Igreja e sociedade: o projeto de Francisco. Artigo de Sérgio Ricardo Coutinho

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25 Junho 2013

"Francisco esclareceu seu projeto da seguinte forma: 'uma Igreja que dê testemunho do Reino de Deus'. A Igreja, para ele, não é um movimento político, uma estrutura bem organizada, nem uma ONG; ela é chamada fundamentalmente a viver o Evangelho e dar testemunho dele como 'sal da terra e luz do mundo'", escreve  Sérgio Ricardo Coutinho.

Sérgio Ricardo Coutinho é mestre (UnB) e doutorando (UFG) em História Social; professor de “História da Igreja” no Instituto São Boaventura e de “Formação Política e Econômica do Brasil” e de “Teoria Política” no Centro Universitário IESB, em Brasília; membro da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) e presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina (CEHILA-Brasil).

Eis o artigo.

O historiador italiano Daniele Menozzi, que dedicou um importante estudo sobre as relações entre a Igreja e a sociedade contemporânea (“A Igreja Católica e a Secularização”. SP: Paulinas, 1999), afirmava que apesar dos juízos tão dispares vindos do magistério católico e dos diversos grupos do mundo católico (neo-integristas, conservadores e progressistas) sobre o processo de secularização, havia entre eles uma convicção comum: não se poderia conceder ao agir político e social do homem uma plena autonomia em relação à religião cristã. Segundo esta premissa, entregue a si mesmo, o homem, na construção da cidade terrena, acabaria por se enveredar pelas vias de uma crise que conduziria à destruição ou dissolução da sociedade civil.

Pois bem, passados os primeiros 100 dias de pontificado do papa Francisco, temos já um bom material de análise, a partir de seus pronunciamentos, sobre qual deveria ser a missão e o papel da Igreja na atual sociedade contemporânea. Qual é o projeto de “Igreja” sonhado por Francisco para atuar junto à sociedade e responder aos desafios postos?

Nestes últimos 35 anos a Igreja, sob os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, construiu um projeto eclesiológico bem claro para enfrentar estes desafios: uma Nova Evangelização.

De fato, a secularização transformou-se no grande desafio do mundo contemporâneo em relação à Igreja, causa determinante da diminuição da prática religiosa, da redução das vocações, da perda dos valores éticos do catolicismo na vida individual e familiar, e ainda, em particular, por tender à meta de uma organização de vida coletiva que prescinde dos valores cristãos, reduzindo ou anulando a importância social da Igreja.

Contra esta tendência o Papa João Paulo II convocou os católicos para a necessidade de uma “nova evangelização” que restaurasse, em primeiro lugar, a Europa cristã na qual a sociedade recebesse da Igreja seus valores fundamentais. O cardeal Joseph Ratzinger, quando ainda prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em polêmica com as correntes teológicas contemporâneas que defendiam o abandono de uma ordem social cristã como a via de purificação da Igreja, sustentou que só a tradução para o plano legislativo dos valores dos quais a Igreja é depositária poderia permitir à Europa um retorno na rota dos desvios morais por onde enveredou a modernidade. De certo modo, este projeto também se fez chegar com força aqui em nosso continente americano.

Desta forma, e em larga medida, o mundo católico sob a forma do projeto de “nova evangelização” ainda se baseia nos pressupostos dos líderes da reação contrarrevolucionária, típicas do século XIX: não haverá verdadeira civilização nem autêntica convivência humana fora da “cristandade”, ou seja, fora de uma sociedade onde a Igreja dite as regras e valores do viver social.

O papa Francisco iniciou seu pontificado expressando seu desejo e seu projeto eclesiológico aos jornalistas, que tinham feito a cobertura do Conclave: “como gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres”.

Este projeto foi sendo explicitado ao longo destes 100 primeiros dias de pontificado e melhor delineado em pronunciamento feito aos Movimentos e Associações laicais no dia 18/05, véspera de Pentecostes, festa litúrgica eminentemente eclesiológica.

O papa Francisco foi provocado pela seguinte questão: “Que contribuição podemos nós todos, enquanto movimentos e associações laicais, dar concreta e eficazmente à Igreja e à sociedade para enfrentar esta crise que toca a ética pública, o modelo de desenvolvimento, a política, em suma, um novo modo de ser homens e mulheres?”

Francisco esclareceu seu projeto da seguinte forma: “uma Igreja que dê testemunho do Reino de Deus”. A Igreja, para ele, não é um movimento político, uma estrutura bem organizada, nem uma ONG; ela é chamada fundamentalmente a viver o Evangelho e dar testemunho dele como “sal da terra e luz do mundo”: “é chamada a tornar presente na sociedade o fermento do Reino de Deus; e a faz, antes de tudo, por meio do seu testemunho: o testemunho do amor fraterno, da solidariedade, da partilha”.
 
Chamou a atenção também para o fato de estarmos atravessando uma crise, não só cultural e econômica, mas de uma profunda “crise do homem”, uma crise antropológica. Por isso, para a Igreja enfrentar esta crise antropológica, deve sair de si mesma. Sair de uma “doença grave” que tomou conta da Igreja nos últimos anos: a mundanidade espiritual (Henri de Lubac) que a invadiu.

O diagnóstico desta doença, feita por ele ainda enquanto cardeal e explicitada durante as reuniões pré-conclave: “Os males que, ao longo do tempo, se dão nas instituições eclesiais têm raiz na autorreferencialidade, uma espécie de narcisismo teológico. A Igreja autorreferencial quer Jesus Cristo dentro de si e não o deixa sair”. Simplificando: há duas imagens de Igreja, segundo ele: a Igreja evangelizadora que sai de si, ou a Igreja mundana que vive em si, de si e para si.

Por isso insiste: “Neste tempo de crise, não podemos preocupar-nos só com nós mesmos, fecharmo-nos na solidão, no desânimo, numa sensação de impotência face aos problemas. Não se fechem, por favor!”.

Este fechamento leva a problemas graves no interior da Igreja, verdadeiras heresias, e que a impede ser missionária: o pelagianismo e o gnosticismo. O pelagianismo aparece na forma de uma Igreja elitista restauracionista, com práticas disciplinares pré-conciliares e ciosos de si mesmos. A outra corrente é de uma Igreja, também elitista, “mas de uma elite mais formada”, gnóstica-panteísta. Esta corrente preocupa porque “pula a encarnação de Cristo”. Ambas correntes são autossuficientes, egocêntricas, preconceituosas, exclusivistas.

O critério para superar este mal na Igreja (a mundanidade) é “sair de si mesma” e ir em direção às “periferias existenciais” e lá poderá encontrar Jesus Cristo verdadeiramente encarnado: o pobre.

Disse ele aos membros da direção da Conferência Latino-americana de Religiosos (CLAR): “O Evangelho não é a regra antiga, nem esse panteísmo. Se você olhar para as periferias, os indigentes, os drogados, o tráfico de pessoas... Esse é o Evangelho. Os pobres são o Evangelho...”. Respondendo novamente aos leigos disse: “Este é o problema: a carne de Cristo, tocar a carne de Cristo, assumir este sofrimento pelos pobres. A pobreza, para nós cristãos, não é uma categoria sociológico, filosófica ou cultural. Não! É uma categoria teologal. Diria que esta é talvez a primeira categoria, porque aquele Deus, o Filho de Deus, humilhou-se, fez-se pobre para caminhar conosco ao longo da estrada. E esta é a nossa pobreza: a pobreza da carne de Cristo, a pobreza que nos trouxe o Filho de Deus com a sua Encarnação. A Igreja pobre para os pobres começa pelo dirigir-se à carne de Cristo”.

Para realizar esta prática, serão necessárias reformas para muito além da Cúria romana, a começar pelo clero.

Para os padres, Francisco sinalizou com a seguinte imagem: a do “sacerdote ungido com óleo” que escorre pela barda até a “orla de suas vestes” (Salmo 133). Disse que o sacerdote que sai pouco de si, que unge pouco os seus fiéis “perde o melhor de nosso povo,  e isso é que é capaz de ativar o mais profundo de seu coração presbiteral”. “Quem não sai de si, em vez de mediador, vai se convertendo pouco a pouco em intermediário, em gestor. Todos conhecem a diferença: o intermediário e o gestor ‘já têm seu pagamento’, e como não colocam em jogo a própria pele, nem o coração, também não recebem um agradecimento afetuoso que nasce do coração”. Por isso, alguns sacerdotes “acabam tristes e convertidos em uma espécie de colecionadores de antiguidades [pelagianos-restauracionistas] ou, então, de novidades [gnósticos-panteístas], em vez de serem pastores com ‘cheiro de ovelha’, pastores no meio do seu rebanho e pescadores de homens”.

O mesmo foi dito aos bispos. Falando ao episcopado italiano, fez um forte apelo à radicalidade evangélica e estabelecendo como uma “regra” a de ser capaz de “inclinar-se sobre as pessoas” e não um administrador preocupado com a organização. “Nós não somos expressão de uma estrutura – explicou – ou de uma necessidade organizativa”. Ao centrar-se somente nas estruturas, torna o pastor “morno”, “distraído, esquecido e até mesmo impaciente; o seduz com a perspectiva da carreira, a tentação do dinheiro e os compromissos com o espírito do mundo; o deixa preguiçoso, transformando-o em um funcionário, um clérigo de Estado preocupado mais consigo mesmo, com a organização e com as estruturas, do que com o verdadeiro bem do Povo de Deus”.

Alertou aos Núncios apostólicos para os critérios em vista de uma boa escolha para o episcopado: que sejam pastores capazes de “caminhar no meio e atrás do rebanho: capazes de ouvir o silencioso relato de quem sofre e de manter o passo de quem teme que não irá conseguir; atentos a reerguer, a tranquilizar e a infundir esperança. Do compartilhamento com os humildes, a nossa fé sai sempre reforçada: deixemos de lado, portanto, toda forma de presunção, para nos inclinarmos” sobre as pessoas. Os candidatos ao episcopado devem amar “a pobreza interior como liberdade no Senhor e também a pobreza exterior como simplicidade e austeridade de vida” e não devem ter “uma psicologia de ‘Príncipes’”. “Estejam atentos – assinalou Francisco aos Núncios – para que não sejam ambiciosos, que não persigam o episcopado e que sejam esposos de uma Igreja, sem buscar constantemente outra”. Aqui está uma alusão explícita ao carreirismo na Igreja.

Sem dúvida nenhuma que o modelo de sacerdote-pastor que Francisco tem em mente é Dom Oscar Romero, cuja beatificação ele desbloqueou nestes dias. Isso o faz se colocar próximo à Teologia da Libertação.

Na América Latina, durante um longo período, a hostilidade demonstrada para com a Teologia da Libertação foi um importante fator para favorecer brilhantes carreiras eclesiásticas. De fato, hoje, é muito mais fácil reconhecer que certas veementes mobilizações de alguns setores eclesiais contra a Teologia da Libertação eram motivadas por certas preferências de orientação política mais que pelo desejo de guardar e afirmar a fé dos apóstolos.

Mas Francisco tem plena consciência dos riscos desta “saída de si”: “Entretanto que acontece quando alguém sai de si mesmo? Pode suceder aquilo a que estão sujeitos aqueles que saem de casa e vão pela estrada: um acidente. Mas eu digo-vos: Prefiro mil vezes uma Igreja acidentada, caída num acidente, que uma Igreja doente por fechamento! Ide para fora, saí!”.

Nesta saída para o mundo, Francisco não demonstra qualquer intencionalidade de reconstruir a “Cristandade”, onde a Igreja dite regras e valores do viver social. Seu projeto vai noutra linha: ir ao encontro do outro, mesmo que diferente de nós. “Porque a fé é um encontro com Jesus, e nós devemos fazer o mesmo que Jesus: encontrar os outros. Vivemos numa cultura do desencontro, uma cultura da fragmentação, uma cultura na qual o que não me serve jogo fora, a cultura do descartável. Nós, pelo contrário, devemos ir ao encontro e devemos criar, com a nossa fé, uma ‘cultura do encontro’, uma cultura da amizade, uma cultura onde encontramos irmãos, onde podemos conversar mesmo com aqueles que pensam diversamente de nós, mesmo com quantos possuem outra crença, que não têm a mesma fé. Todos têm algo em comum conosco: são imagens de Deus, são filhos de Deus. Ir ao encontro de todos, sem negociar a nossa filiação eclesial”.

Assim, o que podemos vislumbrar é que, pelo que vimos e ouvimos destes 100 dias, a “nova evangelização” empreendida pelo papa Francisco carrega em si um projeto eclesiológico e missionário bem diferente do que se vinha sendo implementado até aqui e que os resultados eram pífios. Vejamos, daqui para frente, quais serão as ações concretas para que o mesmo projeto se realize.

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