O retorno da Igreja dos pobres, uma profecia renegada. Artigo de Alberto Melloni

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12 Novembro 2016

"Com o Papa Francisco, tivemos o prepotente retorno da Igreja dos pobres e da pobreza da Igreja, depois de meio século de remoção. Retorno lexical feito com uma (jesuítica) circunspecção. Retorno de governo feito com a escolha de bispos capazes de interpretar essa dimensão nas Igrejas locais, aquelas nas quais e a partir das quais se origina a Igreja universal."

A opinião é do historiador italiano Alberto Melloni, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 10-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A profecia, na tradição bíblica, não é aplicar a visão ao futuro, na tentativa de adivinhar algo. A profecia não é nada disso: é um gesto verbal ou não verbal, que mostra o colocar-se de Deus no dilema da história entre oprimido e opressor.

Nesse sentido, era profética uma frase pronunciada pelo Papa João XXIII no dia 11 de setembro de 1962, a um mês do início do Vaticano II: ele dizia que a Igreja quer ser "a Igreja de todos, mas principalmente a Igreja dos pobres". Não a Igreja pobre, não a Igreja que se ocupa dos pobres: mas a Igreja "dos pobres", aquela que é reunida pelo fato de Deus se colocar no mistério da história.

Esse gesto profético parecia ser um eco de uma busca espiritual muito marginal: a dos teólogos franceses da "Igreja serva e pobre" ou a da identificação com os "mínimos" do Pe. Milani. Não parecia ser um programa eclesial.

Tanto é que, no Concílio, quando o arcebispo Giacomo Lercaro propôs dar como eixo aos trabalhos e à reescrita do Vaticano II o mistério de Cristo pobre, a coisa caiu no vazio: aquele discurso era um gesto profético em uma Igreja imatura.

Depois, o silêncio. O episcopado latino-americano e a teologia da libertação puseram a questão da Igreja nos pobres. Mas o tema desapareceu do magistério, da teologia, da pregação. No lugar da Igreja dos pobres, houve uma "mobilização", que, com uma singular torsão de linguagem, a Igreja também aceitou em chamar de "voluntariado": como se a identificação da Igreja com o destino do pobre não fosse o único modo para se colocar no eixo teológico da história, mas uma coisa que se pode fazer ou não; um irritante "civismo religioso" análogo ao de recolher o lixo.

Depois, o Papa Francisco. E o prepotente retorno da Igreja dos pobres e da pobreza da Igreja, depois de meio século de remoção. Retorno lexical feito com uma (jesuítica) circunspecção. Retorno de governo feito com a escolha de bispos capazes de interpretar essa dimensão nas Igrejas locais, aquelas nas quais e a partir das quais se origina a Igreja universal. Uma decisão que não só irritou e assustou alguns ambientes eclesiásticos, que viam se despedaçarem estratégias para atrair adeptos e devedores de corjas "nas quais e das quais" nasce aquele nada em formato spray que transforma a vida cristã em uma inconsciente ostentação soberba da própria mediocridade.

A escolha de bispos capazes de expressar a Igreja como "Igreja dos pobres" desorientou também os observadores distantes: dos quais veio a expressão sobre os "padres de rua". Dizer que um estudioso provado como Corrado Lorefice em Palermo ou que um homem de experiência internacional como Matteo Zuppi em Bolonha são padres "de rua" é paradoxal.

Nessa tentativa de reduzir as escolhas de Francisco a um casting, destaca-se a figura do cardeal Luis Antonio Tagle, arcebispo de Manila, também ele definido como um "padre de estrada", ignorando o seu perfil e a sua densidade. Que agora estão mais acessíveis graças ao livro-entrevista Ho imparato dagli ultimi. La mia vita, le mie speranze [Aprendi com os últimos. A minha vida, as minhas esperanças], de Lorenzo e Gerolamo Fazzini (Ed. EMI).

No relato da sua vida, Tagle não faz revelações particulares: o exemplo de um padre santo, um seminário que se tornou fervoroso por causa de um bispo audaz, que o faz reitor aos 25 anos; algumas experiências inesperadas como a participação na História do Concílio Vaticano II dirigida por Giuseppe Alberigo e, depois, principalmente, o chamado à Comissão Internacional Teológica presidida por Ratzinger, que lhe abriu as portas para uma carreira aparentemente sem obstáculos (e, como eclesiástico de raça, Tagle não diz ter sido chamado ao ex-Santo Ofício para se desculpar da acusação de ter colaborado com Alberigo, que alguns conservadores acenavam como uma culpa).

Mas a "revelação" é o relato inteiro: o de um homem que, em um trabalho de estudo e com responsabilidades importantes, não deixa de ter uma relação imediata e constante com as pessoas pobres. Na diocese onde cresceu e mesmo agora como cardeal arcebispo, em uma simplicidade de relação que o leva a ser não um "voluntário" que "se ocupa" de pobres coitados, mas um discípulo que, no pobre coitado, encontra o Cristo pobre. A profecia da Igreja dos pobres era esta: a "forma" da Santa Igreja Romana vai se retratar de tudo isso. Mas a profecia não cessa, porque o eixo da história continua sendo esse, e alguns dizem que ele existe ou que vai voltar.

  • Luis Antonio Tagle. Ho imparato dagli ultimi. La mia vita, le mie speranze (org. Gerolamo e Lorenzo Fazzini), Ed. Emi, 160 páginas.

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