homem que nunca teve um filho pode ter escrito essa história!”.

Nenhum rei massacra todos os bebês do sexo masculino de uma cidadezinha na tentativa de se livrar de um pretendente ao seu trono, especialmente se todos naquela localidade deveriam saber exatamente sobre qual casa a estrela parou e na qual os magos entraram. A localização do “pretendente” ao trono de Herodes não teria sido difícil de identificar, se se tratasse de uma história literal que realmente aconteceu.

Certamente, tanto Mateus quanto Lucas estavam conscientes do fato de estarem usando essas histórias para tentar interpretar o poder de Deus experimentado na vida adulta de Jesus de Nazaré. Mateus tirou a história dos homens sábios de Isaías 60, onde se dizia que reis vinham de camelo “ao brilho do surgimento da luz de Deus”. Eles vinham trazendo ouro e incenso de presente. Mateus ampliou essa história com detalhes tirados de outras narrativas bíblicas, como a visita da rainha de Sabá ao rei Salomão e a carga de especiarias (mirra) que ela trouxe consigo (cf. 1Re 10), e a história de Balaão e Balaque de Números 22 -24, em que uma estrela do Oriente desempenha um papel proeminente. Escritos hebraicos tradicionais também usavam uma estrela no céu para anunciar o nascimento dos seus grandes heróis, Abraão, Isaac e Moisés.

Mateus envolveu a sua interpretação em torno da bem conhecida história de Moisés. Esse é o motivo pelo qual ele repetiu a história do faraó que mata os recém-nascidos do Egito no tempo do nascimento de Moisés, transformando-a na história de Herodes que mata os recém-nascidos de Belém no tempo do nascimento de Jesus.

Eis o que os evangelistas, através dessas narrativas, queriam proclamar:

1. A vida humana não poderia ter produzido a presença de Deus que as pessoas acreditavam ter encontrado em Jesus.

2. A importância do seu nascimento era simbolizada pelo fato de ter sido anunciada por sinais celestiais, uma estrela em Mateus e anjos em Lucas.

3. Na vida de Jesus, eles acreditavam que o céu e a terra tinham se encontrado, e que a divindade e a humanidade tinham se fundido.

4. O Messias, para os judeus, tinha muitas facetas. O Messias devia ser tanto um novo Moisés quanto o herdeiro do trono de Davi. O paralelismo com Moisés estava na história de Jesus que é levado por José ao Egito, de modo que Deus o pudesse chamar assim como Deus havia chamado Moisés do Egito. Por outro lado, a descendência de Davi foi a razão pela qual o nascimento de Jesus foi situado no lugar de nascimento de Davi (Belém), em vez de Nazaré, onde Jesus nasceu com toda a probabilidade.

5. Esse Jesus atrai para si o mundo inteiro, até mesmo o mundo pagão dos magos, assim como a vida humilde dos pastores.

Esses são os detalhes interpretativos dos mitos cristãos. Todos foram introduzidos na fé cristã apenas na nona década. Nenhum deles é original à memória de Jesus. Nem Paulo nem Marcos tinham ouvido falar deles. João, cujo Evangelho foi o último a ser escrito, deve ter ouvido falar dessas tradições do nascimento, mas não as inclui e, em duas ocasiões, chama Jesus como o filho de José (cf. Jo 1 e 6).

À luz desses dados, de modo algum os autores dos relatos do Natal na Bíblia pensavam que estavam escrevendo histórias literais. Eles estavam interpretando o significado que encontraram em Jesus. (...)

Até onde eu sei, os adultos não acreditam que existe um Polo Norte literal, habitado por um alegre elfo chamado Papai Noel, que sela as renas ao seu trenó carregado de brinquedos a fim de levar presentes para todas as crianças do mundo na véspera de Natal. Mas mesmo assim nós cantamos: “Rudolf, a rena de nariz vermelho” e “Papai Noel está vindo à cidade” sem revirar as nossas mentes em labirintos intelectuais.

A minha sugestão é que você mantenha a fantasia separada da história e depois entre no imaginário festivo deste período e o aprecie. Sonhe a paz sobre a terra e a boa vontade entre os homens e as mulheres, e depois se dedique a realizar essa visão. Desse modo, você entenderá as intenções dos escritores dos Evangelhos.

Obrigado por ter escrito. Aproveite os feriados e feliz Natal.

John Shelby Spong
24 de dezembro de 2009

* * *

Pergunta – Como a Trindade se encaixa na verdadeira humanidade de Jesus para uma nova história da fé? (Thelma Clarage de Gladstone - Michigan)

Cara Thelma, primeiro eu preciso lhe dizer que o nome Thelma tem um profundo significado para mim. Uma mulher chamada Thelma Denson, de Tarboro, Carolina do Norte, foi a madrinha da minha filha do meio, Katharine, e, com o seu amor, ela transformou o significado do termo “madrinha” para mim para sempre desde então. Então, eu sinto um calor todas as vezes que ouço esse nome. Obrigado por trazer de volta essa memória. (...).

Para chegar à sua pergunta, devemos primeiro reconhecer que a Santíssima Trindade não é uma descrição de Deus, mas sim a descrição de uma experiência humana de Deus. A Santíssima Trindade é uma doutrina, adotada pela Igreja cristã no século IV E.C. como uma forma de processar e entender a sua experiência com Deus. É um produto do pensamento dualista grego que separava Deus da humanidade; o sagrado do profano; a carne do espírito; e o corpo da alma. Era uma mentalidade cultural, e ninguém naquela era da história sabia dar um passo fora desse quadro de referência.

No entanto, esse quadro de referência morreu naquele período histórico que chamamos de Iluminismo, deixando aos cristãos modernos a impossível tarefa de encaixar uma doutrina do século IV em uma visão de mundo do século XXI do qual ela não provém e à qual não consegue falar.

Isso significa que a experiência trinitária está errada? Não, não acho que signifique isso, mas significa que a linguagem trinitária, que usamos quando tentamos nos relacionar com a experiência trinitária, é simplesmente irrelevante.

Quando voltamos ao vocabulário trinitário, descobrimos que o que estamos tentando fazer é encontrar palavras que deem sentido àquela capacidade humana de descobrir o que é “o Além no meio de nós”. Aquilo que nós chamamos de Deus está além de todas as categorias que a mente pode desenvolver. Deus é a realidade última que a mente humana pode abranger, e esta nunca faz isso, senão parcialmente. A palavra trinitária para isso é “Pai”, a fonte, aquilo que dá origem a tudo o que é. Nós também experimentamos Deus como a profundidade última de sentido que existe interiormente. É isso que o símbolo “Espírito Santo” representa. Por fim, nós experimentamos Deus que vem a nós a partir de outras vidas e, mais especialmente, através da vida daquele que chamamos de Cristo. É isso que o símbolo “Filho” representa. Então, a Santíssima Trindade é uma tentativa de dar forma racional às nossas experiências de Deus. Ela não é uma crença a ser acreditada, mas sim uma experiência a ser explorada.

O maior problema ao dar sentido a uma doutrina como a da Santíssima Trindade é que ela foi enquadrada no pano de fundo do pensamento dualista grego do século IV. Esse não é o quadro de referência em que se pensa hoje. Eu, por exemplo, certamente não penso no divino e no humano como categorias distintas e mutuamente excludentes. Ao contrário, eu os vejo de forma holística, como em uma escala ou espectro. O caminho para a divindade, creio eu, é entrar na plenitude do humano. Eu não imagino Deus como externo ao meu mundo. A realidade de Deus para mim sempre se encontra não fora da vida, mas sim dentro das profundezas da própria vida. A divindade é a plenitude do humano. Podemos falar sobre o Sagrado somente a partir de dentro das experiências do humano.

Um dia, a Igreja cristã será forçada a repensar todos os seus construtos teológicos nos termos da nossa visão de mundo contemporânea. A realidade de Deus ainda será eterna, mas o modo como explicamos essa realidade é sempre transitório. Os construtos teológicos da antiguidade, como a doutrina da Santíssima Trindade, sempre serão honrados e respeitados, mas as suas palavras, com o tempo, inevitavelmente, se tornarão irrelevantes ao mundo em que vivemos, porque essas palavras se formaram em uma época que não existe mais.

A Santíssima Trindade é uma tentativa humana de explicar a verdade eterna de Deus. Essa tarefa nunca será cumprida. O tempo consegue fazer com que todas as explicações da antiguidade pareçam grosseiras. Uma Igreja que literaliza suas próprias explicações será uma Igreja que morre quando tais explicações morrem.

John Shelby Spong
21 de maio de 2015

* * *

Pergunta – O que há nesse Jesus que o senhor acha tão fascinante? Quando eu ouço a história de Natal da Bíblia, eu acho que estou ouvindo um conto de fadas. Estrelas não anunciam o nascimento de um ser humano. Anjos não cantam para pastores em uma colina. Virgens não concebem e não dão à luz. Existe algo por trás da antiga mitologia que eu estou perdendo? O senhor pode ainda, com toda a honestidade, se referir a Jesus como o “filho de Deus”? (Katherine, de Richmond, Virgínia)

Cara Katherine, obrigado pelas suas perguntas. Elas não são só importantes, mas também me dão a possibilidade de articular as minhas convicções mais profundas sobre esse Jesus na coluna que será enviada aos meus assinantes na véspera de Natal. Então, vou enquadrar a minha resposta para você na forma de uma meditação de Natal, porque esse Jesus sempre me fascinou e também me atraiu.

A minha autodefinição mais profunda é que eu sou um cristão, e com isso pretendo dizer que, em Jesus de Nazaré, eu acredito que vejo o sentido de Deus de forma mais clara. Eu acredito que foi essa experiência de uma presença divina que irrompe que criou as tradições natalícias a que você se refere na sua pergunta. Certamente, durante este período de festas, elas são onipresentes.

Foi há mais de 2.000 anos que viveu a figura histórica que chamamos de Jesus. Foi uma vida de duração relativamente curta, apenas 33 anos. No máximo, apenas três desses anos foram dedicados a uma carreira pública. No entanto, essa vida parece ter sido uma fonte de admiração e de força para aqueles que o conheceram. Relatos de um poder milagroso cercaram-no.

Acreditava-se que palavras profundas e de sabedoria fluíam dos seus lábios. Amor e liberdade pareciam ser qualidades que marcaram a sua existência. Homens e mulheres viram-se chamados à vida por ele. Aqueles que estavam sobrecarregados de culpa descobriram, de algum modo, a alegria do perdão nele. O solitário, o inseguro, o desvirtuado e o curvado descobriram que ele era uma fonte de paz. Ele possuía a coragem de ser quem ele era. Ele é descrito em termos que o retratam como um homem incrivelmente livre.

Jesus parece não ter tido nenhuma necessidade interior que o levasse a provar a si mesmo, nenhuma ansiedade que centrasse a sua atenção nele mesmo. Ao contrário, ele parecia ter uma capacidade extraordinária de doar a própria vida. Ele dava amor, dava identidade, dava liberdade, e os dava abundantemente, prodigamente, exageradamente.

As vidas tocadas pela sua vida nunca mais foram as mesmas. De algum modo, o segredo da vida, o seu verdadeiro propósito parecia estar revelado nele. Quando as pessoas olhavam para ele, era como se fossem capazes de ver para além dele, e até através dele. Elas viam na vida dele a Fonte de toda a vida que os expandia. Viam no amor dele a Fonte do amor e a esperança da sua própria realização. Esse tipo de poder transformador era algo que elas nunca tinham conhecido antes.

A liberdade sempre dá medo. As pessoas buscam segurança em regras que limitam a liberdade. Então, seus inimigos conspiraram para eliminar a ele e a ameaça que ele representava para eles. De um certo ponto de vista, pode-se dizer que eles o mataram. Quando se olha para a história mais de perto, porém, talvez seja mais acurado dizer que ele encontrou em si mesmo a liberdade de entregar a própria vida e de fazer isso deliberadamente. Ele morreu cuidando daqueles que lhe tiraram a vida. Naquele momento, ele revelou um amor que podia abraçar todas as hostilidades da vida humana, sem permitir que tais hostilidades comprometessem a sua capacidade de amar. Ele demonstrou, de um modo bastante dramático, que não há nada que uma pessoa possa fazer e que não há nada que uma pessoa possa ser que, no fim, torne qualquer um de nós indigno de ser amado ou perdoado. Mesmo quando uma pessoa destrói o doador da vida e do amor, essa pessoa não deixa de ser amada pela Fonte do amor ou de ser chamada à vida pela Fonte da vida.

Essa foi a sua mensagem, ou pelo menos aquilo que as pessoas acreditavam ter encontrado nesse Jesus. Tal vida não podia deixar de transcender os limites humanos. Porque esse tipo de amor nunca pode ser dominado pelo ódio, essa vida nunca pode ser finalmente destruída pela morte.

Devemos nos admirar pelo fato de que as pessoas romperam as barreiras da língua quando tentaram dar um sentido racional a essa experiência de Jesus? Elas o chamaram de Filho de Deus. Elas disseram que, de algum modo, Deus estava nele. As pessoas acreditavam tão profundamente nessas coisas que o modo como percebiam a história foi mudado por ele. Até hoje ainda datamos o nascimento da nossa civilização a partir do nascimento desse Jesus.

Elas acreditavam que ele podia dar amor e perdão, aceitação e coragem. Acreditavam que ele tinha o poder de preencher a vida plenamente. A partir do momento em que as pessoas tendiam a definir Deus como a Fonte da vida e do amor, elas começaram a dizer que, nesse Jesus humano, elas encontraram o Deus santo.

Quando elas começaram a escrever sobre essa experiência transformadora, elas se depararam com um problema. Como a mente humana, que só pode pensar usando o vocabulário humano, podia se dilatar tanto a ponto de abraçar a presença de Deus que elas experimentaram nessa vida? Como meras palavras podiam ser suficientemente grandes para capturar esse sentido divino?

Inevitavelmente, assim que começaram a escrever, elas deslizaram para a poesia e para as imagens. Quando essa vida entrou na história humana, disseram, até mesmo os céus se alegraram. Uma estrela apareceu no céu. Um exército celestial de anjos cantou hosana. Os pastores da Judeia vieram vê-lo. Magos do Oriente viajaram dos confins da terra para adorá-lo. Por estarem certas de terem encontrado a presença de Deus nele, elas deduziram que Deus devia ter sido seu pai, de algum modo único. Certamente, era uma referência humana, mas é tudo aquilo que nós, seres humanos, temos à disposição.

A vida como nós a conhecemos, disseram, nunca poderia ter produzido aquilo que encontramos nele. É por isso que elas criaram tradições sobre o seu nascimento capazes de dar conta do poder que, quando adulto, encontraram nele.

O nosso mundo moderno e muito menos misterioso lê essas narrativas do nascimento e, assumindo uma literalidade da linguagem humana que os escritores bíblicos nunca pretenderam, diz: “Que ridículo! Que coisa inacreditável! Coisas como essas simplesmente não acontecem. Estrelas não aparecem repentinamente à noite para anunciar um nascimento humano. Anjos não entretêm os pastores na encosta de uma colina com cantos celestiais. Virgens não concebem. Essas coisas não podem ser verdadeiras”.

Em certo nível, essas críticas são apropriadas. Coisas como essas não acontecem em sentido literal. Mas isso significa que a experiência, para cuja comunicação foi criada essa linguagem extática, não foi real? Eu não penso assim.

Chegou a hora de que nós, cristãos, quando tentamos falar de Deus, enfrentemos, sem nos colocarmos na defensiva, a inadequação da linguagem humana. Essas histórias nunca foram pensadas para serem tomadas ao pé da letra. Elas foram escritas por aqueles que haviam sido tocados por esse Jesus. É por isso que elas desafiam a nossa imaginação e soam tão fantasiosas e irreais. A nossa mente é tão pé-no-chão que a nossa imaginação se empobreceu. A verdade literal deu lugar a imagens interpretativas. Quando a vida encontra Deus e encontra seu cumprimento, entreveem-se sinais nunca antes vistos, conhece-se uma alegria nunca antes experimentada, e espera-se que os céus cantem e dancem em festa.

A história do Natal, como contada pelos escritores do Evangelho, tem um significado que vai além do racional e uma verdade que vai além do científico. Ela aponta para uma realidade que nenhuma vida tocada por esse Jesus jamais poderia negar. A beleza da nossa história de Natal é maior do que podemos abraçar com a nossa mente racional. Porque, quando se conhece esse Jesus, quando se experimentam o amor, a aceitação e o perdão, quando nos tornamos pessoas íntegras, livres e afirmadas, os céus realmente cantam “glória a Deus no mais alto dos céus”, e sobre a terra há “paz aos homens de boa vontade”. Portanto, nós, cristãos, nos alegramos com a beleza e a maravilha transcendentes dessa história de Natal.

Para aqueles que nunca puseram um pé nessa experiência, convidamo-los a vir até onde estamos e a olhar através dos nossos olhos para esse recém-nascido de Belém. Então, talvez eles também se unirão àqueles que leem essas histórias de Natal, ano após ano, com um único propósito: adorar o Senhor da vida que ainda nos liberta e que nos chama a viver, a amar e a ser tudo o que podemos ser. É por isso que o convite de Natal é tão simples: venham, venham, adoremo-lo.

Como o adoramos? Na minha mente, a resposta a essa pergunta é clara. Eu o adoro não me tornando um religioso ou me tornando um missionário que tenta converter o mundo à minha compreensão de Jesus. Eu faço isso, ao contrário, dedicando as minhas energias à tarefa de construir um mundo em que todos, neste mesmo mundo, possam ter uma oportunidade de viver mais plenamente, de amar mais generosamente e de ter a coragem de ser tudo aquilo que foram criados para ser. Esse é o único modo que eu conheço para reconhecer a Fonte da Vida, a Fonte do Amor e o Fundamento do Ser que eu acredito ter experimentado nesse Jesus.

Como se pode adorar a Fonte da Vida senão vivendo? Como se pode adorar a Fonte do Amor senão amando? Como se pode adorar o Fundamento de todo o Ser senão tendo a coragem de ser tudo o que se pode ser? Não é possível procurar esses dons para si mesmo e depois negá-los a qualquer outra vida.

Portanto, a nossa tarefa como discípulos de Jesus é viver plenamente, amar generosamente e ser tudo o que podemos ser, enquanto tentamos capacitar todas as pessoas, na infinita variedade da nossa humanidade, a viverem plenamente, a amarem generosamente e a serem tudo o que cada pessoa pode ser. Isso também significa que não podemos tolerar qualquer preconceito que possa ferir ou rejeitar o outro com base em qualquer característica externa, seja ela a raça, a etnia, o gênero ou a orientação sexual.

Parece tudo tão simples para mim. Deus estava em Cristo. Essa é a essência daquilo que eu acredito sobre esse Jesus.

Desejo-lhe um abençoado e santo Natal.

John Shelby Spong
22 de dezembro de 2016

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