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08 Abril 2010

Como agiam os tão temidos tribunais da fé? Com base em quais procedimentos eles localizavam os acusados e emitiam as cruéis sentenças? Quem era os inquiridos e de que eram acusados? Quem eram os inquisidores e em quais princípios se inspiravam? São essas perguntas que uma nova obra, recém publicada na Itália, tenta responder.

A análise é do filósofo italiano Nuccio Ordine, considerado um dos maiores especialistas em Renascimento. É professor de Teoria da Literatura na Universidade da Calábria e pesquisador do Centro de Estudos daRenascença Italiana da Universidade de Harvard e da Fundação Alexander von Humboldt. O artigo foi publicado no jornal Corriere della Sera, 07-04-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Em uma célebre página do "Elogio da loucura" (1511), Erasmo de Roterdã se pergunta com base em qual "notável passagem da Escritura divina se manda derrotar os hereges com fogo em vez de convencê-los com a discussão". E mais tarde Agrippa von Nettesheim fará eco de Roterdã ao denunciar os Inquisidores convencidos de que ao herege "não se há de combater com argumentos e escrituras, mas com lenha e fogo", forçando-o "a negar as coisas contra a sua consciência".

Dois ilustres pareceres, dentre muitos, contra os tribunais da Inquisição que, ao longo dos séculos, em nome da luta contra a heresia e os livros proibidos, perseguiram, prenderam, torturaram homens e mulheres, até massacrar milhares de vidas humanas. Tudo isso sem contar os mártires da ciência moderna e do livre pensamento apagados em um piscar de olhos pela história.

Mas como agiam os tão temidos tribunais da fé? Com base em quais procedimentos eles localizavam os acusados e emitiam as cruéis sentenças? Quem era os inquiridos e de que eram acusados? Quem eram os inquisidores e em quais princípios se inspiravam? Como funcionavam os manuais redigidos para realizar investigações e processos? Quais eram as formas de heresia e as imputações mais graves? E quais elementos permitiam que se identificassem bruxas e magos enquanto emissários do demônio?

A essas perguntas, darão uma resposta os quatro volumes do monumental "Dizionario storico dell’Inquisizione" – dirigido por Adriano Prosperi, em colaboração com Vincenzo Lavenia e John Tedeschi – que será publicado no início de maio em Pisa, pelas Edizioni della Normale.

Trata-se de uma obra que não tem precedentes por causa da quantidade de materiais utilizados e pela competência dos estudiosos. Além disso, os dados falam claramente: 2.000 páginas de grande formato, impressas em coluna dupla, 340 colaboradores de 12 países, 1.310 depoimentos, além de 6.000 títulos assinalados na bibliografia, riquíssimos índices dos temas e dos nomes e um consistente apêndice iconográfico (com reproduções de "graffiti" conservados nas cárceres, xilografias, quadros).

Adriano Prosperi, um dos historiadores italianos mais brilhantes, coordenou durante oito anos a realização desse extraordinário repertório enciclopédico sobre a Inquisição. Professor de história moderna na Scuola NormaleSuperiore e aluno de grandes mestres como Delio Cantimori e Armando Saitta, Prosperi não esconde a sua satisfação: "Um empreendimento de tão longo respiro, que parte da Idade Média para chegar até 1965 (quando o Santo Ofício foi transformado em Congregação para a Doutrina da Fé), nunca poderia ter sido levado a termo sem a contribuição de centenas de especialistas que redigiram os depoimentos com grande competência. E sem o livre acesso, em 1998, à documentação histórica conservada no Arquivo do Santo Ofício da InquisiçãoRomana teria sido impossível pensar em um dicionário assim como o realizamos".

O estudo de novos documentos e, principalmente, das fontes processuais permitiu conhecer com maior precisão o funcionamento dos tribunais e o horizonte teórico que os animava. "Quando se fala de tribunais da Inquisição – explica Prosperi –, é preciso distinguir a sua função específica, respeitando parâmetros geográficos e históricos bem precisos. Tivemos a Inquisição medieval (já no século XI as primeiras bulas papais delegam o controle sobre a doutrina da fé), a Inquisição espanhola e portuguesa (com as suas dramatizações colonialistas na América, na África e na Índia) e depois, em 1542, o nascimento do Santo Ofício em Roma, sob o direto controle de Paulo III, e sucessivamente a criação do Índex dos livros proibidos. Na Espanha e em Portugal, apenas para dar um exemplo, o inquisidor é uma figura escolhida pelo soberano: o poder civil, valendo-se da autoridade papal, irá utilizar esse instrumento para fins também políticos, como testemunham as perseguições dos `marranos` (os judeus) e dos `mouriscos` (os árabes)".

Bem diversas serão as estratégias do Santo Ofício em uma realidade como a italiana, caracterizada por um despedaçamento do poder político. "As relações da Inquisição romana – especifica Prosperi – com as autoridades civis na Itália requerem estratégias que devem fazer as contas com os múltiplos regimes e com os diferentes senhores que regem as cortes. Em Veneza, exige-se a presença de juízes leigos que assistam ao processo. E as próprias relações com a Inquisição espanhola são complicadas nas áreas sujeitas ao soberanos ibéricos, como a Campania e a Sicília".

A história dos tribunais da fé se entrecruza também com as revoltas contra as tentativas de impô-los em alguns territórios. "Em 1547, em Nápoles –, acrescenta o historiador de Pisa – estoura um verdadeiro tumulto contra a instituição da Inquisição espanhola. A nobreza local temia que o uso político dos tribunais pudesse arruinar com famílias inteiras, como já havia acontecido na Espanha. Muitas vezes, os processos concluíam com a total expropriação dos bens possuídos pelos condenados. Mas outros fortes protestos também ocorreram em Lucca, Florença, Mantova, Milão".

Um capítulo totalmente particular se refere à inclusão na luta contra a heresia de crimes inspirados na magia. "Na segunda metade do século XIV – destaca Prosperi –, os tribunais eclesiásticos se colocam ao lado dos civis, muito mais cruéis e apressados, na luta contra as bruxas e os magos. Se queria combater, como mostrou CarloGinzburg, aquelas seitas diabólicas seguidoras do demônio que se reuniam no `sabath` (orgias noturnas em honra ao diabo). Bastava buscar a marca do diabo: se pressupunha que uma bruxa marcada pelo Anticristo não podia sentir dor. E, assim, se examinava a suposta zona marcada (o ânus, os seios, os genitais, as pintas), estimulando-a com uma agulha para verificar a reação. Só cerca do século XV, a complexa matéria é disciplinada com uma série de distinções, pedindo mais prudência aos inquisidores".

O estudo de Prosperi é aprofundado, iluminando milhares de anos de história e ajudando a entender como a perseguição do dissenso e das minorias, a condenação da "heresia", a coerção em matéria de fé e de consciência por meio da violência (não só física, mas também das ideias), a hostilidade pela liberdade da pesquisa científica continuam subsistindo, de formas e modos diversos, também na sociedade do terceiro milênio.

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