Há 40 anos, as finanças traem o capitalismo. Artigo de Maria Rosaria Ferrarese

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26 Janeiro 2017

“Enquanto a política abria as portas para crescentes níveis de liberalização e de internacionalização das relações econômicas, as finanças especulativas lideradas pelos grandes investidores mudaram significativamente o mundo e a estrutura proprietária das empresas, além do rosto do próprio capitalismo.”

A opinião é da socióloga e advogada italiana Maria Rosaria Ferrarese, professora de Sociologia do Direito na Universidade de Cagliari. Nesta quarta-feira, foi publicado, pela editora Il Mulino, o seu novo livro Promesse mancate [Promessas quebradas], do qual, neste artigo, a professora antecipa as teses centrais.

O artigo foi publicado no jornal Il Fatto Quotidiano, 25-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Um livro de 1914, que reúne alguns escritos do grande jurista estadunidense Louis Brandeis, trazia o eficaz título de Other’s people money [O dinheiro dos outros]. O tema ao qual esse título aludia é ainda mais relevante hoje, no mundo das finanças globalizadas, que prosperou sobre a criação e sobre a comercialização de instrumentos especulativos que visam ao lucro de curto e curtíssimo prazo. Assim, ao longo das últimas décadas, as finanças se transformaram de um setor que desempenhava funções predominantemente a serviço do capitalismo produtivo (coleta e fornecimento de capitais, serviços de pagamentos, avaliações dos investimentos, intermediação com o mercado de ações etc.), sob a controle do Estado, em uma “indústria financeira” muito liberalizada e que vive em relativa separação da chamada economia “real”.

Enquanto a “transparência” é celebrada como um requisito indispensável para as instituições, ela diz muito pouco respeito ao mundo das finanças, ao contrário, que, embora envolvendo riscos de contágio sistêmico para todo o mundo bancário, vive sob o abrigo de grandes zonas de opacidade e em um regime de controles e regulações ainda insuficientes, depois da crise de 2008.

Como chegamos até aqui? Contra a servil opacidade do sistema financeiro global, é preciso intensificar o conhecimento sobre um tema que é extremamente relevante ao dar um rosto para o nosso futuro e para o capitalismo. Quem foram os protagonistas da mudança? Que novas ideias e teorias o acompanharam e o tornaram convincente aos olhos não só de expoentes do mundo econômico, mas também de tantos políticos, acadêmicos e outros observadores? Que etapas institucionais e reformas marcaram essa transformação radical? Que mudanças derivaram de um inevitável processo de modernização e de inovação tecnológica e quais, ao contrário, respondiam simplesmente à tentativa de implementar um capitalismo mais desinibido, desprovido de controles e de limites, e esquecido do chamado interesse geral? Por que se enfraqueceu a capacidade de projetar políticas econômicas, deixando espaço apenas para a política monetária nas mãos dos Bancos Centrais?

A história do percurso que, a partir dos anos 1970, levou a pôr em questão o compromisso entre política e economia selado pelo keynesianismo deve fazer as contas com a capacidade de sedução de uma nova forma de capitalismo que se apresentava, por assim dizer, com as aparências de Prometeu. Como o titã da mitologia grega que roubara o fogo dos deuses para dá-lo para a humanidade, ele revelava ao mundo supostas e infinitas virtudes do mercado, um novo teatro de ação capaz de garantir o mérito e os interesses de todos. E aparecia com um dinamismo e uma leveza que se contrapunham ao peso do Estado Leviatã e dos seus vínculos.

Depois das várias dificuldades que marcaram a economia dos anos 1970, levando os Estados Unidos à denúncia dos acordos de Bretton Woods, vários sinais anunciavam uma organização econômica do mundo mais inovador, impulsionada pelas finanças. As inovações tecnológicas e as novas possibilidades de interconexão planetária pareciam descerrar um inédito horizonte de possibilidades para os destinos de toda a humanidade.

Um leque de promessas acompanhou a mudança, e novas palavras e locuções como “crescimento econômico”, “eficiência”, “subsidiariedade”, “autogoverno”, “self-management”, “trickle-down”, “concorrência”, “desenvolvimento”, “meritocracia”, “transparência”, “participação”, “empowerment” começaram a circular com insistência.

Assim, enquanto a política abria as portas para crescentes níveis de liberalização e de internacionalização das relações econômicas, as finanças especulativas lideradas pelos grandes investidores mudaram significativamente o mundo e a estrutura proprietária das empresas, além do rosto do próprio capitalismo.

Margaret Thatcher e Ronald Reagan foram os primeiros políticos a favorecer o novo modelo, mergulhando o lema “enrichissez-vous” em molho americano: a ideia do trickle down, de fato, associa a riqueza a uma espécie de lei da gravidade, que, das posições mais conspícuas, faz com que ela “deslize para baixo”, para as correntes sociais mais modestas.

Apesar de alguns estalos provenientes das crises asiáticas, a confiança no novo modelo cresceu rapidamente. Nos anos 1990, a chamada new economy viu aumentar vertiginosamente as start-ups do Vale do Silício ligadas à inovação tecnológica e selou definitivamente o conhecimento como o novo “dom”, que permitia leveza e caminhos mais fáceis e inclusivos para a criação e a distribuição da riqueza.

Desde então, um enorme fluxo de mudanças varreu o mundo: países pobres tornaram-se ricos ou menos pobres, e países industrializados se desindustrializaram, enquanto a desigualdade social cresceu vertiginosamente em quase toda a parte. As empresas baseadas na tecnologia da informação dominam os rankings econômicos, diversamente entrelaçadas com a indústria financeira, enquanto os enormes lucros que ambas fazem se traduzem em escassos investimentos e oportunidades de emprego. O que aconteceu com todas aquelas promessas?

Refazer as principais etapas da “grande transformação” ajuda a fazer as contas com as promessas quebradas de uma versão lúdica e autorreferencial da economia, que, no jogo da especulação financeira, aposta, todos os dias, uma parte consistente dos recursos do globo. E, talvez, pode ajudar a avaliar as respostas mais adequadas para o futuro que queremos construir.

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