“A instalação de termelétricas a gás é um contrassenso”. Entrevista especial com Ricardo Baitelo

A implementação de 8 GW de termelétricas a gás no Sistema Interligado Nacional - SIN e a operação das térmicas em tempo integral entre 2026 e 2030 "deixa claro o tamanho do atraso que o Brasil está propondo", diz o engenheiro

Foto: Reprodução

Por: Patricia Fachin | 26 Julho 2021

 

Uma das polêmicas em torno da Medida Provisória - MP 1.031/2021, referente à privatização da Eletrobras, sancionada pela Presidência da República e convertida na Lei 14.182/2021, é a inserção de 8 GW em termelétricas a gás no Sistema Interligado Nacional - SIN entre os anos de 2026 e 2030. A decisão tem gerado manifestações no setor e entre ambientalistas, especialmente entre aqueles que veem na MP um entrave para o aumento de outras fontes de energia renovável no SIN, como eólica e solar, e um contrassenso porque aumentará as emissões brasileiras de gás carbônico na próxima década.

 

Segundo Ricardo Baitelo, coordenador de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente - Iema, a MP incluiu uma "série de 'jabutis'" que incentiva e beneficia algumas fontes energéticas, como as termelétricas a gás natural. "Chama muita atenção a inclusão de 8 GW de térmicas a gás, sem que elas passem por um processo competitivo de contratação, assim como as outras fontes passam. Se pensarmos que atualmente no Brasil temos mais ou menos 15 GW de gás instalado, esses 8 GW são muito significativos, ainda mais para entrarem no Sistema num período tão curto de tempo. Obviamente, a nossa motivação [de crítica e cobertura] foi o impacto disso para o clima, o montante dessas emissões, considerando que essas usinas não vão operar emergencialmente, mas, sim, em tempo integral", afirma.

 

Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Baitelo explica que o gás natural era uma fonte muito considerada para a transição energética na década passada, mas hoje existem alternativas. "Com certeza, naquele momento, quando não se tinha energia eólica e solar no Brasil, ele era uma opção menos impactante do que o carvão e o combustível, com 60% a menos de emissões. Naquele momento isso fazia sentido, mas hoje não faz mais. Em primeiro lugar, porque as renováveis estão totalmente implementadas e a solar e a eólica são as duas fontes mais baratas do mercado", informa. Outro ponto, argumenta, "é que hoje, concretamente, diferentemente do começo do século, discutimos a descarbonização, e com o Acordo de Paris ficou claro o compromisso que todos os países têm que assumir e o prazo para isso acontecer. O prazo que está sendo colocado na MP se choca frontalmente com o que o Brasil deveria estar apresentando".

 

Ricardo Baitelo (Foto: André Pinnola | Funbio)

Ricardo Baitelo é graduado em Engenharia Elétrica com ênfase em Energia e Automação, mestre em Sistemas de Potência e doutor em Planejamento Energético pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo - USP. Atualmente, é coordenador de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente - Iema.

 

Confira a entrevista.

 

IHU - Como avalia a sanção da MP da privatização da Eletrobras, a maior empresa de energia elétrica da América Latina? Por que e em que contexto o governo optou por esse caminho?

Ricardo Baitelo – Nós do Iema, assim como várias outras instituições, cobrimos a privatização da Eletrobras. A princípio, essa não era uma pauta para muitos atores do setor elétrico, mas passou a ser quando foi incluída uma série de “jabutis” para incentivos específicos de algumas fontes, contrariando a premissa e a organização do setor elétrico de ter a contratação de fontes mais econômicas e, de certa forma, abertas, com uma composição de mercado. Os incentivos foram para as pequenas centrais hidrelétricas, mas, de maneira mais evidente ainda, para o gás natural. Chama muita atenção a inclusão de 8 GW de térmicas a gás, sem que elas passem por um processo competitivo de contratação, assim como as outras fontes passam.

Se pensarmos que atualmente no Brasil temos mais ou menos 15 GW de gás instalado, esses 8 GW são muito significativos, ainda mais para entrarem no Sistema num período tão curto de tempo. Obviamente, a nossa motivação [de crítica e cobertura] foi o impacto disso para o clima, o montante dessas emissões, considerando que essas usinas não vão operar emergencialmente, mas, sim, em tempo integral. Estimamos que esse impacto para as emissões do setor elétrico será bastante significativo.

 

 

IHU - Por que a opção pelas usinas termelétricas a gás neste momento? Foi uma decisão política ou há outras razões para esta escolha?

Ricardo Baitelo – Sem dúvida foi uma decisão política, que chamou a atenção do setor inteiro. Foi um daqueles momentos raros em que todo o setor elétrico se mostrou contrário a essa decisão, com exceção do Ministério de Minas e Energia, que organizou essa medida. Sem dúvida nenhuma, esse movimento de viabilização e de incentivo do crescimento do gás na matriz energética está se organizando há bastante tempo. Podemos dizer que desde o início do milênio o gás recebeu uma atenção, desde o governo de Fernando Henrique [Cardoso] e, com o pré-sal, veio uma nova fase, porque o Brasil tem uma demanda muito grande de gás que não é utilizada. Tem também uma discussão sobre a infraestrutura do gás, que é muito mais costeira do que no interior do país.

Então, toda a articulação foi política e se materializou na MP, mas com alguns pontos absurdos. Além da obrigatoriedade de instalar 8 GW, a MP privilegia a instalação em regiões – com exceção do Sudeste – e em espaços onde não têm infraestrutura de gás. Nesse sentido, a instalação é um contrassenso e não vai acontecer perto do escoamento do gás do pré-sal. Ao contrário, em alguns locais do Nordeste deve-se estimular uma infraestrutura de gasodutos que não existe, o que vai, com certeza, aumentar o custo da eletricidade para todos, porque não será aproveitada uma infraestrutura, mas terá de ser construída uma nova.

 

IHU - Quais são os principais argumentos técnicos, ambientais e econômicos – além desses que você já mencionou – para não optar pelas termelétricas a gás natural, já que elas são uma opção melhor do que a geração a óleo, diesel e carvão?

Ricardo Baitelo – De fato, o gás natural era uma fonte muito mais considerada para a transição energética no começo da década passada. Com certeza, naquele momento, quando não se tinha energia eólica e solar no Brasil, ele era uma opção menos impactante do que o carvão e o combustível, com 60% a menos de emissões. Naquele momento isso fazia sentido, mas hoje não faz mais. Em primeiro lugar, porque as renováveis estão totalmente implementadas e a solar e a eólica são as duas fontes mais baratas do mercado – se pegarmos os números dos leilões que ocorreram há duas semanas e a média do leilão que aconteceu em 2019, veremos que esta é uma realidade dada.

 

 

O outro ponto é que hoje, concretamente, diferentemente do começo do século, discutimos a descarbonização, e com o Acordo de Paris ficou claro o compromisso que todos os países têm que assumir e o prazo para isso acontecer. O prazo que está sendo colocado na MP se choca frontalmente com o que o Brasil deveria estar apresentando. Primeiro, o carvão deveria ser descontinuado, depois o gás e, certamente, na década que vem já deveríamos ter um horizonte para em 2040 descontinuar os projetos fósseis. Com o que está previsto na MP, as últimas usinas vão atuar até 2045. Esse é um ponto que deixa claro o tamanho do atraso que o Brasil está propondo. Enquanto a maioria das economias desenvolvidas já está começando a reduzir [fontes energéticas], o Brasil está pensando em aumentá-las.

Do ponto de vista da economicidade, as duas fontes mais baratas são a eólica e a solar, as quais realmente ajudariam na premissa do governo de motricidade tarifária. O gás não seria uma delas porque o seu preço é muito mais alto, não só considerando a contratação da usina no leilão, mas o quanto o combustível custa depois. Chamo a atenção novamente para essa regra diferenciada [da MP] que é a de as usinas operarem em tempo integral, porque elas vão operar pelo menos 70% do tempo e todo esse custo vai incidir na tarifa do consumidor. O custo do gasoduto seria outro.

Se for aberto mais espaço para a continuidade da contratação das fontes eólica e solar, isso se torna cada vez mais eficiente para a matriz elétrica. A eólica e a solar junto com as hidrelétricas já instaladas são capazes de atender de uma maneira cada vez mais efetiva, ao passo que se for instalada uma quantidade grande de gás natural – pelo menos da maneira como está proposto na MP, de forma inflexível –, o gás entrará na frente na fila de prioridades de pontos que vão alimentar o Sistema e deixará para trás a eólica e a solar. A consequência direta vai ser mais desperdício dessas duas fontes. Então, é um contrassenso técnico e econômico também que, coincidentemente, foi ilustrado pela própria Empresa de Pesquisa Energética - EPE no Plano Decenal [de Expansão de Energia]. A EPE não tinha como prever a MP, mas fez este exercício: o que acontece se exatamente hoje 8 GW de térmicas a gás forem colocados no Sistema de maneira prioritária? Isso vai significar que o espaço para eólica e solar vai diminuir.

 

 

Desperdício de energia

Hoje já existe desperdício de energia, porque como a geração de energia é maior do que a demanda, o Operador Nacional do Sistema está optando por desligar ou não incluir no Sistema a energia solar e a eólica. Esse é um problema de restrição de operação que esses dois setores estão sofrendo desde 2019. A Agência Nacional de Energia Elétrica - Aneel está tentando endereçar e ver como completar os prejuízos dos setores, porque essas vias foram contratadas para gerar essa energia e contavam com o recebimento dessa receita. Mas estão recebendo menos e são milhões em prejuízo. Isso já está acontecendo hoje. Então, com esses 8 GW de gás, os prejuízos vão aumentar mais ainda. A EPE fez essa conta e o desperdício é muito grande: 12 mil GW de eólica e 3.500 GW de solar. Esse é o fator técnico que vai ter consequências.

Obviamente, outra consequência são as emissões de gás carbônico. As emissões do setor elétrico serão bastante impactadas, na casa dos 30%. O contrassenso é justamente ter esse impacto quando, ao mesmo tempo, são desperdiçadas fontes renováveis. O aumento das emissões é totalmente desnecessário e não precisaria acontecer se a matriz elétrica estivesse conjugando o potencial de todas as fontes. Esta é uma lição de casa que tem de ser feita: como utilizar os espaços de eólica e solar dentro do Sistema e como também reforçar a transmissão de eletricidade para que novos projetos possam ser contratados. Hoje não temos só o mercado regulado, ou seja, não se depende somente do governo federal para anunciar os leilões; tem o mercado livre e também existem possibilidades diferentes de leilões organizados por diversos agentes. Ou seja, há um contingente gigantesco de usinas solar e eólica que poderiam ser contratadas e estar operando daqui a dois anos, com os recursos dos últimos dez anos.

 

 

Sempre que há uma crise de racionamento, existem soluções imediatas para gerenciar essa crise, mas existem soluções preventivas que levam a um planejamento. Isso consiste em pensar que por mais que a demanda das concessionárias esteja baixa hoje, é importante ter uma contratação preventiva, porque o risco hidrológico veio para ficar e vai estar presente permanentemente. O governo já admitiu isso em diferentes estudos, mostrando que a vazão das hidrelétricas vai ser cada vez mais impactada.

 

 

IHU – Há resistência no investimento de energia eólica e solar ou os problemas técnicos impedem a expansão dessas fontes na matriz energética no momento?

Ricardo Baitelo – Na verdade o que acontece é uma questão técnica de operação dessas fontes. Como elas são mais flexíveis e dinâmicas, quando existe uma geração superior à demanda, elas são mais próximas de ser desconectadas do sistema. A solar em primeiro lugar e depois a eólica, muito mais do que as térmicas a gás.

A questão do investimento não é um problema. O histórico dos últimos cinco anos mostra que essas duas fontes vão ser as vencedoras, vão sempre contratar mais do que as outras opções, sejam elas termelétricas, térmicas a gás ou hidrelétricas. A questão, então, seria exatamente técnica, de como endereçar isso. Claro que a solução passa por armazenamento, que é um outro setor que está se desenvolvendo e deve ter um crescimento importante no Brasil nos próximos cinco anos, mas hoje, o que tem de ser endereçado é como remunerar esses agentes e como endereçar essa questão do desperdício de energia.

 

 

IHU - Qual é o peso dos estudos sobre as mudanças climáticas nas análises do setor energético brasileiro hoje? Eles são considerados?

Ricardo Baitelo – No passado, eles estavam sendo pouco considerados e subestimados, tanto que a decisão de construir Belo Monte seguiu adiante. Por mais que se mostrasse uma variação muito grande no suprimento de energia e o impacto da hidrelétrica ao longo das décadas, a decisão foi de construí-la. Hoje, dá para dizer que no Plano Decenal de Energia e no Plano Nacional de Energia tem um capítulo estimando que as emissões do setor vão se manter baixas. Mas quando vemos a vulnerabilidade da matriz elétrica, por conta da participação alta de hidrelétricas, tem-se o argumento de intensificar o setor com solar e eólica, que serão muito pouco vulneráveis às mudanças climáticas. Mas aí aparece o outro lado, que é um contrassenso, de aumentar o reforço termelétrico com usinas nucleares e outras fontes. É claro que as fósseis não são uma solução, porque no horizonte de uma década ou duas elas não poderão mais fazer parte da matriz. Mas o governo, ainda assim, considera o gás natural como uma alternativa de transição temporária, mas não sei qual é o horizonte dessa temporalidade.

 

IHU - Levando em conta as mudanças climáticas, em que tipo de matriz energética o Brasil deveria investir a médio e longo prazo?

Ricardo Baitelo – Fizemos alguns cenários energéticos no passado e, felizmente, foram se atualizando as ambições dos Planos Decenais de acordo com a tecnologia e também de acordo com as negociações climáticas. Isso porque no começo não havia a necessidade de descarbonização total da matriz energética, mas a partir do Acordo de Paris já se vislumbrou essa meta e quando ela pode ser alcançada, por mais que os países não estejam colocando na mesa compromissos que cheguem a esse objetivo.

Mas voltando à pergunta: há condições de a matriz brasileira ser totalmente expandida com energia solar, eólica e de armazenamento. É claro que a biomassa também tem um papel, considerando o recurso natural com energia despachada, mas eu colocaria em ordem de prioridade a solar, a eólica, de armazenamento e biomassa. É perfeitamente possível ter uma matriz assim e que comporte o crescimento de demanda de energia que o Brasil ainda vai ter.

Em algum momento, passada a pandemia, e quando a economia se restabelecer, o país vai precisar crescer em termos de energia. E é totalmente possível ter uma matriz com essas fontes. No caso da solar, com geração distribuída, fica mais fácil porque ela pode ser instalada facilmente. Mas existe uma lição de casa importante a ser feita: o planejamento para reforçar o Sistema de transmissão no Sudeste e no Nordeste, principalmente, e também no Centro-Oeste, para que o Brasil fique mais resiliente em outros momentos de risco de racionamento.

 

 

IHU - Muitos especialistas se referem à transição energética como uma "transição energética justa e igualitária". Que peso ela poderá ter no desenvolvimento dos países, especialmente daqueles mais pobres e que argumentam pela necessidade de continuar com uma matriz energética fóssil por mais tempo para garantir o desenvolvimento econômico e social?

Ricardo Baitelo – Esse é um ponto bastante importante e a questão da transição justa está nos valores do Iema, assim como está presente na maior parte das outras organizações ambientalistas. Essa discussão do clima, especialmente no Norte global, sempre tem que ser feita com muito cuidado, porque ainda existem muitos países em desenvolvimento com grandes necessidades energéticas, mas também de desenvolvimento social, o qual precisa acontecer para que essa transição possa ser feita.

No passado, elaboramos alguns cenários energéticos, deixando claro que a transição acontecesse trazendo benefícios sociais, mostrando que a redução da dependência do óleo e do gás traria benefícios. A própria Associação Internacional de Energias Renováveis também destaca a geração de emprego por causa das energias renováveis, ou seja, a descarbonização também vem com outros benefícios. Em algumas discussões estaduais, ela precisa ser feita com cuidado. Esse plano de transição tem que ser estudado e implementado com responsabilidade, sabendo como será feita também uma transição dos empregos. Se formos colocar na ponta do lápis, a diferença é bastante ampla em relação aos empregos que o setor solar vai gerar em comparação com os empregos que o setor de carvão ou nuclear geram. Mas esse planejamento precisa ser feito de maneira pensada, e é isso que está sendo discutido tanto nos EUA, onde existem grandes bolsões de carvão, quanto em relatórios, como o que foi lançado recentemente pelo World Wide Fund for Nature - WWF, mostrando outros cenários internacionais no Chile e na Espanha. Com planejamento, é possível chegar a um ótimo resultado.

 

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