O coronavírus nos obriga a reconsiderar a biodiversidade e seu papel protetor

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24 Março 2020

“O aquecimento global e outras formas de alteração dos ecossistemas, como a mineração, estão expondo e reativando bactérias resistentes a antibióticos e vírus antigos potencialmente perigosos para a nossa saúde”, denuncia Fernando Valladares, doutor em Biologia e membro do Conselho Superior de Investigações Científicas da Espanha (CSIC), em artigo publicado por El Diario, 20-03-2020. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Se seguirmos o ditado segundo o qual nos lembramos de Santa Bárbara quando troveja, em plena crise do coronavírus, deveríamos nos lembrar mais que nunca da biodiversidade. Há dez anos, a ciência revisou e verificou o papel protetor da biodiversidade diante de vírus parecidos e até muito mais perigosos que o coronavírus.

Uma única espécie, Homo sapiens, está fazendo desaparecer a biodiversidade global: já estamos ameaçando mais de um milhão de espécies. Isso é tão preocupante como paradoxal, uma vez que os múltiplos benefícios da biodiversidade são essenciais, especialmente nesses momentos: protege-nos de doenças infecciosas.

A existência de uma grande diversidade de espécies que atuam como hospedeiros limita a transmissão de doenças como o coronavírus e o ebola, devido a um efeito de diluição ou amortização. Mais de 70% das infecções emergentes dos últimos quarenta anos foram zoonoses, ou seja, doenças infecciosas animais que são transmitidas aos seres humanos. Com frequência, nessas zoonoses, há várias espécies envolvidas, com as quais mudanças na diversidade de animais e plantas afetam as possibilidades de que o patógeno entre em contato com o ser humano e o infecte.

O efeito protetor da biodiversidade por diluição foi levantado por Keesing e colaboradores, em 2006, e demonstrado alguns anos depois por Johnson e Thieltges. O efeito de amortização da biodiversidade sobre a disseminação de patógenos humanos foi demonstrado no caso do vírus do Nilo e da diversidade de aves há mais de quinze anos.

Com a simplificação com a qual submetemos os ecossistemas, eliminando espécies e reduzindo processos ecológicos a sua mínima expressão, aumentamos os riscos para a saúde humana em larga escala. Vírus do Nilo, gripe aviária, febre hemorrágica da Crimeia-Congo, vírus do ebola, doença por vírus de Marburg, febre de Lassa, coronavírus da síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS-CoV), síndrome respiratória aguda grave (SARS), vírus Nipah, doenças associadas ao henipavírus, febre do Vale do Rift, vírus Zika e muitas outras doenças são zoonoses que figuram na lista de doenças prioritárias, estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2018.

Esta lista da OMS inclui uma perturbadora doença X, uma epidemia internacional muito importante devido a um patógeno ainda desconhecido, mas que sem dúvida aparecerá. Tudo isso faz parte e é consequência da mudança global, isto é, da interferência voluntária e involuntária, direta e indireta, do ser humano nos sistemas naturais do planeta.

Até agora, praticamente a única conexão que foi feita entre o coronavírus e a ecologia ou o meio ambiente foi a redução das emissões de gases do efeito estufa. Observou-se que em apenas três semanas a China reduziu as emissões em 150 milhões de toneladas de CO2, o que representa 25% de suas emissões, 6% das emissões globais do planeta e é equivalente ao que emite toda a cidade de Nova York em um ano.

É uma boa (embora efêmera e anedótica) notícia em relação ao cumprimento do Acordo de Paris sobre a mudança climática. Tão efêmera e anedótica que se vê que, na realidade, a médio e longo prazo, a crise do coronavírus dificultará a descarbonização da economia, após as reações das companhias aéreas. No entanto, a conexão mais relevante é precisamente a contrária. Não é tanto como o coronavírus afeta os ecossistemas e o meio ambiente, mas, sim, como estes afetam o coronavírus.

Esquecemos o importante trabalho que uma natureza bem preservada desempenha na proteção contra infecções, epidemias e pandemias. É preciso acontecer uma catástrofe para alguns de nós buscar no arquivo e vasculhar a literatura científica novamente e encontrar razões além da ética para conservar a biodiversidade.

Muitos veem na pecuária, agricultura e avicultura, bem como no crescente mercado de consumo de animais exóticos, a causa do atual surto epidêmico e outros anteriores, como a SARS-COV, em 2002, a gripe aviária (H5N1), em 2003, a gripe suína (H1N1), em 2009, a MERS-COV, em 2012, o ebola, em 2013, e o zika (ZIKV), em 2015. A extensão de monoculturas genéticas de animais domésticos, por exemplo, elimina qualquer barreira imunológica que possa estar disponível para diminuir a transmissão.

Os tamanhos e densidades populacionais altas aumentam as taxas de transmissão. Além disso, as condições de superlotação deprimem a resposta imune. O alto desempenho, parte de qualquer produção industrial, proporciona um suprimento de suscetíveis que é renovado continuamente e é o combustível para a evolução da virulência. Em outras palavras, o agronegócio está tão focado no lucro que a seleção de um vírus que poderia matar milhões de pessoas é considerada um risco aceitável.

Para reduzir o surgimento de novos surtos de vírus, a produção de alimentos precisa mudar radicalmente. A autonomia dos agricultores e um setor público forte podem frear os problemas ambientais e as infecções descontroladas. É altamente desejável introduzir diversidade na pecuária e nas variedades de cultivos em uma reestruturação estratégica, tanto em nível agrícola como regional.

Comer animais selvagens é, para muitas regiões do planeta, a única opção alimentar. Mas isso traz riscos muito sérios para a saúde da humanidade, como estamos vivendo com a crise do coronavírus e como vivemos, por exemplo, com o ebola e os morcegos e a SARS e as civetas. Além disso, a biodiversidade nos protege de infecções, descobrimos isso anos atrás com o hantavírus, por exemplo. É preciso encontrar um novo equilíbrio global entre comer e proteger os animais selvagens, porque em ambas as questões está a vida.

Infelizmente, as primeiras espécies a desaparecer dos ecossistemas são as que mais reduzem a transmissão de patógenos. Observou-se isso com o vírus do Nilo e a perda da biodiversidade de aves, com a síndrome pulmonar por hantavírus e o desaparecimento de pequenos mamíferos, e com a doença de Lyme. Neste último caso, o desaparecimento de gambás (marsupiais americanos vulneráveis) e a sobrevivência de espécies como o camundongo de pé branco favoreceram a transmissão do patógeno aos seres humanos.

Não apenas a biodiversidade nos protege dos vírus. Ecossistemas estáveis e funcionais também, de forma geral e múltipla. Mas a função protetora dos ecossistemas está enfraquecendo com a mudança climática. É particularmente preocupante nesse sentido a perda de gelo e de solos congelados.

Com o aquecimento global, o gelo simplesmente derrete e, com isso, libera todos os tipos de gases, muitos deles com um poderoso efeito estufa. Além de gases, liberam vírus. O derretimento de uma geleira chinesa liberou 33 espécies de vírus, 28 deles completamente desconhecidos pela ciência e com potencial para infectar seres humanos.

O derretimento de solos permanentemente congelados (permafrost) em áreas boreais está liberando vírus e bactérias muito perigosos para os seres humanos, como foi visto, por exemplo, alguns anos atrás, com os surtos de anthrax na Rússia. Teme-se que não sejam casos isolados. Fragmentos de RNA do vírus da gripe espanhola de 1918 foram descobertos em cadáveres enterrados em valas comuns na tundra do Alasca, e se acredita também que cepas virulentas de varíola e peste bubônica estejam enterradas na Sibéria.

O aquecimento global e outras formas de alteração dos ecossistemas, como a mineração, estão expondo e reativando bactérias resistentes a antibióticos e vírus antigos potencialmente perigosos para a nossa saúde.

 

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