O importante e urgente é ofertar vacinas o mais rápido possível. Entrevista especial com Júlio Croda

"A pandemia não vai passar naturalmente. Sem medidas efetivas, a tendência é que vejamos um cenário pior nas próximas semanas", alerta o pesquisador da Fiocruz

Foto: EBC/Marcello Casal Jr.

Por: Patricia Fachin e João Vitor Santos | 09 Março 2021

"Neste momento em que falhamos nas medidas preventivas e não temos vacinas, a única opção é o lockdown de no mínimo 15 dias". É assim que Júlio Croda, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz e ex-integrante da equipe do então ministro Luiz Henrique Mandetta, à frente do Ministério da Saúde no início da pandemia de Covid-19, em março do ano passado, reage ao atual estágio da crise sanitária no país.

 

O lockdown, adverte, deveria ser adotado como foi feito em outros países, garantindo o isolamento de 70% da população. "É importante ressaltar que no Brasil nunca tivemos lockdown, nunca chegamos a essa taxa de isolamento. Portanto, precisamos ter uma decisão forte, a qual deveria ter o apoio do governo federal, para que estados e municípios possam impor esse distanciamento tão necessário na conjuntura atual, em que estamos assistindo aos hospitais superlotados, com falta de leitos de UTI e fila para internar os pacientes", afirma. Se nada for feito, adverte, "poderá haver cenas muito parecidas com as que aconteceram em Manaus: pessoas morrendo sem nenhuma assistência, em seus domicílios, aguardando um leito hospitalar".

 

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Croda comenta as dificuldades da atual crise, seu agravamento neste e no próximo mês, a "politização" e a falta de responsabilidade do governo federal em sugerir e apoiar medidas preventivas impopulares do ponto de vista econômico e social. "O governo federal deveria se corresponsabilizar e justamente apoiar estados e municípios nas medidas impopulares, que são extremamente necessárias nos momentos mais críticos, quando a taxa de ocupação dos hospitais chega a mais de 80%”.

 

Lamentavelmente, avalia, a gestão da crise sanitária do governo Bolsonaro e as afirmações do próprio presidente encontram respaldo em uma parcela expressiva da sociedade brasileira, a exemplo do que se pôde observar no país durante as festas de final de ano, no período de férias e veraneio e durante o carnaval. "Uma parcela da população poderia, sim, adotar as medidas preventivas, mas nega isso, apesar de toda a sua formação técnico-científica, de ser uma classe social mais elevada, com uma compreensão mais adequada do cenário epidemiológico, do impacto da doença na sociedade. Mas essa parcela da população nega a importância da doença e suas consequências, o que leva a esse cenário individualista da nossa sociedade e também a um discurso individualista que faz com que não se tenha nenhuma medida preventiva realmente efetiva", observa.

 

E acrescenta: "As atividades de lazer deveriam ser todas canceladas. Não existe motivo para ter boates, praias, bares abertos, em aglomeração, em um momento em que o país registra 1.500 óbitos de média móvel diária. Essa avaliação e essa falta de empatia é uma característica da sociedade brasileira e isso, de alguma forma, reverbera no próprio poder público e na própria liderança da pandemia no discurso do presidente. Se não tivéssemos esse reflexo na nossa sociedade, se não tivéssemos apoio da sociedade a esse tipo de discurso, muito provavelmente o presidente não adotaria essa postura".

 

Júlio Croda (Foto: Agência Brasil/Wilson Dias)

Júlio Croda é graduado em Medicina pela Universidade Federal da Bahia - UFBA e doutor pela Universidade de São Paulo - USP. É professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS e especialista em C&T Produção e Inovação em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, Mato Grosso do Sul. Atualmente é coordenador adjunto da área de medicina II da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes. Foi diretor do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis - DEIDT da Secretaria de Vigilância em Saúde - SVS, do Ministério da Saúde, de 2019 a 2020.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - No mês de março, completou-se um ano do anúncio da pandemia de Covid-19 no país. Que balanço o senhor faz da crise e da gestão da crise sanitária no país ao longo desse ano?

Júlio Croda – Após um ano de pandemia no Brasil, o balanço que faço é que o novo coronavírus superou as projeções de março de 2020, quando eu ainda estava no Ministério da Saúde: projetavam-se 180 mil óbitos no ano de 2020 e ocorreram pouco mais de 200 mil óbitos. Ou seja, não ocorreu uma coordenação central do ponto de vista das medidas necessárias para evitar esses óbitos. Houve muita politização da resposta à pandemia e não houve uma união entre os diversos poderes no sentido de propor medidas efetivas de controle da doença. O que vimos foram estados e municípios respondendo cada um de uma forma, alguns sendo mais efetivos nessa resposta, outros, menos, a depender da adoção das medidas preventivas, da comunicação eficiente e do aumento da testagem e de leitos de Unidade de Terapia Intensiva - UTI.

 

 

IHU On-Line - O senhor acompanhou a chegada do novo coronavírus no Brasil, quando estava no Ministério da Saúde e depois acabou deixando a equipe. Naquele momento, o que se projetava em termos tanto de avanço quanto de controle da doença? Das previsões feitas à época, o que se confirmou e o que lhe causou surpresa?

Júlio Croda – Naquele momento tínhamos a impressão, pelas projeções, que a pandemia iria impactar o sistema de saúde e gerar um número excessivo de óbitos no Brasil. Trabalhávamos com as possibilidades de regular o contato entre as pessoas através de medidas preventivas, mas também por meio de medidas coletivas restritivas, a depender da necessidade. Foi esboçado, através do Boletim 5, uma proposta dessas medidas. Só que após a minha saída do Ministério da Saúde, como também a do Wanderson [Oliveira] e a do ministro [Luiz Henrique] Mandetta, não foi adotada qualquer orientação técnica acerca de que medidas deveriam ser adotadas pelos estados, por quanto tempo e quais indicadores deveriam ser analisados.

Com o negacionismo do ponto de vista técnico-científico do que deveria ser feito em relação ao combate à pandemia e com o surgimento de falsos tratamentos, como o Kit Covid – que na prática foi demonstrado sem função específica por diversas publicações e organismos internacionais –, foram deixadas de lado as medidas preventivas e isso impactou a vida dos brasileiros, porque nunca tivemos o controle efetivo da doença. Em alguns momentos houve aumento de leitos de UTIs, mas nunca conseguimos fazer, como alguns países da Europa e da Ásia fizeram, medidas restritivas para a redução drástica do número de casos. Sempre trabalhamos num patamar muito elevado, o que fez com que o Brasil fosse o segundo país em número de óbitos e agora, mais recentemente, o país tem uma média móvel ascendente enquanto o mundo trabalha com uma média móvel descendente.

 

 

IHU On-Line - Quais são os principais gargalos do Brasil no enfrentamento da pandemia? Desses gargalos, o que é mais urgente de resolver neste momento que estamos vivendo?

Júlio Croda – Nós tivemos vários gargalos ao longo do enfrentamento da pandemia. Mas neste momento, depois de constatarmos a dificuldade de se implementar as medidas coletivas para evitar óbitos, principalmente nos estados onde existe colapso do sistema de saúde – e agora vivemos o pior momento da pandemia, com mais de 18 capitais, segundo o relatório da Fiocruz, com taxas de ocupação de leitos de UTI acima de 80% –, o importante e urgente é ofertar vacinas o mais rápido possível para o grupo prioritário. É isso que vai evitar a pressão no serviço de saúde e permitir menos impacto social e econômico.

 

 

IHU On-Line - Na primeira semana de janeiro deste ano, o Brasil registrou 200 mil mortos pela Covid-19. Dois meses depois, o número de mortes ultrapassa 260 mil e o país vive o pior momento da pandemia. A que atribui essa situação?

Júlio Croda – Sim, o país vive o pior momento da pandemia. Batemos recordes em termos de óbitos diários, chegando perto de dois mil, e estamos com uma média móvel de óbitos ascendente. Ultrapassamos a média da primeira onda, de mil óbitos diários, e estamos chegando a 1.500 óbitos diários.

Essa situação se deve basicamente a três pontos principais:

1. Falta de medidas preventivas individuais e coletivas, o que aumenta a transmissão. A população está aderindo menos às medidas preventivas, como uso de máscara e distanciamento. Tivemos um exemplo claro disso no carnaval: pela plataforma do Google foi demonstrado que a terça de carnaval foi o dia em que mais teve aglomeração no Brasil desde o início da pandemia;

2. Surgimento de uma nova variante em Manaus, a P1, que se espalhou rapidamente e que é pelo menos duas vezes mais transmissível do que as variantes antigas. Considerando isso, teoricamente, precisaríamos do dobro das medidas preventivas para ter o mesmo impacto que obtivemos no passado no controle da transmissão. Ou seja, a tendência é acelerar a transmissão da doença porque diminuímos as medidas preventivas;

3. Falta de vacina. A vacinação está muito lenta no momento mais crítico da pandemia. Muito provavelmente vamos viver os meses de março e abril de forma bastante complicada, com dificuldades de vacinar o grupo prioritário que foi estabelecido, de aproximadamente 50 milhões de pessoas. Para vacinar esse contingente, precisaríamos de 100 milhões de doses e estamos longe de alcançar essa meta.

 

 

IHU On-Line - Em janeiro e fevereiro, muitas praias do país ficaram lotadas. Considerando esse fato, o que se pode esperar em termos de novos casos de Covid-19 para os próximos meses? Ainda vamos ver os efeitos da aglomeração ocorrida nesse período ou a atual situação já é um efeito disso?

Júlio Croda – Janeiro e fevereiro foram períodos de férias, de viagens, de carnaval e de muitas aglomerações. Houve intensificação do contato entre as pessoas no contexto de uma nova variante e então entramos nessa curva exponencial de aumento de óbitos. Ainda veremos, provavelmente, entre março e abril, o impacto disso no sistema de saúde. Março de 2021 provavelmente será o pior mês da pandemia no Brasil e vamos ter que lidar com essa situação muito pontualmente. O enfrentamento desse quadro vai depender de cada gestor local e estadual e da sua habilidade de dialogar com a sociedade e impor as medidas restritivas sem apoio do governo federal.

 

 

IHU On-Line - Algumas instituições estão defendendo lockdown para os estados que se encontram em situação de emergência. Esse é o melhor caminho neste momento? Como reagir ao atual quadro da doença, diante da atual conjuntura, em que faltam vacinas e a capacidade dos hospitais está no limite?

Júlio Croda – Neste momento em que falhamos nas medidas preventivas e não temos vacinas, a única opção é o lockdown de no mínimo 15 dias. Esse lockdown deveria ser feito da mesma forma que fizeram os países europeus, onde houve uma taxa de isolamento de 70%. É importante ressaltar que no Brasil nunca tivemos lockdown, nunca chegamos a essa taxa de isolamento. Portanto, precisamos ter uma decisão forte, a qual deveria ter o apoio do governo federal, para que estados e municípios possam impor esse distanciamento tão necessário na conjuntura atual, em que estamos assistindo aos hospitais superlotados, com falta de leitos de UTI e fila para internar os pacientes.

A pandemia não vai passar naturalmente. Sem medidas efetivas, a tendência é que vejamos um cenário pior nas próximas semanas. Poderá haver cenas muito parecidas com as que aconteceram em Manaus: pessoas morrendo sem nenhuma assistência, em seus domicílios, aguardando um leito hospitalar.

 

 

IHU On-Line – Que conhecimento se tem até o momento sobre a variação P1 do coronavírus? Ela tem contribuído para o aumento exponencial de casos da doença no país, especialmente entre jovens?

Júlio Croda – A transmissão do coronavírus se dá especialmente pelos jovens: 60 a 80% das novas infecções são entre jovens. Entretanto, quem adoece são os idosos: 60% a 80% são pessoas acima de 80 anos. Ou seja, a transmissão está relacionada aos jovens e o adoecimento está relacionado às pessoas mais idosas.

A nova variante, a P1, é mais transmissível e leva mais pessoas a adoecerem e a precisarem do serviço de saúde ao mesmo tempo. Esse é o novo desafio do ponto de vista da organização do sistema de saúde, porque geralmente não existe capacidade de aumento de leitos em uma ou duas semanas, como foi visto em Manaus, em Chapecó, em Uberlândia e em Araraquara. É muito difícil lidar com essa situação de uma variante mais transmissível e com o adoecimento do dobro do número de pessoas.

Então, a principal questão em relação à P1 é a transmissibilidade mais do que propriamente o acometimento de jovens. Observamos, em alguns relatos, nada ainda cientificamente confirmado, que ela acomete pacientes jovens do ponto de vista da internação, mas esse pode ser um efeito do aumento do número de infecções. Ou seja, proporcionalmente há mais jovens admitidos nos hospitais e nas UTIs porque houve um número maior de pessoas infectadas. Então, isso pode estar ocorrendo muito mais por conta da transmissibilidade do que propriamente por um acometimento preferencial numa faixa etária.

 

 

IHU On-Line - Médicos relatam que os pacientes que estão chegando aos hospitais são mais jovens e estão em estado mais grave. Que informações o senhor tem sobre esses casos?

Júlio Croda – Se existe acometimento maior em número de casos, pode ter mais jovens sendo internados, mas é necessário investigar melhor a patogênese propriamente em faixas etárias mais jovens. Ainda não temos informações científicas publicadas até o momento em relação à diferença de acometimento das diferentes variantes do coronavírus, principalmente em jovens, ou seja, se pode acometer mais jovens ou levá-los a um estado mais grave da doença. É importante que tenhamos estudos comparativos que possam confirmar o relato que vem sendo feito a respeito da nova variante.

 

IHU On-Line - Como o senhor avalia a atuação do Ministério da Saúde e do próprio presidente Bolsonaro na gestão da crise sanitária? Falta uma estratégia de enfrentamento da pandemia que leve em conta as particularidades de cada região e os perfis epidemiológicos?

Júlio Croda – O Ministério da Saúde deveria ter uma função técnica de orientação e de apoio a estados e municípios na gestão da crise sanitária, principalmente, informar quais são as regiões mais críticas e que estratégias deveriam ser adotadas a depender do perfil epidemiológico de cada região. Essa orientação envolveria, sim, um lockdown, mas também outras medidas restritivas que pudessem, de alguma forma, controlar a doença a partir dos dados epidemiológicos fornecidos. Além disso, o Ministério deveria dar suporte social nas medidas mais duras em relação a restrições, como lockdown. Por exemplo, é necessário auxílio emergencial para a população mais pobre permanecer em sua residência, apoio das Forças Armadas para garantir a ordem nos locais em que fossem impostas medidas mais restritivas, mas essa coordenação e apoio não existiram.

 

 

IHU On-Line - De outro lado, como avalia o movimento antivacina e as próprias declarações do presidente, que coloca em dúvida a eficácia da vacina e incentiva as pessoas a não se vacinarem? Como conscientizar as pessoas da importância da vacinação?

Júlio Croda – É importante uma comunicação efetiva em relação à vacinação. Sabemos que existe o movimento antivacina, mas no Brasil ele não é tão forte. O Brasil, conforme pesquisas mundiais, é o segundo país com maior adesão a vacinas. É totalmente desnecessária a fala do presidente no sentido de desacreditar uma vacina específica ou a origem da vacina. Declarações de que se a pessoa tomar a vacina de RNA ela poderá “virar um jacaré” ou de que a vacina chinesa, por ser chinesa, teria uma qualidade inferior, geram desconfiança e podem levar à resistência das pessoas à vacinação e, de alguma forma, impactar a perpetuação da pandemia, a pressão sobre o sistema de saúde e gerar mais sofrimento na nossa sociedade. É importante, claramente, termos comunicações efetivas e isso deveria ser liderado pelo Ministério da Saúde. Como isso não é possível neste momento, estados e municípios devem estimular a vacinação através de campanhas publicitárias assertivas de convencimento da qualidade das nossas vacinas, principalmente daquelas aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa.

 

 

IHU On-Line - Alguns pesquisadores têm denunciado e relatado um aumento da interferência política na saúde pública durante a crise sanitária. O que a sua experiência no Ministério da Saúde revela a respeito disso e o que o senhor tem observado sobre este aspecto?

Júlio Croda – Deveríamos ter uma resposta técnica, seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde - OMS, assim como outros países fazem, principalmente aumentando a testagem, o distanciamento, o isolamento, a lavagem das mãos, evitando aglomerações. Também deveria haver uma mensagem clara de que, quando fosse necessário, seriam instituídas medidas mais restritivas e temporárias, como o lockdown, além do aumento e do estímulo à vacinação.

É muito difícil comentar essa situação porque sabemos que existe uma politização da resposta à pandemia, mas no sentido de não se responsabilizar, principalmente, pelas medidas preventivas que são impopulares do ponto de vista social e econômico, e que são impostas por estados e municípios. O governo federal deveria se corresponsabilizar e justamente apoiar estados e municípios nas medidas impopulares, que são extremamente necessárias nos momentos mais críticos, quando a taxa de ocupação dos hospitais chega a mais de 80%. Não existe recurso financeiro nem de contratação de pessoal disponível para dar conta do aumento de casos, que pode acontecer sem nenhum controle preventivo da doença e no contexto de uma nova variante. Nesse sentido é importante, sim, um direcionamento claro.

 

 

IHU On-Line - O senhor tem acompanhado esta fase da pandemia junto às comunidades indígenas? Qual é a situação dessas comunidades?

Júlio Croda – Em relação às comunidades indígenas, temos o seguinte cenário: as duas maiores comunidades se localizam no Amazonas e em Mato Grosso do Sul. Temos dificuldade de acesso aos serviços de saúde e observamos como a doença teve um impacto importante nas pessoas acima de 60 anos: houve um quadro elevado de morte de líderes indígenas, que são responsáveis pela tradição oral dessas comunidades. Portanto, a Covid-19 pode impactar culturalmente essas comunidades do ponto de vista da perpetuação de sua tradição através da oralidade – esse é um aspecto importante. Geralmente, essas comunidades estão afastadas dos grandes centros e de grandes hospitais, e o acesso aos leitos de UTIs é mais difícil.

Mais recentemente, houve uma adesão da população à vacinação e 70% já foi vacinada, mas deveríamos chegar a um contingente de pelo menos 80% da população vacinada. No entanto, em algumas regiões de Mato Grosso do Sul há uma politização da vacinação e muitos líderes religiosos estão desestimulando o uso de uma vacina específica, de origem chinesa. Esse discurso é liderado pela fala do presidente em desacreditar algumas vacinas específicas. É importante trabalharmos uma comunicação mais efetiva com essa população, com uma linguagem própria e com conceitos culturais mais adaptados a sua realidade.

 

IHU On-Line - A Covid-19 poderá se tornar uma doença endêmica no Brasil? Quais as consequências disso e como deveremos conviver com essa doença depois da pandemia?

Júlio CrodaA Covid-19 vai se tornar endêmica em todo o mundo, não somente no Brasil. As consequências disso é que teremos de conviver com a doença nos próximos anos, assim como convivemos com a influenza. Muito provavelmente, com a aquisição da imunidade específica, cada vez menos teremos doenças mais graves e cada vez mais teremos acesso à vacina, que a depender das novas variantes, deverá ser atualizada anualmente ou a cada dois anos para garantir uma imunidade efetiva contra o vírus. Isso é o que esperamos para os próximos anos.

A doença não vai desaparecer, vamos continuar convivendo com ela e, de alguma forma, ainda vai gerar um impacto importante na sociedade, assim como foi a influenza e a H1N1 em 2009. O vírus vai permanecer e acometer uma parcela da população, mas não levará a uma crise sanitária como a que vivemos atualmente. A partir do momento em que tivermos um acesso mais efetivo às vacinas e essas forem atualizadas anualmente, o impacto da Covid-19 será reduzido.

 

 

IHU On-Line - O senhor já declarou algumas vezes que há falta de empatia entre as pessoas para lidar com a pandemia. A que o senhor atribui essa falta de empatia?

Júlio Croda – Em parte, há uma falta de liderança do governo no processo de unir a sociedade numa resposta mais efetiva de preservar vidas. Mas essa atitude liderada pelo presidente tem suporte na nossa sociedade. Uma parcela expressiva da população mantém interesses individuais em detrimento dos interesses coletivos, principalmente quando falamos a respeito das diferentes classes sociais no Brasil.

Sabemos que quem mais adquire Covid-19 é o trabalhador informal que não consegue fazer home office. A população mais pobre também morre mais por conta da exposição maior à doença, mas também por conta da falta de acesso aos serviços de saúde, uma vez que existe uma diferença de qualidade nesse acesso em relação à renda.

 

 

Apoio social ao discurso do presidente

O discurso de parte da sociedade que apoia a gestão da crise pelo governo é o de que as pessoas não podem morrer de fome, mas, na prática, o que se observa é que não existe nenhuma empatia, do ponto de vista das ações sociais, para proteger a população e permitir que ela adote medidas preventivas. Não existe distribuição de máscara para os mais pobres, não existe auxílio emergencial mais efetivo, neste que é o pior momento da crise, para que haja uma adesão adequada da população mais pobre ao isolamento domiciliar e à manutenção das pessoas em suas residências por falta de renda, não existe aumento dos serviços de transporte público para diminuir a superlotação dos trens, ônibus e metrôs; ou seja, não existe uma sensibilidade maior no sentido de proteção da população mais pobre e vulnerável. Em contrapartida, a população de alta renda continua se aglomerando de forma habitual em bares, restaurantes, festas, levando os hospitais privados a terem a sua capacidade atingida em termos de atendimento.

 

 

Então, não é uma questão somente de um discurso pronto de que a população não pode ficar sem renda. Vemos pessoas de classe alta, que teriam condições de praticar o isolamento, de diminuir a transmissibilidade, de poupar leitos para as populações mais pobres, sendo acometidas pela doença principalmente por falta de empatia. Uma parcela da população poderia, sim, adotar as medidas preventivas, mas nega isso, apesar de toda a sua formação técnico-científica, de ser uma classe social mais elevada, com uma compreensão mais adequada do cenário epidemiológico, do impacto da doença na sociedade. Mas essa parcela da população nega a importância da doença e suas consequências, o que leva a esse cenário individualista da nossa sociedade e também a um discurso individualista que faz com que não se tenha nenhuma medida preventiva realmente efetiva.

Quando colocamos tudo isso na balança e observamos os exemplos de outros países que trabalharam melhor o equilíbrio entre o impacto econômico-social e o impacto na área de saúde, percebemos que poderíamos ter um meio-termo. Isso poderia ser alcançado por meio de apoio social do governo a medidas essenciais, de apoio da sociedade às populações mais pobres e vulneráveis, de compreensão de que algumas pessoas vão ter que sair para trabalhar, invariavelmente, para manter sua renda, mas outras pessoas poderiam permanecer nas suas residências. Mas os exemplos que observamos durante o carnaval, nas festas de final de ano, nas praias, é a negação completa da realidade e a falta de empatia no sentido de prevenir a transmissão da doença e o acometimento maior de pessoas.

As atividades de lazer deveriam ser todas canceladas. Não existe motivo para ter boates, praias, bares abertos, em aglomeração, em um momento em que o país registra 1.500 óbitos de média móvel diária. Essa avaliação e essa falta de empatia é uma característica da sociedade brasileira e isso, de alguma forma, reverbera no próprio poder público e na própria liderança da pandemia no discurso do presidente. Se não tivéssemos esse reflexo na nossa sociedade, se não tivéssemos apoio da sociedade a esse tipo de discurso, muito provavelmente o presidente não adotaria essa postura. Mas existe um apoio expressivo e isso é muito mais estrutural, vem da nossa formação enquanto sociedade, o que é muito difícil de mudar.

 

 

IHU On-Line - O senhor está, junto com pesquisadores da Fiocruz, do Hemosul da Universidade Federal da Grande Dourados e da Universidade de São Paulo - USP/Ribeirão, trabalhando no estudo de uma terapia feita com o plasma sanguíneo de pacientes que já estão curados. Pode nos explicar do que se trata e quais são as expectativas em relação a essa terapia?

Júlio Croda – Essa pesquisa incluiu apenas pacientes graves que foram para a UTI em 72 horas, com menos de dez dias de sintomas. O estudo está sendo concluído, mas para esse tipo de paciente, o estudo não mostrou a eficácia necessária na prevenção de desfechos graves. Estamos terminando de escrever o artigo e vamos submetê-lo às revistas científicas. Mas a grande discussão é que as terapias baseadas em monoclonais ou plasma de doadores são efetivas quando utilizadas no início da doença. Trata-se de uma imunização passiva, através da transferência de anticorpos, enquanto a imunização ativa é aquela feita por meio das vacinas.

Atualmente, acreditamos que a terapia deveria ser feita nos primeiros três dias da doença, porque diminuiria a carga viral e, consequentemente, de alguma forma, a evolução da doença. Entretanto, essa é uma terapia extremamente cara e ainda não temos variáveis que estratifiquem os pacientes com maior risco de evoluir para doenças graves nos primeiros três dias após a infecção. Precisaríamos de marcadores biológicos mais efetivos para identificar os pacientes com maior risco de evolução, para que essa terapia fosse ministrada nesse grupo precocemente.

 

IHU On-Line - Que cenário o senhor vislumbra para o ano de 2021 em relação à pandemia?

Júlio Croda – O primeiro semestre ainda será bastante complicado por causa da falta de vacinas no contexto de uma nova variante. O primeiro semestre de 2021 será pior do que o primeiro semestre de 2020. Acredito que a partir do segundo semestre de 2021, com acesso à vacinação mais ampla, possamos ter um impacto no número de óbitos no Brasil.

 

 

Temos dificuldade de impor medidas mais restritivas, com uma baixa adesão da população a essas medidas e, portanto, a nossa esperança se baseia no acesso a vacinas. Existe um consenso neste momento: o governo federal, os governos estaduais e municipais acreditam que a vacinação seja a melhor forma de preservar a vida e de retomarmos as atividades sociais e econômicas, reduzindo os impactos sociais e econômicos. Acreditamos que este será o caminho: através da vacina vamos diminuir de alguma forma o impacto da doença a partir do segundo semestre de 2021.

 

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