“O cristianismo foi a revolução mais radical da história”. Entrevista com Tom Holland

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24 Junho 2020

Na semana santa, não se viu desfilar pelas ruas as imagens do Cristo crucificado e nos templos também não ecoaram as orações dos fiéis clamando pela vida eterna prometido por aquele sacrifício. No entanto, a maior pandemia de que se tenha registro não conseguiu alterar, ao menos de momento, a sólida teia de valores morais sobre os quais se assenta a nossa civilização.

Muitos deles, segundo o historiador britânico Tom Holland (Condado de Wiltshire, Reino Unido, 1968), têm sua raiz no cristianismo. Com a dedicação de taxidermista, o pesquisador desfaz e classifica os fios desta teia ética e cultural em “Dominio” (Ático de los libros), um ensaio que não se lê como um tratado de religião, mas como “a melhor história, jamais contada”.

A entrevista é de Juan Fernández, publicada por El Periódico Extremadura, 23-06-2020. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Por que define assim a história do cristianismo?

Avalie você mesmo. Esta é a história de um homem que morre da pior forma imaginável, crucificado, humilhado como um escravo, sem dignidade, e que, tempo depois, acaba sendo louvado como um deus pelo mesmo sistema imperial que o torturou e coloca em pé um sistema de valores que perdura 2.000 anos. Não me ocorre outra história mais fascinante.

Por isso, animou-se em relatá-la?

O que me moveu a realizar esta pesquisa foi a contradição que encontrava continuamente em meu trabalho. Como historiador do mundo clássico, sinto-me mais perto de Pôncio Pilatos que de Jesus de Nazaré. As histórias dos gregos e os romanos sempre me pareceram mais interessantes que as dos cristãos, e seus deuses, muito mais sedutoras. No entanto, vi que quanto mais sabia deles, mais estranhos me pareciam seus padrões morais. Alguns me chegavam a dar medo. Até que descobri que a culpa era do cristianismo.

Do cristianismo?

Percebi que minha visão está condicionada pelos valores que nutri desde pequeno e que fazem parte de mim, sem me dar conta. Não falo de algo pessoal, mas de uma realidade cultural. Da família ao sexo, dos costumes à ordem social, tudo o que nos cerca está marcado por essa influência. Para explicar, costumo usar o exemplo do aquário. Se a sociedade em que vivemos é um aquário e nós somos os peixes, o cristianismo é a água em que nadamos. Formou nossa mentalidade moderna a partir de parâmetros morais e intelectuais.

Quais são esses valores cristãos que você menciona?

Não se trata de fé, mas de princípios éticos. Em essência, há dois. Um proveniente do Gênesis e é a ideia de que nós, homens e mulheres, fomos criados à imagem e semelhança de Deus, que todos somos iguais e cada um tem sua própria dignidade que deve ser respeitada. Isto não existia na Roma anterior a Jesus, nem na Grécia, mas está na base de muitas das revoluções que houve séculos mais tarde. O outro grande valor cristão que perdura tem a ver com a cruz.

Com a cruz?

Jesus dizia que os últimos na Terra serão os primeiros no Reino dos Céus, e isto se fez realidade na cruz, que é o elemento que simboliza que o fraco pode se tornar o poderoso. Esta ideia é enormemente revolucionária e embebe nossa cultura até limites imperceptíveis. A crença de que através do sacrifício é possível melhorar na vida e mudar a ordem das coisas foi um dos motores que fez a nossa civilização avançar. Por isso, digo que o cristianismo foi a revolução mais radical da história.

E não considera que esses valores transcendem ao cristão e teriam guiado nossa cultura, mesmo que o cristianismo não os tivesse proclamado?

Nunca saberemos isso. A única coisa que sabemos é que essa concepção fraterna e igualitária do ser humano não existia antes de Jesus. O egoísmo faz parte de nosso instinto desde a noite dos tempos. De fato, a lógica darwiniana diz que o forte destrói o fraco para melhorar a espécie. Nesse sentido, o cristianismo foi uma estranha mutação desse gene.

Em que medida o devir da história reforçou a influência do cristianismo no mundo?

Um dos grandes acertos do cristianismo foi sua capacidade em se reinventar e que seus valores seguissem configurando o mundo. Fez isso ao final do Império Romano, na Idade Média, com a Reforma Protestante, no Iluminismo e até na Revolução Francesa, que foi inspirada em princípios nitidamente cristãos.

No século XIX, Darwin revelou a origem das espécies, Nietzsche proclamou a morte de Deus e Marx disse que a religião é o ópio do povo. O século XX se fundou sobre princípios laicos. Como esses valores cristãos puderam perdurar?

Permita-me adverti-lo que “O Capital” de Marx está cheio de referências inspiradas no cristianismo, como a ideia de que os justos herdarão a terra e que esta deve ser propriedade de quem se sacrifica por ela. Nietzsche tinha lido Darwin quando proclamou que os fortes devem triunfar sobre os fracos, mas este pensamento derivou no nazismo, que é o modelo mais anticristão que existe. Sua expressão na Alemanha hitleriana acabou reforçando o cristianismo, porque nos permitiu enxergar aquilo que jamais devemos ser.

Por que acredita que o cristianismo conseguiu fazer com que prevaleçam seus valores e outras religiões não tiveram a mesma sorte?

O judaísmo, o hinduísmo, o budismo e o confucionismo nunca almejaram que seus princípios fossem universais. O islã, sim. Nesse sentido, o islã é o gêmeo, é o rival, do cristianismo, mas este foi mais hábil na hora de se reformar e se adaptar aos diferentes cenários históricos que surgiram com os tempos, até conseguir fazer com que seus valores sejam percebidos como universais até pelos não cristãos. O cristianismo não é só uma religião e um conjunto de princípios morais. Também tem sido um sistema de poder ao longo da história.

Em seu livro, diz que a canção “All you need is love” dos Beatles é uma expressão do triunfo dos valores cristãos, afirmação no mínimo atrevida.

Em seu percurso histórico, o cristianismo foi incorporando influências de todo tipo e se adaptou a diferentes circunstâncias. Sua última grande mutação ocorreu nos anos 1960 e se expressou através da constelação de movimentos de libertação e de justiça social que explodiram nesse momento, do feminismo à reivindicação dos direitos humanos ou os do coletivo gay. Luther King, que era um sacerdote batista, disse: se todos nós somos iguais diante de Deus, os negros e os brancos devem ter os mesmos direitos. O amor fraterno do movimento hippie é o mesmo que Jesus proclamava.

Como andam esses valores na atualidade?

O cristianismo se encontra hoje diante de um dilema. Por um lado, inspira movimentos de irmandade e libertação pessoal. Por outro, aparece associado ao pensamento político conservador, que se opõe a esses avanços. Este paradoxo tem muitas expressões, da luta pelo matrimônio gay ao desafio da crise migratória. Merkel abriu as portas da Alemanha se inspirando nos princípios cristãos em que cresceu, como o da Parábola do Bom Samaritano. Ao contrário, Viktor Orbán fechou a Hungria aos migrantes alegando que temia perder sua identidade cristã. Isto já ocorreu na Espanha na guerra civil.

O que quer dizer?

Os republicanos eram contrários à igreja, mas a justiça social quer reivindicavam era de inspiração cristã. Ao contrário, Franco era muito católico, mas, por sua vez, defendia o fascismo e Hitler, que é a antítese do cristianismo. Esta contradição segue ocorrendo, hoje, em lugares como os Estados Unidos. Trump é o presidente menos cristão que esse país já teve, mas reúne o apoio de milhões de eleitores que se declaram cristãos.

Que futuro prediz ao cristianismo?

É difícil saber. Apesar do laicismo imperante, o cristianismo continua ganhando adeptos na África e América Latina e continua sendo o credo com mais seguidores do planeta, mas é provável que no Ocidente tenha chegado ao seu fim natural. Isto não significa que seus valores desapareçam. O cristianismo cumpriu a missão de proclamá-los e propagá-los e já fazem parte da cultura universal.

 

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