''Aqueles hereges dos jesuítas''

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03 Janeiro 2012

Santo Inácio foi considerado um verdadeiro novo Cristo ou novo São Paulo, em torno do qual havia se reunido a pequena comunidade dos seus primeiros discípulos, 12 como os apóstolos, inclinados a restaurar o modelo da Igreja primitiva, que, como tal, desafiava implicitamente a Igreja de Roma, tão distante e diferente da de Jerusalém, despertando, de um lado, suspeitas e desconfianças e legitimando, de outro, as prudências, os silêncios, as autocensuras da jovem congregação, que inspiraram tanto a reconstrução do seu passado quanto a sua ação no presente.

A análise é do historiador italiano Massimo Firpo, professor da Universidade de Turim, em artigo para o jornal Il Sole 24 Ore, 18-12-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Inúmeras foram as novas ordens religiosas que surgiram da trágica crise vivida no século XVI pela Igreja de Roma, afundada, durante o Renascimento, em abismos de corrupção moral, de simonia, de absenteísmo pastoral e, ao mesmo tempo, desafiada no campo religioso e teológico pela insurgência de sempre novas ondas da Reforma Protestante – luterana, anglicana, calvinista – e de seitas radicais.

Os jesuítas, os teatinos, os barnabitas, os somascos eram apenas os primeiros entre as novas ordens de clérigos regulares que foram dessa crise, ao mesmo tempo, um sinal e uma reação, antes que os conflitos políticos europeus e as ambições nepotistas dos papas Médici e Farnese permitissem inaugurar o Concílio de Trento.

Não há dúvida de que, entre essas novas ordens religiosas, o maior sucesso sorriu para os jesuítas, ainda hoje uma notável congregação espalhada por todas as partes do mundo, embora, em anos recentes, uma série de conflitos mais ou menos evidentes com a cúpula da Cúria Romana tenha ofuscado a imagem de tropa fidelíssima escolhida para o serviço do papa, em virtude do voto especial de obediência por eles prestado e pelo seu compromisso a cumprir perinde ac cadaver as ordens dos superiores.

Uma disciplina férrea, em suma, que permitiria o admirável crescimento de uma ordem capaz de assumir como própria a cultura humanista para curvá-la às exigências contrarreformistas; de dar vida aos mais atualizados colégios para a formação das classes dirigentes europeias; de se perfilar na vanguarda em defesa da fé católica (São Roberto Belarmino, autor das imensas Controversiae contra os protestantes e inquisidor de Galileu, foi jesuíta); de se espalhar nos territórios sem limites da Américas e da Ásia abertos por viagens de conquista, onde souberam realizar um extraordinário esforço de conhecimento das culturas locais e de adequação às suas práticas sociais e até religiosas; de se dedicar com ardor à reconquista do povo cristão nas miseráveis zonas rurais só superficialmente cristianizadas (as "Índias da nossa casa"); de conquistas as consciências dos príncipes através do confessionário e a guia das almas com os exercícios espirituais.

Sucessos grandiosos, em suma, que uma historiografia jesuítica militante reconstruiu como fruto do carisma do fundador, movendo-se a partir das origens desse mirrado grupo de seguidores de Santo Inácio, o rude soldado que passou pela luz da conversão e depois aos estudos em Alcalá, na Salamanca, em Paris, para se transferir depois a Veneza, em peregrinação à Terra Santa e se encontrar em Roma e ver a pequena Societas Iesu se transformar em uma nova ordem religiosa em 1540, fundar colégios, manda pregadores para todos os lugares, abrir novas casas, enfrentar as milhares de demandas de jovens ansiosos por serem martirizados por índios americanos desconhecidos ou converter à fé de Cristo os refinados mandarins chineses ou os ascetas seguidores das religiões indianas.

E é justamente sobre essa primeira geração de jesuítas que se volta o olhar de Guido Mongini, que penetra com grande inteligência no pouco que resta das fontes mais antigas, para lançar luz sobre as contradições, reticências, omissões, verdadeiras censuras sobre a vida de Santo Inácio e sobretudo sobre a inspiração religiosa daqueles novos soldados de Cristo, e captar entre as fissuras da documentação os traços sobreviventes de uma identidade peculiar.

Sem se deixar capturar pelos lugares-comuns de uma historiografia tenazmente apologética, Mongini investiga com fineza as dobras dessa identidade originária, marcada profundamente pelas matrizes heterodoxas do alumbradismo espanhol, evidentes nas desconfianças, nas suspeitas, nas acusações explícitas das quais o próprio Santo Inácio foi alvo, a ponto de ser processado por oito vezes pela Inquisição na Espanha, na França e na Itália.

Um ilustre teólogo dominicano chegou a denunciar a ele e aos seus seguidores como precursores do Anticristo. Perseguições, dirão os jesuítas, e, como tais, sinais da graça e investidura divina especiais do fundador, verdadeiro novo Cristo ou novo São Paulo, em torno do qual havia se reunido a pequena comunidade dos seus primeiros discípulos, 12 como os apóstolos, inclinados a restaurar o modelo da Igreja primitiva, que, como tal, desafiava implicitamente a Igreja de Roma, tão distante e diferente da de Jerusalém, despertando, de um lado, aquelas suspeitas e aquelas desconfianças e legitimando, de outro, as prudências, os silêncios, as autocensuras da jovem congregação, que inspiraram tanto a reconstrução do seu passado quanto a sua ação no presente.

Daí os comportamentos cautelosos, evasivos e, às vezes, ambíguos, tanto fora quanto dentro de uma ordem fortemente hierárquica, fundamentada nas estratégias de esotérico gradualismo aprendidas na escola dos alumbrados espanhóis (com os quais Santo Inácio teve intensos vínculos) e que se tornaram na própria prática e na própria linguagem dos primeiros jesuítas "el nuestro modo de hablar" (principalmente em questões teológicas), "el nuestro modo de proceder", nunca definido, mas evidentemente bem conhecidos – nas formas como nos conteúdos – por aqueles (não todos) que haviam sido iniciados naqueles secretos conteúdos doutrinais e nos objetivos a que eles se propunham ("cosas secretas").

E que se tornaram também prática pedagógica voltada aos próprios leigos, como resulta da fina leitura aqui proposta dos Exercícios Espirituais inacianos, não por acaso condenados pelos dominicanos espanhóis, e dos êxitos de longo prazo das "estratégias de dissimulação" dos jesuítas, na sua capacidade de se adequar aos ritos chineses e na miríade de experiências místicas femininas que encontraram neles os seus diretores espirituais.

Surge disso a reconstrução de uma verdadeira "heresia jesuítica", fundada sobre o primado das interiores "iluminaciones divinas" em relação às práticas ascéticas e devotas, no acentuado espiritualismo de uma fé experiencial, na liberdade interior em relação a uma autoridade eclesiástica à qual se deve obedecer, mas da qual se pode discordar, na distinção entre os poucos fundamentos essenciais da fé e os muitos aspectos secundários sobre os quais é lícito transigir e se adequar, na consequente pedagogia gradualista que isso comportava na pregação, na direção das consciências, na própria definição das hierarquia interna.

Um núcleo heterodoxo-funcional à autonomia da ordem e às suas peculiares tarefas de apostolado e capaz de dar vida a uma espécie de radicalismo institucional oculto, destinado, pouco a pouco, a se apagar com a substituição de uma nova geração pós-tridentina aos primeiros discípulos de Santo Inácio, a se dispersar e a refluir nas suas próprias cautelas esotérica e, finalmente, a reabsorver a subversiva accommodatio com relação aos ritos ritos chineses no laxismo moral em benefício dos penitentes.

A esse núcleo religioso originário dos primeiros jesuítas, este livro traz a contribuição de uma reflexão de uma sutileza incomum, que desbarata certezas consolidadas relativas a Santo Inácio e aos seus primeiros coirmãos, subtraindo-os do mito hagiográfico para recolocá-los nos contextos e nas contradições da história.

  • Guido Mongini, Ad Christi similitudinem. Ignazio di Loyola e i primi gesuiti tra eresia e ortodossia, Alexandria: Dell'Orso, 180 páginas.

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