Patriarca Ecumênico Bartolomeu: A forma como nos relacionamos com Deus deveria ser a forma como tratamos o planeta

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04 Novembro 2015

"Mas nós, ao menos, queremos ficar curados? Diante do terrorismo mundial e da instabilidade política, estamos nós comprometidos a buscar um denominador comum que una os cristãos, muçulmanos e judeus, bem como as pessoas de todas as cores e culturas? Trabalhamos para criar pontes onde quer que encontremos divisão e dissenção? Favorecemos o diálogo onde quer que nos confrontemos com o preconceito e a intolerância? Podemos discernir o rosto do nosso irmão e irmã – em última análise, a imagem e semelhança de Deus – em nosso inimigo na forma de um extremista, no fundamentalista que se apresenta como um fanático?", questiona o Patriarca Bartolomeu I, arcebispo de Constantinopla-Nova Roma e o líder espiritual das igrejas ortodoxas em todo o mundo, em artigo publicado pela revista Time, 31-10-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Eis o artigo.

“Você quer ficar curado?” – João 5,6

Quando nas escrituras cristãs lemos sobre Cristo como médico e curador, a maioria de nós imagina um fazedor de milagres ou um mágico, alguém que pode ser invocado para intervir no intuito de resolver problemas. Visualizamos um “deus ex machina” – uma figura mecânica ou metafísica que estende suas mãos lá do céu para aliviar tragédias e dissipar polêmicas.

Uma tal percepção, no entanto, contradiz a imagem representada nos Evangelhos. Em quase todos os milagres de cura, Jesus primeiro busca conhecer as circunstâncias que exigem mudança ou que pedem remédio. Apesar da sua missão expressa em “anunciar a Boa Notícia aos pobres; (...) proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; (…) libertar os oprimidos” (Lucas 4,18), ele sublinha, com persistência, o pré-requisito de “ansiar” e “desejar” para o dom de “modificar para o bem” ou “curar”.

Quem possivelmente não iria ansiar pela cura? A pergunta de Cristo “Você quer ficar curado?” se aplica aos desafios pessoais assim como aos desafios públicos que estão no núcleo da nossa relação com Deus, com os outros e com nós mesmos. Quem já não orou para que um filho fosse curado, para que um amigo sobrevivesse ao câncer ou para a recuperação de um abuso traumático? As palavras de Cristo em João 5,6 são dirigidas a um paraplégico, quem, com paciência e persistência, aguardara pela cura ao lado de uma piscina em Betesda por 38 anos. O desafio de cura na esfera pública mostra-se igualmente intimidador. Quem não deseja um mundo em que a paz e a justiça prevaleçam, em que a pobreza e o sofrimento sejam superados e que os recursos da terra sejam partilhados com justiça?

Algo que falta nestes desafios é um aspecto frequentemente ignorado dos milagres de Cristo. O que é de suma importância no ministério dos milagres de Cristo não é simplesmente a conclusão ou a culminância em curar os sofrimentos, mas, sim, a sua vontade e determinação em convencer aqueles a quem encontra de que ele está sentindo o seu sofrer.

Da mesma forma, somos nós capazes de sentir o sofrimento do nosso mundo? Somos capazes de fazer escolhas compassivas para nós mesmos e para os outros? Em nossas vidas pessoais, aceitamos a responsabilidade pela nossa ira e desconfiança, ganância e arrogância, vícios e ansiedades? Pois um tal reconhecimento é o único jeito para que estes sejam curados. Na vida pública, estamos nós preparados para demonstrar as nossas preferências e manifestar as nossas escolhas? Ousamos declarar as nossas prioridades e lutar por políticas relativas a energia e alimentos, guerra e injustiça, aquecimento global e biodiversidade? Afinal de contas, “onde está o seu tesouro, aí também estará o seu coração” (Mateus 6,21).

Quando ficamos curados, Cristo pode nos exortar: “[Podem] ir, e não [pequem] mais” (João 8,11). Não obstante, uma outra força continua a nos impelir e empurrar em direções contrárias à nossa inclinação natural e irreconciliável com a nossa escolha pessoal. São Paulo explica: “No meu íntimo, eu amo a lei de Deus; mas percebo em meus membros outra lei que luta contra a lei da minha razão e que me torna escravo da lei do pecado que está nos meus membros” (Romanos 7,22-23). A realidade é que vivemos num mundo de tensão espiritual e escolhas irreconciliáveis.

Mas nós, ao menos, queremos ficar curados? Diante do terrorismo mundial e da instabilidade política, estamos nós comprometidos a buscar um denominador comum que una os cristãos, muçulmanos e judeus, bem como as pessoas de todas as cores e culturas? Trabalhamos para criar pontes onde quer que encontremos divisão e dissenção? Favorecemos o diálogo onde quer que nos confrontemos com o preconceito e a intolerância? Podemos discernir o rosto do nosso irmão e irmã – em última análise, a imagem e semelhança de Deus – em nosso inimigo na forma de um extremista, no fundamentalista que se apresenta como um fanático?

Nós ao menos queremos ser curados? Diante do aquecimento global e das mudanças climáticas, queremos nós – ou resistimos nós à possibilidade de – adotar vidas mais simples e vivermos de forma mais frugal? Será que podemos, verdadeiramente, crer que um século de poluição à atmosfera não terá desdobramentos em nosso mundo e nenhuma consequência para os nossos filhos? O Profeta Isaías previu: “Ele me disse: ‘Vá, e diga a esse povo: Escutem com os ouvidos, mas não entendam; olham com os olhos, mas não compreendam! Torne insensível o coração desse povo, ensurdeça os seus ouvidos, cegue seus olhos, para que ele não veja com os olhos nem ouça com os ouvidos, nem compreenda com o seu coração, nem se converta, de modo que eu não o perdoe” (6,9-10). O mundo é um presente de Deus, ofertado para a cura e partilha; ele não existe para a exploração ou apropriação. A forma como nós nos relacionamos com Deus não pode estar separada da forma como respeitamos as demais pessoas, ou da forma como tratamos o planeta.

Então, será que escolhemos curar? Porque, se não, estaremos negando a nossa própria natureza enquanto seres humanos. Se escolhemos não cuidar, então não mais somos espectadores indiferentes; somos, na realidade, agressores ativos. Se nós não aliviamos as dores dos outros, então estamos contribuindo para com o sofrimento no mundo. Se não escolhemos curar o sofrimento ao nosso redor, então, em última análise, não “queremos ficar curados”. Como Cristo, portanto, é nossa vocação e obrigação buscar irmos ao encontro dos oprimidos e discernir as consequências das nossas ações. Se escolhemos não trabalhar para o bem-estar no mundo, então não desejamos verdadeiramente ficarmos bem. Em nossos esforços por cura e reconciliação, devemos nos fazer algumas perguntas difíceis concernentes aos nossos estilos de vida e hábitos. Estamos preparados para sacrificar os nossos estilos de vida excessivos – quer dizer, quando iremos aprender a dizer; “Basta!” – a fim de que outros desfrutem do direito básico de sobreviver?

Estamos todos rodeados por pessoas necessitadas, pessoas que sofrem. Há tantas pessoas ao nosso redor sem esperança, pessoas que precisam de cura. Nós as vemos? Escolhemos responder a elas? Somos uma presença de cura e as mãos curadoras de Cristo? Se realmente queremos ficar curados, então devemos nos preparar para aceitar um novo jeito de viver; devemos nos reintegrar a um modo de vida sacrificial; devemos nos restaurar no sentido de uma maneira de viver compassiva. De fato, devemos estar dispostos a fazer acontecer aquela cura e aquela inteireza, aquela reconciliação e novidade, em nossas sociedades e em nosso planeta. Pois esta é, certamente, a cura ulterior que deveríamos querer: a cura e a transformação do mundo todo.

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