Não haverá exceção na história humana. O presente nos impõe outra atitude espiritual. Entrevista especial com Flavio Lazzarin

"Quando a pandemia terminar, teremos um mundo pior do que antes", diz o agente da Comissão Pastoral da Terra - CPT

Foto: Pixabay

Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | 23 Dezembro 2020

A crise sanitária que já registrou mais de 1,5 milhão de mortes no mundo e mais de 186 mil somente no Brasil, somada às demais crises que perpassam a sociedade, exige de nós "outra atitude espiritual": "a revisão da convicção de que o nosso tempo seria uma exceção da história humana", diz Flavio Lazzarin, padre italiano, que reside no interior do Maranhão. Citando o antigo texto sagrado, ele lembra: “não há novidades debaixo do sol”. O mesmo era cantado há 40 anos pelas Comunidades Eclesiais de Base - Cebs: “Ninguém se engana: a nossa história já começou desumana". A pandemia, menciona, "desmanchou as nossas ilusórias convicções de que, depois de duas guerras mundiais e algumas ditaduras civis-militares, teríamos aprendido a tratar sabiamente a vida, a economia, a política, a ordem, o progresso e a história".

 

Apesar das tragédias que acometem a história da humanidade, adverte, "o Natal é a possibilidade de abandonar o já dito". Nesse sentido, pontua, "é urgente buscar palavras novas, não pelo gosto suicida de uma modernidade que não consegue conviver com coisas velhas e sempre se submete neuroticamente às modas efêmeras, janelas abertas diante do nada. Buscar palavras novas que possam traduzir em atitudes e gestos novos a Boa Notícia. Palavras que nascem e renascem no seio da Palavra: 'No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus'. Enfim, palavras e práticas fracas e impotentes, que não têm o poder de convencer, são hegemônicas, desarmadas, crucificadas. Crucificadas junto com as vítimas incontáveis deste nosso tempo. Que esperam Vida em plenitude. Ressurreição".

 

As novas palavras e práticas, frisa, também devem ser buscadas na cena política do país, que há anos tem sido falsamente polarizada. "Precisamos polarizar contra a falsa polarização eleitoreira, também, porque faz tempo que as conjunturas políticas que permitiam certa relação entre Estado e as demandas dos movimentos indígenas e camponeses esgotaram-se irremediavelmente", afirma na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.

 

Flavio Lazzarin (Foto: Arquivo pessoal)

Flavio Lazzarin é padre italiano Fidei donum. Formado em Teologia pelo Seminário di Mantova, e em História pela Università Statale di Milano, ambas instituições da Itália. Hoje, ele atua na Diocese de Coroatá, no estado do Maranhão. Também é agente da Comissão Pastoral da Terra - CPT.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - O Natal e os dias que sucedem o nascimento do Cristo são marcados na tradição pela esperança de um tempo novo. Mas como, diante da atual conjuntura que vivemos, animar e nutrir a esperança? E como trazer isso para a vida prática e concreta, desde o nosso lugar?

Flavio Lazzarin - O tempo de Natal é também marcado por uma difusa e traiçoeira compulsão a repetir, que se dá no esquecimento consumista e emocional, aliado da insensibilidade com as dores da humanidade, ou no hábito de um cansaço sem alma e sem esperança, mas também nas palavras envelhecidas, doentes e defuntas reiteradas por nós, homens de Igreja. Aliás, esta é tentação dramática de todo tempo litúrgico e de toda liturgia. Pensem no risco da rigidez repetitiva da celebração eucarística; pensem como este roteiro pode se transformar em algo chato e vacinado contra toda beleza. E contra toda verdade. Pensem também no estúpido antídoto das espetacularizações progressistas ou tradicionalistas da Eucaristia. Às vezes, a Missa é salva só na intimidade santa e silenciosa de fiéis ocultos, porque a comunidade que celebra deixou de renovar as perguntas a serem feitas à realidade, à Palavra de Deus e ao sacramento da Páscoa de Jesus.

Natal é assim a possibilidade de abandonar o já dito, diante de um mundo que retomou exponencialmente a capacidade de nos dobrar diariamente com péssimas e trágicas notícias de guerra, fome, êxodos sem esperança, pandemias e instituições ecocidas e genocidas. É urgente buscar palavras novas, não pelo gosto suicida de uma modernidade que não consegue conviver com coisas velhas e sempre se submete neuroticamente às modas efêmeras, janelas abertas diante do nada. Buscar palavras novas que possam traduzir em atitudes e gestos novos a Boa Notícia. Palavras que nascem e renascem no seio da Palavra: “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus”. Enfim, palavras e práticas fracas e impotentes, que não têm o poder de convencer, são hegemônicas, desarmadas, crucificadas. Crucificadas junto com as vítimas incontáveis deste nosso tempo. Que esperam Vida em plenitude. Ressurreição.

 

 

IHU On-Line - Como o cristianismo pode oferecer caminhos de respostas para as crises de nosso tempo? E quais os principais limites do cristianismo de hoje a serem superados?

Flavio Lazzarin - Não o cristianismo, mas, com certeza os que buscam Jesus, podem oferecer luz nesta catástrofe planetária. Para dar um exemplo, ao qual não falta visibilidade, vemos, nesta estação esfacelada da história, erguer-se a figura do papa Francisco, que, apesar dos limites da secular instituição eclesiástica, é cada vez mais livre dos condicionamentos do autoritarismo monárquico e assume a profecia da igualdade fraterna e sororal do batismo e da vida. Outro sinal de autenticidade evangélica é o fato de ele ser hostilizado, odiado e perseguido por parte daqueles que estão com saudade de uma Igreja poderosa e triunfal, discretamente – e, às vezes ostensivamente – aliada aos poderes deste mundo. Francisco convida as comunidades para sair do poder clerical e patriarcal, fugir da liturgia desligada da vida dos pobres, oprimidos e sofredores e enfrentar, com a movimentação popular, o poder capitalista que nega a vida e propaga a morte.

Outra atitude espiritual que é necessário recuperar diante das terríveis conjunturas é a revisão da convicção que o nosso tempo seria uma exceção da história humana. “Ninguém se engana: a nossa história já começou desumana” cantavam profeticamente as Comunidades Eclesiais de Base - Cebs nos anos 1980. Se, com efeito, penso na vida do meu avô, nascido em 1897, e do meu pai, 1922, tenho a obrigação de lembrar que eles e os seus contemporâneos passaram pelo inferno de duas guerras mundiais, que devastaram, junto com suas vidas e a vida de tantos parentes e amigos, a Europa inteira. Se penso nos indígenas e nos camponeses da Abya Yala, não posso esquecer a tragédia do processo colonizador, que, ainda hoje, continua roubando, expulsando, matando e desmatando.

Em suma, a Qohelet– feminino mesmo! – repete: “Não há novidades debaixo do sol”. A pandemia simplesmente desmanchou as nossas ilusórias convicções de que, depois de duas guerras mundiais e algumas ditaduras civis-militares, teríamos aprendido a tratar sabiamente a vida, a economia, a política, a ordem, o progresso e a história.

 

IHU On-Line - Em outra entrevista que o senhor nos concedeu, afirmou que “ideologias e teologias não são companhias suficientes para o missionário” e que se deve estar conectado com o mundo e os rostos que o cercam. Nesse sentido, como conceber uma teologia que pulsa na vida real? O que outras experiências teológicas do passado legaram e o que deve ser deixado para trás?

Flavio Lazzarin - Pensamento crítico e reflexão teológica, a aliança entre fé e racionalidade, são uma boa companhia, desde que não sejam meras operações intelectuais, mas, ao contrário, possam corresponder a atitudes existenciais e espirituais.

 

 

IHU On-Line - Nessa mesma entrevista, o senhor apresentou uma leitura muito peculiar acerca da ideia de padrinho e padroeiro. Dentro dessa sua perspectiva, quais os desafios para compreender a piedade popular sem se servir dela e tampouco a instrumentalizar, usando de teorias e teologias para lhe impor transformações?

Flavio Lazzarin - Devemos ser amorosamente respeitosos das religiões e religiosidades tradicionais e populares. Não se trata, popularescamente, de aceitar tudo, sem discernimento. Isto se dá – é óbvio – a partir das nossas limitadas subjetividades católicas, de uma minoria eclesial que não aceita religiosidades mágicas e milagreiras. Porém, deve-se fugir da presunção colonizadora de poder condenar, modificar e controlar religiosidades diversas das nossas. A presunção de ser mestres da vida e vacinados da alienação nos transformaria em pessoas intolerantes e violentas. Dentro e fora da comunidade católica. Com efeito, o mundo espiritual das pessoas é um sacrário inviolável. Aliás, a alteridade diferente e irredutível é sempre uma vacina contra as falsas seguranças da identidade.

Além disso, se determinadas religiosidades surgem a partir da ausência de um estalo crítico, deveríamos saber que também o surgir da capacidade crítica não está nas mãos de educadores iluminados, numa relação de causa-efeito, que garantiria o sucesso pedagógico. O estalo do pensamento crítico é mais um mistério da vida.

Tem mais um motivo de preocupação: está inscrita constitutivamente nos processos de conhecimento a possibilidade de reduzir o outro a mero objeto das nossas indagações críticas. E isto é muito colonial. Muito ocidental. Neste sentido, achei revolucionários os ajustes críticos de Bruce Albert no livro de Davi Kopenawa, A queda do Céu: o antropólogo aparece só no conjunto final das notas explicativas, o que representa uma inversão radical do método antropológico, que, normalmente, coloca o pesquisador no centro e relega os protagonistas entrevistados nas notas.

Estes cuidados éticos, porém, não nos afastam da prática do macroecumenismo, âmbito em que, a partir de lutas em defesa da vida, podemos celebrar a aliança não só de povos e comunidades diferentes, mas a      com os encantados e as encantadas dos povos indígenas e os orixás da negritude.

 

IHU On-Line - Já em artigo que reproduzimos recentemente, o senhor tece crítica ao que chama de ‘fragmentação da Modernidade’, e menciona a emergência de superarmos as ‘disputas entre tribos’ e o desafio de buscar processos universais que nos unam. Gostaria que o senhor recuperasse essa ideia brevemente e nos explicasse como, no caso brasileiro, quais são as disputas que estão em jogo e como podemos superá-las. 

Flavio Lazzarin - São sonhos ou delírios esses sobre um novo universalismo, que nascem de uma interpretação de Paulo como revolucionário fundador do universalismo cristão a partir do Senhor Jesus, em alternativa radical ao César, senhor e imperador do mundo. No IV século, Constantino se servirá do cristianismo para reeditar o universalismo imperial romano. Sonho cancelado também na ruptura entre católicos e luteranos e na costura imperial do conflito com o princípio do “cuius regio, eius religio”. Sonho ou delírio, porém, que Davi Kopenawa Yanomami confirma com a sua profecia sobre a queda do céu, que não é para ele ameaça e desafio só para o seu povo, mas para toda a humanidade. Convite, que é também do papa Francisco, para viver esta comunhão fraterna na experiência do fim do mundo e na esperança da mudança que vem dos pequeninos e das pequeninas.

Além disso, sonhar ou delirar com a possibilidade antibabélica de diferenças que não caem na armadilha da afirmação assassina da identidade, mas sabem conviver na busca incessante da ágape, em oposição ao conformismo globalizado. Projeto este, que povos originários, quilombolas do campo e da cidade, comunidades camponesas tradicionais, pescadores e ribeirinhos estão tentando, entre mil dificuldades, defender e implementar.

 

 

IHU On-Line - O ano de 2022 também será um ano eleitoral. A partir do que o senhor tem auscultado, quais devem ser os cenários da disputa presidencial? E que relações são possíveis de estabelecer com o resultado do pleito municipal de 2020?

Flavio Lazzarin - Segue parte de um artigo publicado, em novembro, no Facebook, e revisitado.

A conjuntura da nossa Abya Yala provoca grande tristeza. É a situação dos negros, dos pobres da cidade e do campo, dos indígenas, das mulheres, dos cerca de 200.000 mortos da pandemia, do aumento sem precedentes da população de rua, das lutas territoriais que não encontram êxitos... O que está acontecendo no Planeta, e também aqui, é o fim do mundo a que estávamos acostumados. Também aqui acabou o sistema político da modernidade; acabaram as presunções representativas da democracia parlamentar; acabou a expectativa de poder mudar a sociedade e o mundo com os processos eleitorais. A não ser, como na vizinha Bolívia, onde o processo eleitoral foi conduzido por fortes mobilizações dos povos originários, que – é bom lembrar – não quiseram simplesmente voltar ao tempo de Morales, mas estão tentando gestar um novo tempo do Bem Viver, em que a eleição não passa de um momento de uma luta mais ampla e cotidiana. Acabou, mas a maioria, também entre nós, insiste em repetir o passado, pensando assim de poder salvar o cadáver há tempo apodrecido do jogo político dominante. É o que aconteceu também nesta última farsa eleitoral.

O que me deixou perplexo e assustado foi o regresso explícito, estatisticamente significativo, de tantos e tantas que pertencem ao nosso meio, ligado às lutas descolonizadoras e anticoloniais das identidades territoriais, à “festa da democracia”. Quantos irmãos e amigos se vincularam, numa neurótica compulsão à repetição, às campanhas eleitorais da chamada esquerda, quando também aqui, poderia resultar cada vez mais complicado distinguir o que é de direita ou de esquerda. Sobretudo da esquerdaurbana”, que excluiu da sua pauta, junto com os desafios da crise civilizacional que estamos atravessando, também os anseios e as reivindicações dos povos do campo.

 

 

Faz tempo que seria necessário polarizar contra a polarização espetacular e oportunista. O novo polo não é ilusão, porque, de fato, existem, há décadas, movimentos que agem e que pensam a partir da crise civilizacional do Antropoceno e tentam lutar a favor de novas matrizes energéticas, para substituir petróleo, hidrocarbonetos, grandes e pequenas hidroelétricas e falsas energias limpas. São movimentos minoritários que se juntam às lutas contra o agronegócio e a mineração desenfreada e sem controle. Aqui estão os pobres e os povos, que sempre perderam as eleições! Reduzir a análise das conjunturas a considerações sobre sucessos e derrotas eleitorais é aceitar se conformar à navegação de pequena cabotagem, quando, por lutas e reflexões, já podíamos ter alcançado o mar aberto.

Precisamos polarizar contra a falsa polarização eleitoreira, também, porque faz tempo que as conjunturas políticas que permitiam certa relação entre Estado e as demandas dos movimentos indígenas e camponeses esgotaram-se irremediavelmente. Vejam bem: também na estação do lulo-dilmismo, a Reforma Agrária e as reivindicações indígenas viraram cinza; até 2015 distribuíram migalhas; de 2015 para cá, nem as migalhas. E hoje em dia, a mediação não tem nem existência metafísica. O que temos e continuaremos tendo é o chumbo grosso da elite escravocrata e colonizadora do Brasil.

Alguém poderia comentar quanto ao exposto, me acusando de exageros e de radicalidade ilusória e inconsequente, passando a me perguntar se ainda nesta análise possa ter espaço um mínimo de esperança.

Respondo que tem esperança e que tenho esperança. Posta a premissa que não é esperança nas possibilidades eleitorais de 2022, precisa dizer que seria desonesta uma análise das conjunturas que se limitasse à listagem do negativo, ignorando os desafios e se recusando a apontar rumos e remos.

Esperança:

 

 

IHU On-Line - No começo da pandemia, alguns falavam em transformação enquanto outros acreditavam que tudo permaneceria como antes. E o senhor, como vê essa questão hoje?

Flavio Lazzarin - Eu acho que quando a pandemia terminar, teremos um mundo pior do que antes. As elites brasileiras já começaram a acelerar processos de violência pública e privada contra os pobres do campo e da cidade, com a complacência do poder executivo e judiciário. E o silêncio da opinião pública. Aproveitando a covid-19, se “deixa passar a boiada”: grilagem, desmatamentos em todos os biomas, mineração descontrolada, assassinatos, ameaças, despejos, criminalização de lideranças, violência da polícia e das milícias... naturalizando as desigualdades e abandonando os pobres ao seu destino. O Estado se articula, desde já, para aplicar mecanismos de controle dos cidadãos e exercer arbitrariedades e ilegalidades a que não éramos acostumados, apesar da violência que sempre caracterizou a nossa sociedade. Cada vez mais estado de exceção e cada vez menos estado de direito. Cada vez mais fome e injustiça...

 

IHU On-Line - Como despertar “monges” que habitam em nós nesses tempos tão difíceis e silenciar “os delinquentes” que reinam desde o caos? Aliás, esse pode mesmo ser um caminho?

Flavio Lazzarin - A parábola dos delinquentes e dos monges é de Giorgio Agamben, que se apresenta como o mais lúcido e polêmico analista destes tempos sombrios. Corre o risco da rejeição de boa parte da comunidade intelectual do mundo sobretudo por reiterar o inevitável triunfo do estado de exceção a partir da gestão estatal da pandemia na Europa. Me servi da sua imagem de delinquentes e monges, forçando – e não pouco – o seu pensamento e adaptando-o à constitutiva solidão – em comunhão de solidões – do discípulo e da discípula de Jesus, que enfrentam o Templo e o Palácio. Como o fizeram os monges do IV século, diante da traição constantiniana. Testemunho radical, que comporta decisões e rupturas, sem nunca renunciar à fraternidade; processo em que descobrimos antes de tudo a verdade sobre nós mesmos: que somos falhos e pecadores, indiretamente cúmplices do sistema iníquo, precisando diariamente do perdão de Deus e dos irmãos.

 

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