A milícia avança nos territórios do Comando Vermelho. Entrevista especial com José Cláudio Alves

Foto: Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 05 Setembro 2019

As 881 mortes registradas em operações policiais no primeiro semestre de 2019 no Rio de Janeiro, conforme levantamento feito pelo UOL, sugerem que as milícias estão disputando o controle de territórios com o Comando Vermelho – CV e avançando em áreas que até então eram comandadas pelo tráfico de drogas. De acordo com o sociólogo José Cláudio Alves, dados do início deste ano também apontam que dois milhões e 200 mil habitantes de 22 municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro estão sob o comando da milícia e a maioria das mortes está ocorrendo em regiões em que as milícias querem atuar. “A percepção nítida é que a milícia avança nos territórios do Comando Vermelho. Na região de Santa Cruz, por exemplo, onde o CV ainda tinha algumas favelas, como Antares e outra próxima a ela, a milícia já tomou conta. Em comunidades de Nova Iguaçu, próximo à Zona Oeste, na região da Estrada de Madureira, houve uma varredura da milícia no final de julho — os números desses mortos não aparecem em lugar nenhum”. E acrescenta: “O padrão da milícia é entrar, eliminar o CV, dar entrada para o Terceiro Comando Puro e fazer o acordo com ele”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, ele afirma que não existem operações de controle à atuação das milícias no estado carioca e o que se observa é o “favorecimento do crescimento” desses grupos. Ele frisa ainda que o “submundo criminoso dos matadores das milícias” saiu dos porões e está crescendo politicamente. “Os próprios milicianos vão se lançar candidatos. Antes, até tinham algum tipo de escrúpulo ou de necessidade de se ocultar e de lançar pessoas próximas a eles, mas acho que o que vamos assistir são eles próprios cada vez mais em ação”, afirma.

José Alves (Foto: João Vitor Santos | IHU)

José Cláudio Alves é graduado em Estudos Sociais pela Fundação Educacional de Brusque. É mestre em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor, na mesma área, pela Universidade de São Paulo - USP. É professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ.

Confira a entrevista. 

IHU On-Line — Recentemente, o UOL divulgou a notícia de que no primeiro semestre de 2019 a polícia do Rio de Janeiro matou 881 pessoas, mas nenhuma em área controlada pelas milícias. O que isso significa? Como podemos ler essa informação?

José Cláudio Alves — Hoje temos uma interferência direta do Estado, no caso do atual governo, em função da disputa interna que está ocorrendo entre as dimensões do crime organizado, principalmente entre milícia e tráfico de drogas. Essas duas organizações criminosas dependem, basicamente, de dimensões de controle territorial e de dimensões políticas, que são decisivas nessa estrutura de organização criminosa. Me parece que a expansão da extrema direita no Brasil começa a avançar como forma de interferência desse poder político também no controle e na disputa territorial ao lado das milícias no Rio de Janeiro. Essa estrutura do crime organizado também parece estar se deslocando para outros estados a partir da milícia.

No Rio de Janeiro é nítido o que você acabou de falar, pois se tem todo um discurso de prática de segurança pública, de política de segurança pública, e a própria realização dessa política pública voltada para o extermínio de populações em áreas onde há o controle mais forte do tráfico de drogas e a ausência desse tipo de prática em áreas da milícia — não estou nem falando em execução sumária de milicianos, porque isso não é política pública de segurança; isso é reforçar a lógica da violência e do crime organizado como um todo.

Confronto entre milícia e tráfico de drogas

Não existem operações de controle das milícias e da sua ampliação. Há, ao contrário, um favorecimento do seu crescimento, da intensidade com que essas milícias operam no Rio de Janeiro, a partir de um discurso extremamente violento e agressivo contra aqueles que são identificados como os inimigos públicos número um, que, no Rio, são as pessoas ligadas ao tráfico de drogas. O confronto no Rio de Janeiro se dá entre a milícia e o Comando Vermelho - CV, que é a facção que não se subordina e não se sujeita à política de suborno, de corrupção e aos valores que a polícia usa nessa política de suborno e corrupção.

Portanto, a geopolítica está se alterando no Rio de Janeiro e está expressando esse movimento que, primeiramente, é político-discursivo e que se implanta no país a partir da eleição da extrema direita, inclusive em termos da Presidência da República e daqueles que expressam esse discurso no projeto de governo para a área de segurança que esses grupos defendem. O discurso é o da necessidade de matar mais, de combater violência com mais violência, a lógica armamentista do fortalecimento da indústria bélica e da distribuição de armas, a lógica da proteção aos agentes de segurança pública para que eles possam cometer ações como homicídios e não ser imputados por essas ações, como é o caso do excludente de ilicitude, o discurso de mais dureza, de mais confronto, de prisões por mais tempo e todo esse discurso que reforça a guerra efetiva contra um inimigo específico. A milícia é citada nisso tudo de forma indireta e não se dá atenção a isso, mas, no final, o alvo são os grupos do tráfico, principalmente o Comando Vermelho, porque ele não se sujeita à lógica criminosa de barganha e suborno. Esse é o cenário que o Rio de Janeiro vive, que tem se ampliado e se intensificado.

Reforço discursivo do governo

O papel do atual governador do Rio é de reforço a tudo isso, é algo quase anedótico. O comportamento dele é tão extrapolado, ridicularizado e caricatural, que olhamos para isso sem ter ideia de com que estamos lidando. Mas há por trás disso toda uma encenação, todo um trabalho de palco midiático para reforçar a lógica de guerra, a ampliação dos confrontos, este morticínio que o Rio de Janeiro está vivendo. Como o Rio é a grande vitrine nacional, isso tende a crescer em âmbito nacional, para além dessa tragédia que já vivemos, com 63 mil pessoas tidas oficialmente como vítimas de homicídios no país.

IHU On-Line — Além da guerra entre o tráfico e as milícias, os dados sugerem que pode existir um acordo entre milícias e Estado do Rio de Janeiro para evitar mortes nas áreas controladas por milícias, como o acordo feito entre o governo de São Paulo e o Primeiro Comando da Capital - PCC anos atrás?

José Cláudio Alves — Não. É um acordo ao contrário do que foi o acordo com o PCC. O PCC passou a hegemonizar o crime organizado na região de São Paulo, buscando amenizar mortes. No Rio de Janeiro, é um acordo às avessas, em que se ampliam as mortes, se intensifica a matança nas áreas que a milícia tem interesse de limpar para permitir sua entrada. Itaboraí e Santa Cruz, por exemplo, são áreas de milícia, mas é preciso fazer um detalhamento e um contingenciamento dos dados a partir das localidades dentro desses bairros ou municípios. Temos que ir de fato para as áreas onde ocorreram os confrontos, mas os locais onde as mortes estão ocorrendo são locais onde há presença do Comando Vermelho.

É preciso tomar cuidado, pois já recebi críticas de pessoas dizendo que as áreas citadas nas matérias são dominadas pela milícia. Não é bem assim, porque as áreas das milícias também são locais de confronto. Então, áreas de Campo Grande, Seropédica e Santa Cruz são dominadas por milícias, mas sempre há disputa por esses territórios. Portanto, temos que ir para os subterritórios dessas áreas maiores para identificar o que está ocorrendo em disputa mesmo – esse é um trabalho mais detalhado e que foi feito pelo Sérgio Ramalho.

Hoje, não há um acordo que possamos identificar com clareza, pois não há discursos nem do governo, nem por parte de representantes da milícia ou de representantes políticos da milícia sobre isso. Então, trata-se de um acordo tácito que diz: nas áreas em que o tráfico está, nós vamos matar e temos licença para matar porque o governador faz discursos dizendo que vai abater e fuzilar pessoas que têm comportamentos específicos nessas áreas. Mas ninguém tem controle sobre isso. No Brasil e no Rio de Janeiro não há controle sequer sobre os crimes cometidos, sobre os homicídios comuns, não há investigação – talvez 2% dos homicídios sejam investigados. Agora, imagine abrir uma fronteira para homicídios associados a estas tecnologias ou fórmulas metodológicas que o governo está defendendo, pregando e utilizando. Estamos em um momento em que não se sabe quem são as pessoas mortas, pois temos um discurso generalizado, totalitário, que fala em abatimento – algo ilegal e criminoso –, na boca de governantes. É um sinal, uma senha, um código de que isso está liberado: o aparato policial vai funcionar com letalidade e vai matar mais, porque aquele que deveria controlar esse aparato não quer controlar e está liberando para que ele faça essa caçada ao inimigo. Porém, esse inimigo é construído com finalidades políticas: abater pobre, negro, favelado e morador de periferia. Isso mostra que há uma sujeição criminal que é aplicada a perfis socioeconômicos e geográficos. Se a pessoa é pobre, negra, moradora de periferia e de favelas e se enquadra nessa dimensão de uma sujeição criminal coletiva, socialmente implantada, se implanta o inimigo e a necessidade de abater e destruir esse inimigo da forma como eles estão praticando.

A milícia se origina do mercado político da execução sumária, de políticas eleitorais criminais. Temos agora uma política eleitoral criminal que vai estabelecer o crime como fator decisivo na decisão eleitoral ao projetar politicamente aqueles que se valorizam desse discurso e dessa prática, que obtêm ganhos no mercado político – ganhos a partir da morte do outro. Isso, ao meu ver, é a construção de uma política pública eleitoral criminal, ou seja, o crime agora faz parte do cenário político nacional e está colocado como um mediador universal das decisões democráticas; é uma canalhice, mas é isso, é um jogo político do submundo.

A dimensão do submundo criminoso dos matadores, dos membros dos grupos de extermínio e das milícias ascende, sai dos porões e cresce ao patamar de projeto político eleitoral que vai se expressar, principalmente, no ano que vem, nas eleições municipais, já que as eleições estaduais e federais indicaram o fortalecimento dos representantes dessa prática. Teremos a capilaridade dessa prática e desses grupos nas eleições municipais do ano que vem; é nesse cenário que estamos mergulhados. Não é só um acordo, é uma extrapolação total, pois estão esbravejando aos quatro ventos, estão consolidando essa prática da execução sumária contra determinados inimigos. Isso, para eles, funciona como uma “credencial política”: eles estão ganhando créditos políticos. Nos anos 1990, isso ocorreu na Baixada, não com milicianos, mas com membros de grupos de extermínio. Eles fizeram o mesmo caminho, o mesmo jogo discursivo, a mesma identificação do inimigo a ser morto, a lógica da execução sumária como algo de bom que favorece a segurança dos moradores. Então, vários matadores se elegeram como prefeitos, vereadores e deputados estaduais no Rio de Janeiro nos anos 1990. Isso foi um preâmbulo. Nos anos 2000, eles não foram atingidos, continuaram, então veio a CPI das Milícias, que pegou alguns, e eles refluíram, recuaram, mas agora é o momento da volta e da expansão dessa lógica, que hoje se apresenta politicamente em outra conjuntura, comunicação e informação para a sociedade como um todo. Eles se veem em um ambiente muito mais favorável e começam a sair dessa dimensão de silêncio. A morte da Marielle [Franco] já é a indicação dessa nova conjuntura, uma conjuntura em que houve uma intervenção federal no Rio de Janeiro, a qual deixou claro na sua proposta escrita e propagada para todos, que as forças policiais do Rio de Janeiro seriam forças auxiliares da intervenção federal, portanto seriam forças apoiadas. Essa é a senha para que se possa voltar a uma dimensão mais ostensiva desse poder.

IHU On-Line — Na última entrevista que nos concedeu, o senhor disse que as milícias crescem velozmente por dentro do Estado. Como elas se articulam nas esferas municipal, na prefeitura e na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro - Alerj, e estadual no Rio de Janeiro? Como especificamente elas vão atuar nas próximas eleições?

José Cláudio Alves — Existe uma aliança do discurso de vários partidos de legenda de aluguel e de partidos da extrema direita, principalmente do PSL, em que há toda uma articulação discursiva e prática política voltada para essa dimensão da execução sumária, da necessidade de mais violência, de mais armas e de proteção ao policial que age dessa forma. Está muito claro que esse discurso se tornou vitorioso nas últimas eleições e é o grande sinal: os próprios milicianos vão se lançar candidatos. Antes, até tinham algum tipo de escrúpulo ou de necessidade de se ocultar e de lançar pessoas próximas a eles, mas acho que o que vamos assistir são eles próprios cada vez mais em ação. Vários já se elegeram nessas últimas eleições e agora vão querer ampliar isso com suas candidaturas próprias. Claro que alguns podem ter suas trajetórias políticas atrapalhadas por prisões ou investigações, mas não sei até que ponto isso atrapalha mesmo, pois na maioria das vezes eles podem construir um discurso – isso ocorreu nos anos 1990 na Baixada – de que “querem afastar o povo de mim”, “querem impedir um representante legítimo do povo” etc. Há uma vitimização daquela pessoa que é atingida pela lei, que é presa, acusada, uma vitimização como uma tentativa de prejudicá-la e de prejudicar a relação dela com a população.

Na maioria dos casos, milicianos, policiais militares e representantes da estrutura de execução sumária oficialmente respaldada pelo Estado, estão cada vez mais desinibidos, expostos e se superexpondo na sociedade em busca de proteção política. O cenário no ano que vem será de aumento das candidaturas vinculadas a essa prática e a essa estrutura de poder que as milícias estão representando há algum tempo e que agora se expressa com muito mais força. Eles não fazem mais concessões, eles se impõem e todos aqueles que forem para as políticas eleitorais criminalizadas vão sofrer as consequências dessa tentativa.

A ampliação desse discurso vai inibir e impedir que pessoas vinculadas a práticas mais democráticas, não criminosas, que buscam a cidadania e a ampliação da participação política e o reconhecimento dessa prática como algo necessário para a consolidação da democracia no país, participem do processo eleitoral. Esses candidatos vão refluir, vão se encolher; esse será o efeito mais imediato. Até porque as milícias controlam os partidos, controlam a tal ponto de impedir que candidaturas diferenciadas das deles ascendam dentro dos partidos de aluguel e de extrema direita. Então, vai sobrar um campo ínfimo do que seriam grupos mais à esquerda e combativos para disputar a eleição.

IHU On-Line — As milícias também têm articulações na esfera federal e no setor Judiciário?

José Cláudio Alves — No Judiciário, sim, porque todo o aparato policial faz parte do aparelho Judiciário: todas as investigações, incursões e repressões, tudo aquilo que o Judiciário estabelece como prática de si mesmo como poder Judiciário depende, na sua capilaridade, no seu contato imediato com populações, áreas, territórios e grupos policiais, da atuação policial. Então, a estrutura judiciária já é comprometida na sua base. A estrutura miliciana está calcada nisto: a segurança de proteção, porque a estrutura miliciana faz parte do aparelho do Estado, especificamente da dimensão do Judiciário. Então, os milicianos avançam quando se elegem: além do Judiciário, eles passam também a ter poder no Executivo e no Legislativo a partir das eleições. Assim, a possibilidade de interferência está na montagem, não precisa nem corromper juiz – claro que isso também ocorre e essa dimensão vai aparecendo ao logo do tempo na atuação do Ministério Público, que não cumpre o seu papel, não investiga e não controla essa prática miliciana por dentro do aparelho policial.

IHU On-Line — Como o senhor avalia o caso Queiroz e a decisão do ministro do STF Dias Toffoli de acolher pedido da defesa de Flávio Bolsonaro e paralisar as investigações do caso Queiroz?

José Cláudio Alves — Eles vão encontrar brechas no sistema judiciário já que o sistema é permeável a essas dimensões, já que o Supremo Tribunal Federal - STF acaba, progressivamente, se comportando de forma a favorecer essa prática. Como eu disse, a base da estrutura judiciária já está comprometia em função da milícia. Então, a contaminação do resto da estrutura, da atuação do judiciário, por exemplo, começa a ser comprometia também. Quando o STF toma uma decisão como essa, a minha interpretação é a de que é uma decisão muito ruim, que mostra a fragilidade e a incapacidade de tomar isso a sério. O Flávio Bolsonaro – isso é público e notório no país – teve vínculos com milicianos no Rio de Janeiro, chegou a empregar mãe e esposa de um membro da milícia que controla Rio das Pedras, o Adriano de Nóbrega. Elas faziam parte do gabinete de um deputado estadual, hoje senador. A dimensão do Queiroz é o elo perdido: não se quer chegar ao caso, ao contrário, se quer evitá-lo.

O papel do Witzel no Rio de Janeiro é criar um tal cenário disruptivo, de sofrimento, uma distopia baseada na violência, a ponto de impedir avanços nessa investigação e chegar a atingir a estrutura do poder central do país. Se quer evitar apurar de fato o que existe ali. Todos os indícios levam a crer que há um envolvimento muito maior do que possamos imaginar, com dimensões financeiras, políticas e eleitorais criminosas. Isso é o que está no cenário posto e esse papel do STF é um papel subordinado, subalterno a essa dimensão, a essa estrutura. O STF deveria ter a capacidade de autocrítica e de internamente considerar e impedir que isso ocorresse. A verdade é que existem divergências internas entre os ministros do STF que, vez ou outra, vêm para a mídia como um todo, mas na ação concreta, na hora de decisões, essas diferenças acabam sendo dissolvidas em processos de apoio e justificativa para essa prática. Sempre haverá uma brecha ou uma margem na justiça. A meu ver, estão usando dessa estratégia, própria do campo do Judiciário, para impedir o avanço dessas investigações e a comprovação dos vínculos deles.

Cabe a nós, como sociedade, exigir do STF sua isenção, sua autonomia e sua capacidade de retomar para si a dimensão jurídica mais digna e mais nobre dentro dessa ação: resgatar a capacidade de nos orientar como nação. Ou o STF compreende seu papel e retoma o que sempre foi dele ou seremos subjugados e submergidos em uma dimensão cada vez mais totalitária e mais brutal do que já somos.

IHU On-Line — Que percentual do Rio de Janeiro é controlado pela milícia e pelo tráfico? Quais bairros, municípios ou regiões são controlados pelas milícias e pelo tráfico hoje?

José Cláudio Alves — Em matérias do ano passado, do G1, houve um primeiro dimensionamento que falava em dois milhões de habitantes presentes em áreas controladas por milícias, uma região de 348 quilômetros quadrados, atingindo 13 municípios da região metropolitana. Esses dados foram atualizados no começo de 2019 por outra matéria do G1, que já fala em dois milhões e 200 mil habitantes nessas áreas, em 22 municípios da região metropolitana carioca e que já se amplia para fora da região metropolitana.

Avanço da milícia nas favelas do CV

É muito difícil atualizar os dados referentes às milícias porque elas estão em permanente expansão. Vou fazer um exercício de tentar fazer esse mapeamento a partir dos dados do Disque Denúncia, pois estamos buscando, a partir dessas informações de denúncia, mapear onde ocorrem as queixas de cada um desses grupos criminosos e onde estão localizados. A percepção nítida é que a milícia avança nos territórios do Comando Vermelho, então, há uma perda de território do CV. Na região de Santa Cruz, por exemplo, onde o CV ainda tinha algumas favelas, como Antares e outra próxima a ela, a milícia já tomou conta. Em comunidades de Nova Iguaçu, próximo à Zona Oeste, na região da Estrada de Madureira, houve uma varredura da milícia no final de julho – os números desses mortos não aparecem em lugar nenhum.

Tenho acesso a essas informações porque a própria população as divulga em redes sociais e o próprio Ministério Público recebeu uma denúncia de que ocorreram 60 mortes em uma operação de cem milicianos: um exército miliciano armado com fuzis varreu as comunidades do Jardim Paraíso, Grão-Pará, Dom Bosco e Marapicu. Outras comunidades próximas foram invadidas pela milícia e o CV, que existia nessas áreas, foi dizimado, foi literalmente trucidado. Os corpos foram ocultados e jogados Deus lá sabe onde. Essa é uma perda do Comando Vermelho e um avanço da milícia.

Em outras comunidades do Rio de Janeiro, por exemplo, na Zona Oeste como um todo, desde Jacarepaguá, Praça Seca, chegando a Campo Grande, Santa Cruz, à área de Bangu, Realengo, existem disputas permanentes e a consolidação de milícias. Na área de Jacarepaguá e Praça Seca, isso está consolidado. Cidade de Deus, por exemplo, sobrevive com o Comando Vermelho, mas sob um cerco de morte e operações permanentes, inclusive com drones do Estado, das polícias. O cenário geopolítico hoje, nitidamente, dá uma vantagem de avanço para a milícia e o CV reflui e se reconfigura indo para outras áreas. O Terceiro Comando Puro, que não é uma facção tão expressiva fora do Rio de Janeiro, mas que no Rio cumpre um papel importante, sempre fez aliança com a polícia, sempre pagou o suborno, o “arrego”, e sempre atuou em parceria com a polícia nos confrontos com o CV. Então, o Terceiro Comando tende a crescer e ampliar seus territórios — tenho percebido essa ampliação.

Assim que a milícia entra num novo território, ela não adota o padrão para atuar no tráfico. O padrão da milícia é entrar, eliminar o CV, dar entrada para o Terceiro Comando e fazer o acordo com ele. Essa facção paga o aluguel da área e opera o tráfico de drogas, enquanto a milícia fica mais refluída, mais oculta; é assim que tem sido no Rio de Janeiro. Estamos num cenário tal, que nem sei quantas áreas hoje são dominadas pelas milícias. Saber quanto eles movimentam financeiramente é mais difícil ainda, porque a milícia pulverizou a sua prática de cobrança de taxa, que é cobrada semanalmente. Por exemplo, do pipoqueiro, a milícia cobra 40 reais, do mototaxista, 70 reais, do cabeleireiro, 50 ou 100 reais de salões maiores, das lojas do comércio, varia de 200 a 500 reais, dos supermercados, fala-se em mil reais. Os areeiros — tratores ilegais de areia — pagam em torno de mil reais para continuar funcionando. Esse é apenas um dos vários negócios da milícia, apenas a “taxa de segurança”, mas tem o transporte clandestino, o tráfico de drogas, a venda de votos, a pesca do camarão na Baía de Sepetiba. No período do defeso — em que não pode pescar —, eles estão pescando, estão conseguindo ganhar dinheiro com isso fora de época. Também controlam o acesso a empregos no Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro - Comperj em Itaboraí, o acesso a atendimento de hospitais, consultas e exames. Enfim, eles têm uma capacidade exponencial de avançar em vários serviços e bens presentes na vida urbana, principalmente nas áreas periféricas. Estão ampliando, crescendo e unificando essas várias áreas, portanto os valores obtidos são cada vez maiores. Isso no campo econômico, porque quanto maior a expansão territorial, maiores os lucros e, também, quanto maior a diversidade dos serviços e bens que monopolizam e controlam a partir da violência, maior também o seu poder.

IHU On-Line — Em relação ao tráfico, sabe-se que há disputas internas entre as facções por territórios. No caso das milícias, também existem conflitos internos entre diferentes grupos?

José Cláudio Alves — Sim, esses conflitos ocorrem. Talvez não seja tão ostensivo e tão expressivo como entre as facções do tráfico nas disputas, mas eles têm seus acordos e negociações e, normalmente, dentro desses acordos, acontecem conflitos e quebras de acordo. É muito comum a resolução disso a partir da execução sumária, da morte entre eles. Isso foi muito visível, por exemplo, em 2016, quando ocorreram 13 assassinatos de candidatos a vereador na Baixada, sendo que aproximadamente sete candidatos tinham vínculo com a milícia. A principal suspeita das mortes é acerto: essas pessoas foram mortas por milicianos em confrontos internos.

Normalmente, os acordos entre eles são mais sólidos e duram mais tempo: eles negociam que área pertence a cada milícia. Costumamos falar de uma milícia única, mas isso não existe; existem milícias. Claro que elas operam numa mesma lógica, têm seus acordos, mas há diferentes “donos” ou “responsáveis” por essas milícias, que permanentemente se reúnem — fazem reuniões semanais — para tomar decisões e para orientar aqueles que são colocados como gerentes das áreas de operação em que eles estão. Há toda uma organização administrativa e um gerenciamento do crime a partir desses acordos, mas sempre que existem confrontos e disputas dentro desses acordos de interesse, há a possibilidade da resolução pelo assassinato. Porém, isso é mais esporádico, não se tem tantas notícias sobre essas mortes, como também não há investigação dessas mortes.

IHU On-Line — Muitos especialistas em violência e, particularmente, em tráfico de drogas, chamam atenção para o fato de que o tráfico está cooptando os jovens das periferias. Isso também acontece nas milícias? Como ela se relaciona com os jovens das periferias?

José Cláudio Alves — Sim, isso acontece com as milícias. As milícias têm uma prática de guerra nas áreas onde entram, e com isso eliminam os jovens do tráfico, mas a partir do momento em que consolidam sua dominação naquele território, fazem uma política de recolocação de membros, principalmente de membros que estavam no tráfico. Elas propõem acordos para que esses jovens passem a trabalhar sob o domínio e o controle da milícia. Há vários relatos de que após as operações de guerra dos milicianos, há uma migração do jovem que estava no tráfico de drogas para as milícias. Esses jovens servem como mão de obra e como uma forma de a milícia ganhar a base daquela região, evitando a ampliação do número de mortos por confronto e divergência e favorecendo a tática de cooptação e da inclusão desses segmentos que estavam no tráfico.

Os avanços geopolíticos das milícias têm estas etapas: uma etapa mais conflagrada de guerra, de mortes e assassinatos, e uma etapa que acontece paralela a essa, que é a etapa de cooptação, de obtenção de mão de obra dentro do próprio funcionamento anterior do tráfico, o que dá aos jovens um currículo para serem empregados pela milícia. Como a milícia tem uma base muito boa e amplia seus negócios, mesmo que o jovem tenha um rebaixamento salarial, esse rebaixamento é compensado pela diminuição do confronto, do risco e pela possibilidade de permanecer nesse universo.

IHU On-Line — Como o senhor percebe a reação da população às milícias? O que as pessoas com quem o senhor conversa dizem sobre as milícias?

José Cláudio Alves — Inicialmente, há sempre um respaldo e um apoio, já que essas populações vivem no desamparo, no desalento total. Não há políticas públicas de proteção, ao contrário, elas vivem políticas públicas de exposição ao risco e à morte permanentemente. Essa degradação do bem maior que é a vida, a degradação da segurança, submete essas populações à lógica do medo permanente. As consequências disso são sentidas na própria vida, a partir de doenças psíquicas e emocionais, que vão afetar também o sistema imunológico e acarretar doenças do corpo físico. Tudo isso, ao longo do tempo, provoca um volume de sofrimento absurdo nessas populações.

Quando uma milícia entra em uma comunidade e consegue vencer e cooptar o tráfico, e passa a hegemonizar o crime, o alívio imediato dos confrontos é sentido e a população apoia a milícia. Por isso, é muito comum esse apoio. Além disso, é muito comum o ocultamento de qualquer crítica, porque eles vão controlar totalitariamente essas áreas, então a explicitação de críticas à milícia é invisibilizada. Progressivamente, essa milícia passa a mostrar de fato a sua estrutura de poder, passa a controlar cada vez mais essas populações e áreas e a trazer riscos para elas. Então, começa a surgir o fenômeno da resistência e da crítica à milícia, mas, pelo que sei, isso tudo é muito bem controlado pelo poder miliciano, que vai impedir que isso se expresse de forma mais clara e visível.

Mesmo que cresça dentro dessas populações a percepção do sofrimento que é viver sob o domínio desses grupos, a crítica não vai se expressar, não vai aparecer. As normas de funcionamento daquela sociedade passam a ser controladas pela milícia, que passa a decidir quem morre e quem vive. Quem pratica atos considerados como não tolerados será morto. A solução da milícia não é igual à do PCC, que tem um tribunal que vai julgar e evitar a morte porque ela é nefasta e traz prejuízo aos negócios. A milícia é o contrário disso: como não há julgamentos, ela toma decisões imediatas e normalmente isso resulta em mortes.

IHU On-Line — Vislumbra alguma alternativa para enfrentar as milícias?

José Cláudio Alves — As alternativas são sempre muito mais complexas do que se pode imaginar. Eu tenho falado que existem alternativas de curto prazo e alternativas de longo prazo. Uma dessas alternativas, entre várias, seria a da dimensão ligada às drogas. Políticas públicas de segurança voltadas para a guerra às drogas são políticas públicas voltadas para o fortalecimento e a prática da execução sumária, do fortalecimento do poder miliciano. Enquanto isso não se alterar no Brasil, esses grupos terão cada vez mais poder e mais força, porque eles vão construir a imagem do inimigo a ser liquidado e abatido e vão construir a sua imagem de heróis que matam e oferecem segurança. Ou mudamos a relação da sociedade brasileira com a questão das drogas e passamos a tratá-la como problema de saúde pública, de educação e de cultura, ou o problema não irá se resolver.

É possível dizer que a saúde pública é capaz de dar conta disso? Claro que não. Teria que se construir uma perspectiva de saúde pública capaz de enfrentar isso, mesmo com todas as crises que a saúde pública tem. Agora, isso tem que ser combinado com operações reais em termos de investigação e de operações policiais que atinjam a milícia como uma rede, uma rede muito mais complexa e ampla, que é plástica, que se reconfigura, se rearticula, que tem seus tentáculos no campo político. Portanto, teriam que ser operações muito mais eficientes do que essas de prender o chefe da milícia de tal bairro. É preciso pegar a milícia na sua complexidade enquanto rede e trazer à luz quem são seus “donos”.

Hoje, os “donos” de grupos milicianos são invisíveis. Se no passado eles eram presos porque eram vereadores e deputados, hoje eles ocultam cada vez mais a ligação desses caras com a milícia. Então, investigações muito mais eficientes deveriam ser feitas, com uma amplitude muito maior, atingindo a rede como um todo, não apenas um ponto nessa rede. Seria preciso ampliar o raio de operação no espaço: não adianta fazer operações pontuais colocadas num determinado momento no tempo; tem que se estender ao longo do tempo, é preciso ter uma atuação muito mais eficiente.

Outro passo importante seria o debate sobre o papel das polícias, sobre a lógica militarizada, hierarquizada, na qual o policial é subjugado por uma decisão de ordem hierárquica em que não pode pensar o seu fazer enquanto agente de segurança, em que não dialoga nos espaços e com os grupos populares sobre o seu papel, em que é apenas refém de uma estrutura fechada e autoritária. Enquanto for assim, esse policial continuará refém da estrutura do crime organizado que se projeta dentro dessa dimensão militarizada, o que fortalece esse poder do crime organizado por dentro da polícia e do Estado. É preciso resgatar a figura do servidor público dentro da estrutura policial para que ele seja autônomo e tenha a capacidade de construir o seu caminho.

As outras dimensões associadas à luta contra a milícia são mais a longo prazo e muito mais profundas. Seria preciso uma mudança absoluta na pauta do orçamento público federal, de ações federais, estaduais e municipais e fazer investimentos na área social, nas áreas de habitação, saúde e educação. Tudo isso que o Brasil nunca teve — e que hoje dizem que tem que ter menos ainda. Toda essa dimensão de destruição, privatização e sucateamento do país como um todo teria que ser estancada, impedida, e teríamos que avançar para uma concepção real de bem público, de serviço público e de proteção dos grupos que são os mais atingidos: pobres e negros da periferia.

Enquanto essa massa miserável for massa de execução sumária, de políticas públicas enaltecedoras dos matadores, do discurso do “bandido bom é bandido morto”, nós seremos reféns desses grupos que fazem isso. Então, é preciso tirá-los dessa posição, desse patamar ao qual foram lançados. Ao invés de pagarmos bilhões para a Troika que manda no país, que são os banqueiros, empreiteiros, agronegócio, mineradoras, os grandes grupos que hoje se estabeleceram e dominam este país, precisamos inverter essa pauta: tem que jogar recursos públicos e políticas públicas para as populações mais pobres, protegê-las e ajudá-las a sair desse fosso. Isso é o mais difícil.

Esta é uma disputa política e precisamos ter, de novo no Brasil, a consolidação de propostas políticas que sejam vitoriosas nessa direção. Esse é o trabalho mais difícil hoje, já que estamos sob o franco ataque de expressões políticas privatizantes, destruidoras do Estado, fortalecedoras do capital privado, do capital criminoso e do capital que dizima os bens naturais. Esse é o campo mais difícil de conseguirmos avançar, mas é necessário. Tudo o que falei tem que existir de forma articulada, porque uma dimensão isolada não será capaz de alterar a complexidade das milícias e da violência no Brasil.

 

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