Além da cortina de fumaça da disputa entre EUA e China, tecnologia 5G vulnerabiliza as garantias individuais e amplia a vigilância pessoal. Entrevista especial com Diego Vicentin

Pesquisador da Unicamp destaca que a disputa sobre a tecnologia 5G que vai prevalecer é, antes de tudo, mais política que técnica

Foto: Reprodução Teldat Home

Por: Ricardo Machado | 22 Julho 2020

As questões geopolíticas sobre o futuro da Inteligência Artificial e da Internet das coisas (IoF, na sigla em inglês) colocou no centro do ringue geopolítico, uma vez mais, China e Estados Unidos na disputa pela hegemonia global. O softpower da vez é a tecnologia 5G, que tem pouco a oferecer aos usuários, quando comparada às contrapartidas que oferecerá às grandes empresas e aos Estados. “As redes devem servir para dar conta de demandas corporativas da indústria e do setor de serviços como, por exemplo, carros conectados e autônomos e sistemas de videovigilância. Isso vem sendo amplamente colocado dentro da ‘quarta revolução industrial’ (ou ‘indústria 4.0’)”, escreve Diego Vicentin, professor e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Quanto às diferenças entre as tecnologias chinesa e estadunidense, o professor alerta que, até o momento, o que se sabe não sugere a existência de grandes distinções tecnológicas entre os modelos, mas que o ponto essencial é a questão política, da possibilidade de controle das informações. “O desconforto do governo dos EUA, especialmente da administração Trump, se dá em relação à importância crescente que as empresas chinesas estão assumindo no mercado e, por consequência, da posição privilegiada que ocupam (em termos de espionagem e vigilância, por exemplo) ao definir parte da infraestrutura informacional inclusive dentro dos EUA”, complementa.

Esta possibilidade do controle biopolítico tem na pandemia do coronavírus uma espécie de catalisador e tubo de ensaio para experiências pouco preocupadas com direitos civis. “Monitorar e controlar o contágio do coronavírus para reduzir os impactos da pandemia implica monitorar e controlar populações (virais e humanas) por meio da extração, tratamento e análise de dados que, por sua vez, são funções desempenhadas atualmente por sistemas de inteligência artificial”, descreve Vicentin. “A emergência da pandemia, então, torna o cenário favorável a experimentos que se beneficiam da utilização maciça de dados populacionais considerados sensíveis, como sua localização, sua temperatura corporal e com quais pessoas teve contato. Trata-se de gerir a vida, de governar corpos de indivíduos e populações e, consequentemente, toda intervenção nesse plano levanta questões sobre direitos básicos”, pondera.

Diego Jair Vicentin (Foto: Reprodução Academia Edu)

Diego Jair Vicentin é graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas - FCA da Unicamp e do Programa de Mestrado em Divulgação Científica e Cultural - MDCC. É membro da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade - LAVITS e membro fundador da Rede de Pesquisa em Governança da Internet - REDE.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O que é a tecnologia 5G e como se diferencia de suas antecessoras, 3G e 4G?

Diego Vicentin – As redes 5G são apresentadas como a quinta geração na linha de evolução das redes celulares de telefonia. As mudanças anteriores, ao menos desde a digitalização do sinal (2G) tinham como principal objetivo aumentar a capacidade de tráfego de dados da rede. As gerações três e quatro (3G e 4G) tiveram como mote a expansão na utilização da internet móvel e aplicativos para transmissão de áudio e vídeo por streaming, serviços que demandam baixa latência. Nesse sentido há uma certa continuidade, porque as redes 5G também têm o objetivo de aumentar a capacidade de tráfego e diminuir a latência, mas não se trata de vender essa capacidade adicional aos usuários finais, clientes comuns de operadoras móveis.

As redes devem servir para dar conta de demandas corporativas da indústria e do setor de serviços como, por exemplo, carros conectados e autônomos e sistemas de videovigilância. Isso vem sendo amplamente colocado dentro da “quarta revolução industrial” (ou “indústria 4.0”), que é um modo pretensioso de se referir a uma economia que é majoritariamente baseada na indústria das tecnologias de informação e comunicação. Não apenas aquela que desenvolve a infraestrutura material por meio da qual os dados são trafegados, mas também aquela que monetiza os dados que trafegam na rede, o chamado “capitalismo de vigilância” ou “capitalismo de plataforma”. As redes 5G fazem parte da encruzilhada entre telecomunicações e computação eletrônica.

Do ponto de vista da arquitetura e funcionamento da rede, podemos citar algumas mudanças que são significativas em seu conjunto, mas que não representam inovações revolucionárias em relação às redes 4G. Ou seja, são inovações incrementais que melhoram a performance da rede por adição de recursos, como a utilização de trechos adicionais do espectro de ondas de rádio, a instalação de um número maior de antenas pelo território e a “virtualização” de funções da rede que deixam de ser baseadas em hardware e passam a ser comandadas por software.

IHU On-Line – Que diferenças há entre os diferentes modelos de tecnologia 5G produzidas pelos EUA e a China?

Diego Vicentin – Cada geração de tecnologia celular corresponde a um conjunto de padrões que permitem interoperabilidade técnica e resguardam os interesses econômicos dos principais agentes de mercado. Os padrões são definidos em fóruns que têm participação da indústria e de estados nacionais, como o 3GPP e a International Telecommunication Union - ITU. Mas a definição de padrões não resulta que toda rede 5G seja implantada e operada do mesmo modo. O desenho e a operação da rede se dá na relação entre empresas operadoras de serviço e fabricantes de equipamentos.

Há, atualmente, predomínio de empresas chinesas e estadunidenses e a questão entre os países é uma disputa de hegemonia geopolítica que vai além das redes móveis. Quero dizer com isso que não me parece haver uma diferença clara e essencial entre as empresas chinesas e americanas que disputam o mercado de 5G que nos permita dizer que existe uma tecnologia 5G chinesa e outra americana. Empresas chinesas e americanas são interdependentes. O desconforto do governo dos EUA, especialmente da administração Trump, se dá em relação à importância crescente que as empresas chinesas estão assumindo no mercado e, por consequência, da posição privilegiada que ocupam (em termos de espionagem e vigilância, por exemplo) ao definir parte da infraestrutura informacional inclusive dentro dos EUA.

IHU On-Line – Para quê e para quem servem as tecnologias 5G que estão sendo desenvolvidas em diferentes países?

Diego Vicentin – Toda nova geração traz consigo uma promessa que não necessariamente se cumpre. As redes 4G já prometiam a performance que está agora sendo prometida para as redes 5G (capacidade de 1Gb no download). Como disse antes, as passagens entre gerações (2G-5G) tiveram como objetivo principal aumentar a capacidade da rede quanto ao tráfego de dados. Mas, de onde vem a demanda por tráfego? Ou, melhor ainda: quem é que, hoje, tem capacidade de financiar o investimento em uma nova infraestrutura de rede complexa e custosa como as redes 5G? Certamente não é o usuário final, a pessoa comum que fica irritada quando o sinal não funciona bem ao longo do trajeto diário para o trabalho ou para a universidade. As principais financiadoras são empresas e estados interessados em implementar sofisticados sistemas de controle e vigilância sobre recursos críticos da infraestrutura urbana (como sistemas de transporte, energia e segurança) e sobre a população. Assim, o que se prevê para as redes 5G é a comercialização de “pedaços” da rede (network slicing) dedicados a serviços e empresas contratados por empresas como Amazon, Facebook, Google, Uber etc.

IHU On-Line – Como o 5G foi parar no centro das fake news relacionadas ao coronavírus e como isso está ligado a atos de vandalismo na Europa?

Diego Vicentin – Existem algumas hipóteses sobre a origem das teorias conspiratórias que associam o 5G à pandemia de covid-19. Uma delas aponta para uma entrevista de um médico num jornal local na Bélgica. Mas, antes disso, já havia bastante material sugerindo ou afirmando, sem evidências, a existência de danos à saúde causados pela intensificação de radiação eletromagnética decorrente do 5G. O canal russo RT News, que tem grande audiência em inglês no Youtube, é uma das fontes que tem propagado suspeitas sobre os efeitos das redes 5G sobre a saúde. A grande penetração que as teorias atingiram nos últimos meses nas redes sociais sugere que existem esforços ativos de espalhar desinformação (por meio de propaganda computacional) e atrasar a implementação da tecnologia 5G. Isso provocou uma onda de ataques a torres de transmissão e a funcionários de operadoras de rede, especialmente na Europa e no Reino Unido.

Por outro lado, mesmo que se confirmem interesses da Rússia ou dos EUA (ou de empresas interessadas) em disseminar desinformação para atrasar a implementação do 5G em mercados-chave, parte da responsabilidade deve ser assumida por aqueles responsáveis por desenvolver os padrões, especialmente pela indústria, que não faz questão de abrir sua caixa preta e produzir transparência e visibilidade sobre como sua infraestrutura opera, deixando terreno fértil para o cultivo de notícias falsas.

IHU On-Line – De que forma a tecnologia 5G está diretamente ligada a questões geopolíticas?

Diego Vicentin – As redes 5G levantam diversas questões geopolíticas. Já mencionei a disputa por hegemonia de mercado entre os EUA e a China que, claro, não está restrita ao 5G. Esse choque está sendo frequentemente descrito como uma corrida tecnológica travada em áreas estratégicas no desenvolvimento das TICs que incluem as tecnologias de inteligência artificial (IA). As tecnologias de informação não são apenas aquelas que de certa forma lideram o desenvolvimento econômico e industrial, mas principalmente são os meios de exercício de poder sobre populações de humanos e máquinas.

Uma vez que se espera que o 5G seja o meio de conexão de infraestruturas críticas para o funcionamento do modo de vida nos centros urbanos e para o sistema produtivo de cidades e países, então, a vulnerabilidade desses sistemas a ataques externos e internos torna-se uma questão vital. É preciso lidar com o fato de que essas redes são sistemas pervasivos de vigilância que capturam uma quantidade imensa de dados que produzem conhecimento e abrem possibilidades de intervenção sobre a economia, a produção, a saúde e o estado de espírito de uma dada população num determinado território. Informação é poder.

Especificamente no que diz respeito ao 5G, as animosidades entre os EUA e a China se ampliaram depois que a administração Trump decidiu incluir empresas chinesas como Huawei e ZTE numa lista que cria uma forma de embargo que as proíbe de realizar negócios com empresas americanas que são as principais fornecedoras em gargalos do sistema produtivo. A justificativa do embargo passa pela afirmação de que as empresas chinesas cooperam com seu governo, inserindo fragilidades intencionais (conhecidas como backdoors) que permitem espionagem e vigilância. Pouco mais de um ano antes do bloqueio, um memorando interno ao Conselho de Segurança Nacional do governo dos EUA foi vazado para a imprensa. O memorando defendia a ação direta do governo dos EUA no desenvolvimento e implementação da infraestrutura 5G e enfatiza que não há como garantir segurança da infraestrutura implantada e operada por empresas estrangeiras. Isso deixaria o sistema vulnerável não apenas à vigilância e à espionagem, como também a ataques diretos ao funcionamento de infraestruturas críticas.

Uma das características das redes 5G é a de que elas possuem um número mais amplo de funções e processos internos controlados por software e isso traria uma série de fragilidades adicionais. Esse é um dos pontos levantados pelo relatório de avaliação de riscos produzido pela Comunidade Europeia, que historicamente hospeda as principais organizações de desenvolvimento de padrões que constituem o mercado global. O bloco não aderiu ao bloqueio às empresas chinesas mas alguns países têm limitado sua participação de mercado.

Isso se deve ao diagnóstico de que algumas funções das redes 5G dependem mais fortemente dos fornecedores de equipamento (como a Huawei), colocando as empresas operadoras de serviço (como Vivo ou Claro, no caso brasileiro) numa relação de dependência externa, especialmente em casos onde a operadora dá exclusividade a um fornecedor de equipamento para construção de sua rede. O ganho de escala que barateia custos produz dependência do fornecedor como efeito reverso. Além disso, as constantes atualizações de software (normalmente proprietário e protegido por patentes) dificultariam a identificação de fragilidades intencionais ou não.

IHU On-Line – Como a pandemia de covid-19 pode funcionar como um gatilho de violação de direitos humanos fundamentais e o que isso tem a ver com a tecnologia 5G?

Diego Vicentin – A pandemia de covid-19 serve de catalisador para processos que já estavam sendo planejados pela indústria das TICs bem como por estados e governos. Isso se deve a uma série de fatores, dentre os quais o mais óbvio é o fato de que nos tornamos mais dependentes das TICs dada a condição de distanciamento social adotada por parte considerável das pessoas. Intensificaram-se o teletrabalho, a telemedicina, a educação a distância, compras e pagamento online etc. A segunda razão se baseia na expectativa de que as TICs podem servir de remédio à crise, desempenhando uma de suas principais vocações, que é a de vigiar, controlar e governar populações. Monitorar e controlar o contágio do coronavírus para reduzir os impactos da pandemia implica monitorar e controlar populações (virais e humanas) por meio da extração, tratamento e análise de dados que, por sua vez, são funções desempenhadas atualmente por sistemas de inteligência artificial.

Há duas semanas um grupo de pesquisadores tornou público um artigo (em fase de pré-publicação) no qual defendem que a utilização de dados coletados em redes sociais (Facebook e Twitter), motores de busca (Google) e de “termômetros inteligentes” (Kinsa) é mais eficaz para antecipar ondas de crescimento de contágio de covid-19 do que a utilização de indicadores tradicionais na epidemiologia, como número de casos confirmados da doença, hospitalizações e óbitos. Redes sociais, motores de busca e objetos conectados permitem a coleta de dados de maneira contínua, em “tempo real”. Tal fluxo pode alimentar algoritmos de aprendizagem que irão monitorar e identificar sinais de crescimento da contaminação numa determinada região com antecedência de algumas semanas. Isso pode ser decisivo para tomar medidas de combate à pandemia, como fechar escolas e o comércio ou ainda instituir lockdown.

Existem inúmeras iniciativas como essa que pretendem utilizar ou já estão utilizando dados comportamentais coletados na internet ou por aplicativos em smartphones para monitorar e controlar a pandemia. Um dos casos mais debatidos recentemente é o aplicativo de rastreamento de contato via bluetooth que está sendo desenhado pela Apple e pela Google. A emergência da pandemia, então, torna o cenário favorável a experimentos que se beneficiam da utilização maciça de dados populacionais considerados sensíveis, como sua localização, sua temperatura corporal e com quais pessoas teve contato. Trata-se de gerir a vida, de governar corpos de indivíduos e populações e, consequentemente, toda intervenção nesse plano levanta questões sobre direitos básicos.

 

Termômetros inteligentes

 

A rede de termômetros inteligentes utilizada como fonte na pesquisa citada acima (Kinsa) reúne dados de medições de febre em mais de meio milhão de domicílios nos EUA. O aparelho registra cada medição de temperatura e o usuário pode incluir informações sobre sintomas no aplicativo no smartphone. Tais dados são comercializados pela empresa Kinsa Insights a outras empresas interessadas em ações de marketing, como as que oferecem serviços de consulta médica online.

O termômetro é apenas um exemplo dos muitos objetos “inteligentes” (ou seja, conectados) que fazem parte da “internet das coisas” que, por sua vez, integra o cenário futurista das “cidades inteligentes”, da “indústria 4.0”, serviços de entrega por drones, veículos autônomos e redes 5G, que são vistas como a infraestrutura responsável por conectar as coisas.

Algumas projeções indicam que as redes 5G devem suportar mais de uma centena de objetos conectados por pessoa mesmo em locais densamente populados. Esses objetos terão como objetivo capturar dados das atividades de grupos e indivíduos, em espaços públicos e privados, que serão monetizados por meio de ações de marketing baseadas em conhecimento produzido por técnicas de inteligência artificial. Esse conhecimento tende a se tornar mais denso e incisivo com a multiplicação das fontes de dados em “tempo real” que vão atravessar as redes 5G.

E sabemos, tendo em vista acontecimentos da última década, que sua utilização pode servir a fins bem menos legítimos que a implementação de políticas públicas, como a realização de campanhas de propaganda política e desinformação (como se vê no caso Cambridge Analytica). Então, é preciso estar atento para as prováveis violações de privacidade, e casos de discriminação por classe, raça e gênero, além de garantir e proteger o direito à informação e à liberdade de expressão.

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