#15M: A insurreição estudantil e o país sem respostas às questões contemporâneas. Algumas análises

Manifestação em São Paulo | Foto: Mídia Ninja

Por: Patricia Fachin, João Vitor Santos e Ricardo Machado | 17 Mai 2019

 As manifestações contra o contingenciamento anunciado pelo governo para a área da educação, que ocorreram em todas as capitais brasileiras na última quarta-feira, 15-05-2019, foram “surpreendentes” e indicam “um termômetro do descontentamento”, avalia o economista Paulo Kliass. Segundo ele, em quatro meses e meio de governo, Bolsonaro “está conseguindo o fato impressionante de juntar todo mundo contra as suas intenções, inclusive aliados que votaram nele ou na sua base no Congresso”. Para o economista, a manifestação que inicialmente estava sendo organizada por sindicalistas, professores e funcionários públicos foi ampliada pelo “destempero” do ministro da Educação e do presidente, que chamou os jovens de “idiotas úteis”. “Isso acabou criando um caldo de cultura que unificou o conjunto da comunidade acadêmica e acabou sensibilizando outros setores e familiares de alunos, de professores e de funcionários em torno de um sentimento generalizado de perceber que o que está colocado em questão é o futuro da educação, assim como a previdência é o futuro dessa geração”, afirma.

Para Bruno Cava a insurreição estudantil da quarta-feira se expressa na cauda longa de Junho de 2013, trazendo, uma vez mais, à tona um país sem respostas às questões contemporâneas. “Os protestos nas ruas testemunham que o país está longe de estar pacificado, que o sistema político não achou nenhuma saída para o tríplice desafio da crise econômica, de representação e da metrópole”, pondera. Segundo Cava, apesar de ter havido mudanças nos nomes do governo – de Dilma, passando por Temer, até chegar a Bolsonaro –, a forma política se manteve intacta, razão pela qual as ruas, desde Junho de 2013, tentam desorientar a bússola governamental. “Tudo isso é uma expressão cada vez mais audível de um novo proletariado metropolitano e biopolítico que, nas coordenadas locais brasileiras, segue perturbando as tentativas de restabelecer a ordem colocada em xeque em 2013”, complementa.

Rudá Ricci avalia que a manifestação do 15M foi “um sucesso estrondoso, um sucesso muito maior do que os organizadores imaginavam”. Para ele, fica evidente que, embora não reconheça, o governo foi abalado. “E abalou principalmente os apoiadores e formadores de opinião desse governo. É o caso do Movimento Brasil Livre – MBL, que postou no Twitter uma avaliação muito sensata, por sinal, dizendo que o governo errou na leitura do que significa a educação no Brasil e abriu uma brecha para a esquerda, um espaço que há muito tempo ela não conseguia ocupar. O Antagonista, que é um veículo que também sabemos que é muito conservador, acusou que [Jair] Bolsonaro ficou isolado”, destaca.

Para o professor Carlos Eduardo Santos Pinho, “as manifestações estudantis já deram o sinal de que o governo necessita urgentemente remodelar sua postura autoritária e dialogar com as diversas instâncias da sociedade”. “O fato é que o anúncio dos cortes de forma atabalhoada e desastrada suscitou a insatisfação tanto de segmentos defensores de maiores investimentos públicos para as instituições federais de ensino superior quanto daqueles que criticam a (suposta) ineficácia dessas instituições”, observa. E acrescenta: “O mandatário populista de extrema direita e conservador nos costumes, ao chamar os estudantes de “imbecis” e “idiotas úteis”, fomenta um ambiente de hostilidade e polarização”.

Cesar Sanson lembra que o movimento teve “adesão de praticamente toda a sociedade e grupos sociais, da classe média que tem seus filhos em universidades públicas, aos mais pobres que também aspiram chegar a essas instituições de ensino superior, uma das poucas referências de ensino de excelência”. Entretanto, quando se trata de avaliar se os protestos abalam o governo Bolsonaro, Sanson é ponderado. “O mercado sustentará o governo até o limite enquanto esse continuar fiel à sua agenda, sobretudo a da Reforma da Previdência.”

José Geraldo de Sousa Júnior pontua que a manifestação de quarta-feira teve “unidade de agenda, com alianças que superaram antagonismos não contraditórios” e “sinalizou que a rua é o lugar simbólico da ação instituinte dos movimentos sociais e dos sujeitos coletivos, para a reivindicação democrática de direitos”.

Na entrevista a seguir, os convidados pela IHU On-Line também comentam quais podem ser as consequências políticas dessas mobilizações e estabelecem relações com as jornadas de Junho de 2013.

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José Geraldo de Sousa Junior possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal - AEUDF, mestrado e doutorado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UNB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos. Professor da UNB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais. Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UNB.

 

Bruno Cava é pesquisador associado à rede Universidade Nômade (uninomade.net). Professor de Filosofia, oferece cursos livres em instituições culturais no Rio de Janeiro (Cinemateca do MAM, Casa de Rui Barbosa, Museu da República). É graduado em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, pela qual também é mestre em Filosofia do Direito. Autor de vários livros, em 2018 publicou New Neoliberalism and the Other. Biopower, antropophagy and living money (Lanham: Lexington Books, 2018), com Giuseppe Cocco.

 

Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É presidente do Instituto Cultiva, cujo programa Comunidades Educadoras que criou acaba de receber distinção da Unesco como programa educacional mais exitoso do Brasil, figurando entre 16 experiências exitosas do mundo. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp, 1999), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010), coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp, 2004), e Conservadorismo político em Minas Gerais: os oito anos de governo Aécio Neves (Editora Letramento, 2017), entre outros. 

 

Paulo Kliass é graduado em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas – SP, mestre em Economia pela Universidade de São Paulo - USP e doutor em Economia pela Université de Paris 10, e especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Atualmente está lotado na Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia - Diest do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.

 

Carlos Eduardo Santos Pinho é professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Unisinos. Realizou estágio pós-doutoral no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT/PPED), e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política, da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Ainda é doutor e mestre em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – IESP/UERJ e bacharel e licenciado em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IFCS/UFRJ).

 

Cesar Sanson é professor e pesquisador na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN com o tema sociologia do trabalho. Possui graduação em Filosofia e História pela Pontifícia Universidade Católica - PUC-PR, com especialização em Economia e Trabalho pela Universidade Federal do Paraná –  UFPR, mestrado e doutorado na área da sociologia do trabalho pela UFPR. É autor de Trabalho e Subjetividade. Da Sociedade Industrial à Sociedade Pós-Industrial (Natal: UFRN, 2014).

 

Confira as entrevistas.

IHU On-Line - Que avaliação faz das manifestações de ontem, levando em conta que essa foi a primeira grande mobilização no país depois de quatro meses de governo Bolsonaro?

José Geraldo de Sousa Jr. (Foto: Agência Brasil)

José Geraldo de Sousa Júnior - De fato foi a primeira grande manifestação no país, em extensão e em intensidade. Distribuiu-se por todos os estados e no Distrito Federal e num sem número de cidades. Não foi a primeira grande manifestação. Agora em abril, em Brasília, instalou-se também o Acampamento Terra Livre, uma expressiva manifestação indígena, já tradicional, mas desta vez com a configuração de protesto ao governo ultraneoliberal, que cada vez mais se revela antipovo e vassalo do modelo de acumulação rentista. Com sua presença orgulhosa e consciente, as comunidades indígenas brasileiras confrontaram a hostilidade de uma governança encastelada na desfaçatez de sua vassalagem a uma agenda ultraneoliberal, e com a capacidade instituinte de suas organizações - Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB e Mobilização Nacional Indígena - MNI - reafirmaram o seu “compromisso de fortalecer as alianças com todos os setores da sociedade, do campo e da cidade, que também têm sido atacados em seus direitos e formas de existência no Brasil e no mundo”. “Resistiremos, custe o que custar. Não é nesse governo que os povos indígenas vão baixar a cabeça!”, eles afirmaram, mesmo constrangidos pela Força Nacional acionada especialmente - 33 dias - para dissuadir protestos. Ontem, numa escala de protagonismo que sai do discurso de atos dispersos e fragmentados, a manifestação, com unidade de agenda, com alianças que superaram antagonismos não contraditórios, sinalizou que a rua é o lugar simbólico da ação instituinte dos movimentos sociais e dos sujeitos coletivos, para a reivindicação democrática de direitos. É a esfera pública na qual, como lembra Marshall Berman, a multidão transeunte se transforma em povo.

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Bruno Cava em evento no IHU (Foto: João Vitor Santos - IHU)

Bruno Cava – Foi um divisor de águas. As maiores manifestações no período eleitoral, sob o slogan do EleNão, ficaram relativamente insuladas. Nas franjas do #EleNão, havia indiferença, a compreensão que aquele movimento era de um grupo específico. Nas manifestações do dia 15 de maio, foi o inverso. Houve poder de contágio e as franjas lhes eram simpáticas e potencialmente ampliáveis. Assim como o movimento dos caminhoneiros em 2018, os protestos nas ruas testemunham que o país está longe de estar pacificado, que o sistema político não achou nenhuma saída para o tríplice desafio da crise econômica, de representação e da metrópole.

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Rudá Ricci – É evidente que foi um sucesso estrondoso, um sucesso muito maior do que os organizadores imaginavam. A União Nacional dos Estudantes – UNE projeta um milhão e meio de manifestantes entre 190 e 210 cidades do país. Os estados que tiveram mais cidades envolvidas foram São Paulo, Minas Gerais e Bahia. Para se ter uma noção do que significou isso, no dia 20 de junho de 2013, que foi uma das últimas manifestações de junho, as duas últimas foram as maiores, foi estimado que um milhão e 250 mil pessoas estiveram nas ruas de diversas capitais do país. Em todas as três semanas de junho, nós tivemos, pelas estimativas de institutos de pesquisa e também universidades federais, quatro milhões de pessoas que saíram às ruas. Mas foi ao longo de três semanas. E lembrando que as maiores foram justamente nesse período que eu acabei de destacar.

Rudá Ricci durante entrevista à IHU On-Line, em 2018, na Unisinos Porto Alegre 
(Foto: Ricardo Machado - IHU)

Então, essa manifestação de quarta-feira foi gigantesca e abalou, evidentemente, o governo. E abalou principalmente os apoiadores e formadores de opinião desse governo. É o caso do Movimento Brasil Livre – MBL, que postou no Twitter uma avaliação muito sensata, por sinal, dizendo que o governo errou na leitura do que significa a educação no Brasil e abriu uma brecha para a esquerda, um espaço que há muito tempo ela não conseguia ocupar. O Antagonista, que é um veículo que também sabemos que é muito conservador, acusou que [Jair] Bolsonaro ficou isolado. É um período muito ruim para ele porque ele foi para Dallas, e todos sabem que o prefeito de Dallas [Mike Rawlings], que é democrata, não o recebeu e o [George] Bush [ex-presidente dos Estados Unidos] o recebeu por educação e disse que teve uma surpresa porque não tinha convidado Bolsonaro.

Além disso, nós tivemos esse caso de quebra de sigilo do [Fabrício] Queiroz e do filho do Bolsonaro, o Flávio, que é senador. Então, é uma situação que não poderia ser pior nesse momento. Ao mesmo tempo, o ministro da Educação [Abraham Weintraub] foi convocado a prestar esclarecimentos na Câmara e, em meio à manifestação, foi cercado, porque, evidentemente, os parlamentares leem as ruas, eles têm ouvidos abertos para isso. Na medida em que eles viam pelo celular as manifestações gigantescas, cercavam ainda mais o ministro da Educação para ter repercussão na sua base.

É uma situação muitíssimo delicada para o governo e, inclusive, ressaltaria uma questão a mais que revela o quanto isso é delicado: a imagem de Bolsonaro é uma imagem de que seria um xerife, meio desastrado, como ele mesmo diz, mas um xerife, uma pessoa forte, um macho alfa, e, agora, a autoridade dele foi quebrada. E essa imagem começa a rebater sobre a base dele, revelando que não é isso tudo que ele vendeu. Começa a aparecer que é uma pessoa frágil, com denúncia de corrupção na família e assim por diante.

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Paulo Kliass – Essa é a primeira grande manifestação passados quatro meses e meio de governo, e isso é surpreendente. Assim como o Bolsonaro não compareceu aos debates e conseguiu catalisar um sentimento generalizado contra tudo que está aí, agora, na medida em que começou a revelar o que é efetivamente a sua forma de governar e o conteúdo do seu governo, está conseguindo esse fato impressionante de juntar todo mundo contra as suas intenções, inclusive aliados que votaram nele ou na sua base no Congresso. Todos os analistas e militantes ficaram surpresos pela imensa dimensão que a manifestação teve nas grandes cidades, mas também pelo fato de ter ocorrido em cidades médias e pequenas. É como se fosse um termômetro do descontentamento.

Paulo Kliass (Foto: Filipe Calmon - ANESP)

Num primeiro momento veio à tona a questão da educação, mas isso já serve um pouco como sinalização para um descontentamento que vai influenciar outros aspectos, como a jornada marcada para junho contra a reforma da previdência, que o movimento sindical está organizando, a manifestação que a União Nacional dos Estudantes - UNE está prometendo para daqui duas semanas. As coisas começam a se mexer e as ruas são um bom reflexo disso.

 

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Carlos Eduardo Santos Pinho – As manifestações, que aglutinaram professores, servidores públicos, alunos, pais, sindicatos, partidos de esquerda, levando centenas de milhares de pessoas às ruas, salientaram o intenso desgaste do Governo Bolsonaro em somente quatro meses e 15 dias de (des)governo, sobretudo no que diz respeito à radicalização das medidas de austeridade fiscal iniciadas em 2015, quando Dilma Rousseff, numa tentativa desesperada de se aproximar da coalizão liberal-financeira e rentista, anunciou um ministro da Fazenda ortodoxo. Tal política neoliberal foi intensificada pelo governo parlamentar de Michel Temer mediante a aprovação da reforma trabalhista, da lei da terceirização e da Emenda Constitucional N. 95 (Teto de Gastos Públicos), que impõe um teto declinante sobre os gastos públicos (saúde, educação) durante 20 anos, criminalizando a importância do gasto social público e inviabilizando a relevância da política fiscal anticíclica em períodos de aguda e prolongada crise econômica, como a que está em curso.

Carlos Pinho (Foto: Arquivo Pessoal)

As evidências empíricas mostram que se trata de um governo autoritário sufragado eleitoralmente e em processo continuado de perda de popularidade entre os seus eleitores, sobretudo os das periferias e favelas das grandes metrópoles. Os diversos pronunciamentos de Bolsonaro, presentes nas mídias sociais, ao longo de sua inexpressiva carreira política, revelam o seu completo desprezo pelas instituições democráticas em suas dimensões representativa, participativa e deliberativa. Ademais, mostram a ignorância com relação à relevância da comunidade científica e os pesquisadores, notabilizando uma política de sucateamento e desestruturação do aparato científico-tecnológico e a formação de recursos humanos qualificados.

O mandatário populista de extrema direita e conservador nos costumes, ao chamar os estudantes de “imbecis” e “idiotas úteis”, fomenta um ambiente de hostilidade e polarização, na medida em que tenta mobilizar a sociedade e o seu eleitorado cativo contra as universidades públicas, a pesquisa científica, os professores e alunos. É importante salientar que o ministro da Educação, Abraham Weintraub, ao ser convocado para explicar a magnitude dos cortes na Câmara dos Deputados na quarta-feira, replicou a postura autoritária de enfrentamento, provocando os partidos da oposição e perguntando se os parlamentares conheciam a carteira de trabalho “azulzinha”. Ora, nas democracias representativas de massa, e particularmente no Brasil, dada a especificidade do presidencialismo de coalizão, é fundamental que o presidente e seus ministros negociem civilizadamente com o parlamento a agenda de políticas públicas.

O traquejo com o Congresso, o diálogo, a conversa são uma condição para a governabilidade, o que não se verifica no atual (des)governo. Mesmo os deputados do “centrão”, bloco tradicionalmente conservador, que o governo tenta inserir em sua base de apoio parlamentar, ficaram insatisfeitos com as declarações do ministro, assim como a bancada da educação.

Governo a partir da imposição

O (des)governo em curso muito me faz lembrar Montesquieu, um dos fundadores da Sociologia e autor da obra clássica “Do Espírito das Leis”, quando, no menor e mais contundente capítulo do livro, ao descrever o governo despótico, diz o seguinte: “Quando os selvagens da Louisiana querem colher uma fruta, cortam a árvore embaixo e apanham-na. Eis o governo despótico” (MONTESQUIEU, 1973, p. 79). Ou seja, o governo Bolsonaro não tem previsibilidade, regramento, moderação, pois governa a partir do medo e da imposição. É um governo completamente desprovido do “espírito da moderação”, crucial em uma democracia plural e diversificada como o Brasil, cuja população e território são descomunais, além das especificidades regionais.

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Cesar Sanson (Foto: João Vitor Santos/IHU)

Cesar Sanson – Foram as maiores manifestações de rua pós-junho 2013, espalhadas por todo o Brasil, nas capitais, cidades médias e até mesmo pequenas. São significativas porque furaram a bolha das manifestações anteriores que invariavelmente reuniam apenas militantes da tríade: partidos de esquerda, sindicatos e movimentos como Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST e Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - MTST. Dessa vez foi diferente, havia gente que costumeiramente não costuma ir às ruas com frequência. Ainda mais, tiveram a adesão de praticamente toda a sociedade e grupos sociais, da classe média que tem seus filhos em universidades públicas, aos mais pobres que também aspiram chegar a essas instituições de ensino superior, uma das poucas referências de ensino de excelência. O denominador comum para tamanha adesão foi o tema da educação que junto com a agenda da saúde é unânime em sua necessidade de maior atenção e investimentos.

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IHU On-Line – As manifestações expressam um descontentamento pontual com algumas pautas do governo Bolsonaro ou um descontentamento que permanece na sociedade desde junho de 2013?

Paulo Kliass – É difícil avaliar e creditar um único aspecto como responsável. Quer dizer, a manifestação já estava marcada pelos sindicalistas, professores e funcionários ligados à educação, mas o “time” da política acabou atropelando: houve o destempero do ministro da Educação, o destempero do presidente, chamando os jovens de “idiotas úteis”, e isso acabou criando um caldo de cultura que unificou o conjunto da comunidade acadêmica e acabou sensibilizando outros setores e familiares de alunos, de professores e de funcionários em torno de um sentimento generalizado de perceber que o que está colocado em questão é o futuro da educação, assim como a previdência é o futuro dessa geração. As pessoas estão começando a se dar conta de que é fundamental termos políticas públicas para setores essenciais, como saúde, educação e previdência, e de que a visão mais fiscalista de que a única solução é promover corte de verbas, acaba inviabilizando essas políticas a longo e curto prazo. Por outro lado, as pessoas percebem que essa medida não é justa porque tem uma série de outros gastos que continuam acontecendo, como os gastos financeiros, e contra esse gasto o governo não se manifesta. O governo não acha um problema gastar milhões com o pagamento dos juros da dívida, mas considera um problema dar recursos para a educação, a saúde e a previdência.

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IHU On-Line - As manifestações podem produzir algum impacto no governo?

José Geraldo de Sousa Júnior - Já produziu. Acentuou a percepção de que temos um governo com baixa legitimidade porque constituído por artificialismos, mentiras políticas, e à base do uso retorcido do formalismo parlamentar-judiciário, esvaziado de materialidade democrática que desconstitucionaliza o país e cuja única unidade parece ser o assalto ao orçamento social e aos bens públicos que formam o ativo estratégico da soberania nacional. Ulysses Guimarães costumava dizer que a única coisa que amedronta congressistas é a ação do povo na rua. A base governamental, sob impacto das manifestações já desde a sua preparação, começou a bater cabeça. Passou a se auto injuriar, exibir suas dissenções, fragilizar-se em suas "lealdades".

Às vésperas das manifestações fez água o projeto punitivista e destituinte de garantias legais do ministro da Justiça, com o derretimento de sua reputação, provocado pelo próprio presidente da República confessando a "negociação" de vantagens, em contornos tipificados no Código Penal. Foram seguidas derrotas no Parlamento culminando com a convocação do ministro da Educação para explicar o corte-represália de recursos das universidades erigidas em adversário ideológico porque âmbito do pensar crítico, de um projeto que parece ter, como mostra a História nas experiências do nazismo, do fascismo e de todos os totalitarismos, horror à inteligência.

Um impacto visível é o da separação provocada pelas manifestações entre o joio e o trigo governamental e agora, parece, a necessidade de operar as separações pragmáticas entre o joio e o joio (definição das disputas internas, com o aglutinamento da hegemonia militar como núcleo de poder; depuração das influências extravagantes no centro político da governança com a purgação do gangsterismo-milicianismo-filhotismo que a corrói). Nesse processo não devem sobreviver posturas obscurantistas no plano dos valores, das relações internacionais e, sobretudo, no tesouro a preservar de toda nação avançada, a cultura e a educação.

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Bruno Cava – A força das manifestações é imediatamente força política para a agenda anti-Bolsonaro. Será usada tanto como tentativa de recomposição do petismo através da capilaridade que o partido possui nas universidades. Apesar de francamente minoritária, a presença de aparelhos, militantes partidários e do próprio Haddad como elementos integrados à paisagem dos protestos indica uma tendência. Como também será usada na tentativa de amansar uma liderança anticasta e antipolítica, por parte de setores da mídia, do Congresso e dos partidos tradicionais, que veem na ascensão bolsonarista uma fratura do velho mecanismo oligárquico de funcionamento da representação.

A insistência de Bolsonaro de não jogar o jogo necessário para compor a supermaioria e aprovar as reformas pode levá-lo à ingovernabilidade, e talvez esse seja o passo que ele mesmo entende como desejado. Provavelmente, um passo maior que a perna, pois os inimigos e desafetos estão se acumulando. Mas há um componente de estratégia nessa espontaneidade “louca” das atitudes do presidente, pois é o método de mobilização das redes que o apoiam, através das guerras culturais, no que ele vinha ganhando. Evidentemente que essa dupla captura (pela casta à esquerda ou direita) não neutraliza uma força mais intensiva, menos imediatamente reversível para a conjuntura, que é a retomada pela multidão da iniciativa tumultuária. Neste último sentido, há vetores de neutralização de sua potência que devem ser enfrentados na prática: um centrífugo que é a entropia dispersiva que pode acometer uma sequência de protestos; outro centrípeto, que é deixar-se aparelhar e ser instrumentalizado.

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Rudá Ricci – O primeiro impacto no governo é ele descobrir o que significa educação no Brasil. Ele é um mau leitor de dados. O que tínhamos, basicamente, era a emergência – a partir da inclusão pelo consumo implementado pelo governo Lula, fazendo aumento real do salário mínimo, promovendo crédito subsidiado e popular e com bolsa família, que aumentou muito o mercado interno brasileiro – de ascensão daqueles que eram pobres, que estavam à margem do mercado de alta renda e que começaram a comprar celulares, TV de tela plana e a viajar de avião. Esse pessoal, ao invés de desenvolver uma certa solidariedade ou empatia com o governo, passou a alimentar a ideia de que aquele era o momento de mostrar o quanto capazes eles são. Muitos entraram em faculdade, ou seja, a ideia da meritocracia.

Acontece que, como já fica mais ou menos desenhado, a educação entra nessa garantia da permanência no patamar superior de renda ou até de melhoria dessa renda. Ou seja, se pensa: ‘pela educação chegou a minha vez’. E, aí, o Bolsonaro tirou a esperança dessas famílias. Portanto, ele não deu chance só de a esquerda voltar com as suas pautas, mas ele demonstrou que não tem nenhum apreço efetivo pelas populações pobres que pela primeira vez têm um filho que entra numa faculdade, ou num instituto federal ou numa universidade pública e vai ser o primeiro professor universitário ou médico da família. Ele destruiu esse sonho da possibilidade das pessoas pobres demonstrarem seu valor pelo estudo, a partir do estudo, como uma escada. Com isso, ele não mexeu só com o aluno e nem só com o professor. Ele mexeu com muitas famílias de renda baixa no Brasil. O impacto inicial é esse.

Centrão

Agora, vamos ver como é que o centrão, que é quem comanda de fato o Congresso Nacional, vai aproveitar essa onda para agir. Nós já vimos que a reforma tributária foi acertada pelo centrão e está avançando sem nenhuma articulação com o governo ou com os partidos diretamente ligados com o governo, inclusive o PSL. Veja que temos a ameaça de um anúncio de uma espécie de governo paralelo dentro do parlamento, que a Constituição de 1988 possibilitou através desse hibridismo, um presidencialismo meio parlamentarista. Esse pode ser o segundo impacto maior.

Popularidade

Vamos ver qual deve ser a repercussão sobre a questão da queda de popularidade do governo, pois não se sabe ainda se o piso de apoio ao Bolsonaro, o piso mais consistente, mais orgânico, está em 15 ou 30%. Se está em 30%, já teria chegado no piso. Mas, talvez, essas manifestações mostrem que ele tem menos apoio que se revelou inclusive nas eleições, no final do primeiro turno. Talvez, o piso dele seja o que tinha antes do episódio da facada, menos de 15%. Então, pode ser que tenha, nas próximas pesquisas, uma queda de popularidade na base de apoio ainda maior.

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Paulo Kliass – Podemos tentar fazer alguma especulação, mas o primeiro ponto a considerar é que essa é a primeira grande manifestação que acontece no governo Bolsonaro. Por que digo isso? Porque é um governo que, aparentemente, não está interessado em dar respostas ao que a sociedade, de uma forma ampla, pensa e propõe. Ele tem mostrado na sua atuação como parlamentar, na sua forma de fazer política no Rio de Janeiro com os seus três filhos, e ao longo da campanha eleitoral e depois da posse, que ele não está muito disposto a ouvir a rua. Por outro lado, tem um problema concreto: qualquer governo que respeita as regras democráticas e as instituições teria que dialogar e responder às demandas não só dos movimentos sociais, mas também da sua base aliada no Congresso.

Acho que aí pode ter alguma novidade, quer dizer, imagino que quando ele estava partindo para os EUA e largando o país nessa grande crise política e institucional, percebeu que o governo foi derrotado no Congresso quando se promoveu a convocação do ministro da Educação, ou seja, boa parte da base do governo votou contra a orientação do partido do presidente. Se ele continuar nessa dinâmica de não respeitar, vai correr um risco político para a continuidade do seu governo.

Agora, não podemos ter muita ilusão, porque o governo é representado também pelo Paulo Guedes, que é o superministro da Economia, e pelo Abraham Weintraub, que é ministro da Educação e que é um economista do sistema financeiro. Eles já deram todas as sinalizações de que esses cortes vieram para ficar. Então, de duas, uma: ou quando o Bolsonaro voltar de viagem, ele vai sentar com os ministros e convencê-los de que é preciso um recuo e, politicamente, isso será uma grande vitória, ou eles vão inventar uma solução meia boca, como já estão dizendo agora que não se trata de um corte, mas de um contingenciamento. Mas de alguma maneira eles terão que dar uma resposta para a sociedade, porque ontem [15-05-2019] ficou claro que o Brasil não aceita essa política de cortes de gastos.

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Carlos Eduardo Santos Pinho – As manifestações estudantis já deram o sinal de que o governo necessita urgentemente remodelar sua postura autoritária e dialogar com as diversas instâncias da sociedade. O fato é que o anúncio dos cortes de forma atabalhoada e desastrada suscitou a insatisfação tanto de segmentos defensores de maiores investimentos públicos para as instituições federais de ensino superior quanto daqueles que criticam a (suposta) ineficácia dessas instituições com relação à gestão e operacionalização dos recursos.

Além de demonizar e defenestrar as Ciências Sociais, a Filosofia e a Sociologia, o (des)governo conduz um processo de desmonte de instituições edificadas e construídas em longo prazo – como é o caso da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível SuperiorCapes, criada em 1951 –, promove a desestruturação de um arcabouço institucional de pesquisa científica e o imperdoável desperdício de jovens talentos que necessitam de bolsas de mestrado/doutorado (sem reajuste há anos) para conduzirem suas pesquisas de dissertação de mestrado e teses de doutorado. Evidentemente que as externalidades sociais, psicológicas e pessoais das medidas (inconsequentes) de austeridade radical implementadas pelo (des)governo de Bolsonaro são incalculáveis e irreparáveis. É um governo que joga no lixo o sonho de realização pessoal e inserção profissional de jovens e talentosos pesquisadores. É retroceder ao século XIX e tornar o Brasil aferrado à vocação agrária.

Caso Bolsonaro insista nas medidas, a tendência é de crescimento das manifestações, inegavelmente. O mandatário populista está incendiando o povo e o convocando a protagonizar mais e mais protestos. Lideranças partidárias e até militares do Ministério da Defesa consideraram um erro a estratégia de Bolsonaro de enfrentamento dos manifestantes. É um governo acéfalo, sem estratégia de desenvolvimento, agressivo, completamente inapetente do ponto de vista da coordenação política, ignorante e com fortes tendências autocráticas e autoritárias. Até a ditadura militar (1964-1985) investiu fortemente na capacitação de recursos humanos na pós-graduação via fortalecimento das instituições de fomento e concessão de bolsas para pesquisadores.

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Cesar Sanson – As manifestações aumentam consideravelmente o desgaste do governo. Uma coisa é a oposição no parlamento, nas redes sociais, as críticas pela imprensa, outra coisa é a rua. Nessas, a potência do estrago é muito maior. Não há sustentação política a longo prazo sem o mínimo de legitimidade na sociedade. Lembremos do governo Temer que com zero de popularidade se arrastou até o final. Temer se tornou um prisioneiro do Palácio do Planalto, não podia ir às ruas. As manifestações dos estudantes reverberam no mundo da política e criam dificuldades adicionais para o governo tocar a sua agenda que já se apresenta confusa. Porém, não sejamos ingênuos, o mercado sustentará o governo até o limite enquanto esse continuar fiel à sua agenda, sobretudo a da Reforma da Previdência. Caso, entretanto, as ruas comecem a atrapalhar as reformas, tudo ser tornará indefinido.

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IHU On-Line - Que aproximações e distanciamentos podemos fazer entre as manifestações de ontem e Junho de 2013?

José Geraldo de Sousa Júnior - A grande aproximação está no discernimento agudizado de que a rua, em seu sentido estrito de lugar de manifestação e de luta por reconhecimento dos temas que formam a agenda democrática (Castro Alves - O Povo ao Poder - "...quereis a praça? Desgraçada a populaça só tem a rua de seu..."), é o lugar político para a reivindicação social e por reconhecimento de cidadania e de direitos.

Em 2013, esse foi o estopim das manifestações, mas o seu inusitado se deu com a usurpação pelo fascismo social amplificado por uma mídia associada a um processo de intervenção contra a governança instalada (eu costumo caracterizar a factualidade de um golpe parlamentar-judiciário-midiático opondo ao projeto popular de sociedade um projeto neoliberal corporativo, conforme o meu artigo Estado democrático da direita, publicado em BUENO, Roberto (org), Democracia: da Crise à Ruptura, Max Limonad, 2017).

O distanciamento está em que a reverberação dos acontecimentos de 2013, logo apropriados pelos segmentos que agiram para ultimar o golpe, não correspondeu a uma unidade de protagonismo social, nem a uma agenda ética para a política de reconhecimento das expectativas de inclusão, de dignidade e de direitos. Nas manifestações de ontem, contra todos os partidos da aliança governista, da grande mídia, de corporações financiadoras de mobilizações neoliberais, setores conservadores de igrejas, essa unidade de agenda revelou o denominado "momento de fusão" de que fala o sociólogo Lúcio Kowarik, que é o ingrediente para liberar a "consciência possível" do avanço dos movimentos sociais, mesmo quando aparentemente "derrotados" ou em "refluxo", apaziguados e acomodados pelo imobilismo de sua "consciência real", em geral mais acessível a pesquisas de conjuntura.

Essa distinção formulada pelo sociólogo Lucien Goldman, de cuja leitura valeu-se Paulo Freire, pode ser ilustrada em metáfora que ele próprio utilizou para indicar esse processo: "o povo que cuspia na tumba do czar era o mesmo que no dia anterior beijava o chão que ele pisava".

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Bruno Cava – Estamos no longo Junho. É pertinente adotar Junho como ponto de vista para esses protestos, desde que não seja usado como régua normativa, para homologar ou condenar protestos. Ontem foi tão tensionado por Junho quanto o ciclo do impeachment de Dilma, a mobilização social em prol da LavaJato, toda a ramificação de redes inéditas de mobilização que apareceram na greve dos caminhoneiros e nas eleições de 2018. Tudo isso é uma expressão cada vez mais audível de um novo proletariado metropolitano e biopolítico que, nas coordenadas locais brasileiras, segue perturbando as tentativas de restabelecer a ordem colocada em xeque em 2013.

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Rudá Ricci – Fora o volume de manifestantes na rua, que eu já citei, é algo muito significativo porque se nós tivemos de fato um milhão e meio de pessoas nas ruas e durante quatro semanas nós tivemos quatro milhões, nós teríamos um impacto tão grande quanto 2013 junto na população. O impacto aqui, na verdade, é a capacidade de mobilização e de envolvimento emocional, de indignação. Só que ali, em 2013, nós tivemos uma manifestação que se arrastou durante semanas e criando um pânico em todo sistema partidário, não só no governo federal. Muitos governadores ficaram numa situação delicadíssima, assim como prefeitos. Agora, não sabemos se essa manifestação vai se encadear, já que está sendo chamada uma nova para o dia 30 de maio, e se vai criar de novo aquele efeito dominó e colocar o sistema partidário na parede. Aí sim muda a situação política do país.

Fora isso, eu não vejo muitas correspondências. Talvez no Rio. Vamos só lembrar que o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul são os dois estados em que os anarquistas são mais fortes e, normalmente, anarquista usa aquela técnica do black blocks. E nós tivemos, no final da manifestação do Rio – embora nós tenhamos também a polícia mais violenta em São Paulo e Rio de Janeiro, o que também pode influenciar isso – um único local de conflito mais pesado, com ônibus incendiado.

Não havia correspondência a 2013, nem do discurso sem liderança, nem do horizontalismo, nem a pauta. O foco da última quarta-feira era educação e essa ideia que eu esbocei na segunda resposta, que é a possibilidade de sucesso e ascensão social pelas famílias de renda baixa no Brasil ser interditada, ser proibida por uma decisão intempestiva, pouco racional do governo federal. Temos que manter certas distâncias até se consolidar de fato essa mobilização como uma sequência de mobilizações. Além do mais, se em 2013 os partidos clássicos entraram em crise, na dessa semana, em função da gangorra PT e Bolsonaro, ela pode pender mais para esquerda. Não temos certeza, mas talvez, ainda pode fortalecer mais o centrão no campo institucional. Naquela oportunidade, pelo menos num primeiro momento, não ocorreu isso. Só depois, no segundo semestre, que o PMDB foi ganhando força, como será o caso, imagino, com o centrão no campo institucional.

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Carlos Eduardo Santos Pinho – As manifestações de 2013 emergiram por ocasião do aumento das tarifas de transporte público nas principais capitais do país, conferindo notabilidade o Movimento Passe Livre - MPL, que se diz “autônomo, apartidário e independente”. Os protestos sofreram forte repressão do aparato coercitivo militar e, consequentemente, ganharam impressionante e volumoso apoio popular. A intensificação dos protestos convergiu para a ampliação das pautas, abarcando temas como a precariedade dos serviços públicos (Saúde e EducaçãoPadrão Fifa”), o combate à corrupção incrustada na política, os gastos excessivos com a construção de estádios para a Copa do Mundo, etc. Os protestos de 2013 tiveram um caráter mais ambíguo, multifacetado, heterogêneo e contraditório, haja vista a presença de setores tanto à esquerda como à direita do espectro ideológico/partidário e, portanto, com pautas antagônicas.

Do ponto de vista da economia política, os protestos de 2013 irromperam em um cenário de desaceleração das taxas de crescimento econômico, intervencionismo do governo (contrariando o empresariado industrial e o capital financeiro) e recrudescimento da inflação, o que deteriorou a popularidade da presidente Dilma Rousseff e acarretou o seu desgaste político. A partir das manifestações de junho de 2013, surgiram movimentos com uma pauta liberal-conservadora, que se articularam amplamente pelas mídias sociais e tecnologias de informação e comunicação. Esses movimentos deram suporte societal à eleição de Jair Bolsonaro, tais como o Vem pra Rua, o Movimento Brasil Livre - MBL, o Escola Sem Partido e o Revoltados ON LINE.

Os protestos de quarta-feira revelam algo inovador, após a consumação do golpe parlamentar revestido de legitimidade democrática de 2016, cujos protagonistas foram Michel Temer, o Judiciário, a mídia oligopolista, as classes abastadas, a grande imprensa, os economistas ortodoxos, o empresariado industrial, o mercado financeiro e as agências de classificação de risco, e que vem impondo o primado da constitucionalização da austeridade fiscal radical e perpétua no Brasil. O que há de novo, portanto, é a possibilidade de reversão do quadro de apatia, paralisia e inércia que imperavam na sociedade brasileira e, particularmente, entre os setores progressistas.

Abre-se uma janela de oportunidades para a reconstrução do (debilitado) tecido democrático a partir da mobilização e das demandas da sociedade civil por políticas públicas de educação, ciência, tecnologia, inclusão social e desenvolvimento. Isso tudo além de articular estudantes, servidores públicos, pais de alunos, movimentos sindicais, agremiações políticas de esquerda e professores das universidades federais, os sindicatos de professores de escolas privadas, como a Associação Brasileira das Escolas Particulares - Abepar, que criticaram as medidas de Bolsonaro que ameaçam os alicerces e as conquistas históricas da educação brasileira.

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Cesar Sanson – As aproximações são muitas: 1) a grandiosidade das manifestações reunindo milhares de pessoas e o seu espraiamento por todo o território nacional; 2) a presença massiva e majoritária da juventude, particularmente dos secundaristas; 3) o caráter político-horizontal das manifestações, ou seja, a ausência de dirigismo. Assim como em 2013, não havia ‘donos’ dos atos, as ruas se transmutaram em sociedade e vice-versa; 4) a defesa da educação, lembremos que uma das consignas na origem de Junho 2013 era “queremos educação padrão fifa”. Como distanciamento, pode-se destacar o fato de que em 2013 a pauta era difusa, não havia uma única demanda agregadora, dessa vez as ruas responderam a um ataque explícito à educação pública. Também chama atenção de que diferente de Junho 2013, dessa vez a ira, ao contrário de se dirigir contra toda a classe política, se dirigiu sobretudo a duas figuras: o presidente da República e o ministro da Educação.

Resta saber se haverá uma continuidade do 15M. Junho 2013 foi o início da derrocada de Dilma. Não está descartado que na esteira do 15M, associado a outras ‘bombas’ como a ligação do filho senador com as milícias, se assista ao início do inferno astral do governo Bolsonaro.

 

 

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