A sociedade adoeceu. Diante da ameaça do fascismo, Brasil precisa de um artista, um político que seja senhor da arte de tecer algo comum. Entrevista especial com Luiz Werneck Vianna

Foto: Metrópoles/Hugo Barreto

Por: Patricia Fachin | 23 Junho 2020

Para compreender o momento presente e as crises políticas e sociais que o Brasil enfrenta, o sociólogo Luiz Werneck Vianna costuma dar um passo atrás em busca das causas. O abismo político e social diante do qual o país se encontra hoje, assegura, é consequência da política praticada nos últimos anos. A eleição do presidente Bolsonaro e os sucessivos atos antidemocráticos que reivindicam o fechamento do Supremo Tribunal Federal - STF e do Congresso Nacional em defesa de um governo autoritário, são indicativos de que a sociedade brasileira adoeceu porque a política praticada nas últimas décadas não favoreceu a organização da cidadania. “Não quero arrumar culpados, mas fomos todos que perdemos uma herança importantíssima; deixamos que se dilapidasse diante dos nossos olhos a Carta de 88, que é de inspiração social-democrata – é débil, mas é uma social-democracia e tinha possibilidade de desenvolvimento futuro. Para que isso ocorresse, precisávamos ter entendido que democracia política e democracia social deveriam andar juntas. No entanto, a partir de determinado momento, a esquerda hegemônica, no caso o PT, conduziu o tema do social sem política, sem amparar o social em instituições democráticas e sem fortalecer a democracia”, afirma.  

As consequências de uma política “desamparada de sustentação cidadã” podem ser vistas nas diferentes tentativas do governo atual de levar adiante a expansão irrestrita do capitalismo, removendo todas as barreiras sociais, e tentando remover as instituições democráticas, como o STF e o Congresso. Entretanto, adverte, remover as “trincheiras democráticas”, “nas circunstâncias do mundo atual, não é fácil, ainda mais sem a reeleição de Trump”.

Enquanto a sociedade brasileira agoniza diante da crise pandêmica, do aumento do desemprego e da falta de perspectivas para o futuro, no meio político busca-se um "replantio", ou seja, restabelecer "caminhos já percorridos, como o da Frente Ampla, que fazem com que o diverso possa se encontrar, independentemente das suas diferenças". A questão, contudo, é ver se a iniciativa "frutifica".   

Segundo ele, apesar de não ter surgido uma liderança política que possa fazer frente ao fascismo tabajara do governo Bolsonaro, iniciativas populares de auto-organização se fortaleceram durante a pandemia nas periferias carioca e paulista. “As coisas estão fermentando, aparecendo, mas é claro que no mundo da política são necessárias outras qualidades: é preciso de alguém com perfil de estadista, que pense a partir da ciência, mas tenha a arte de realizar as suas concepções, que seja ouvido, capaz de ter audiência. Isso está nos faltando, mas vai aparecer. Sempre aparecem esses personagens”. 

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Werneck Vianna analisa os últimos acontecimentos da conjuntura nacional, como a prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, preso na última quinta-feira. Queiroz, comenta, “faz parte do tipo de gente que veio com este governo: a ralé, o mundo das milícias. Deixamos a sociedade tão vulnerável, que ela não só foi apropriada por essa gente que está no governo, como criamos espaço para a penetração das milícias no meio popular”. 

Apesar do contexto atual, o sociólogo acredita que a crise pandêmica poderá gerar mudanças significativas no Brasil e no mundo. “A ideia de cooperação, de uma sociedade mais solidária, igual, está se impondo por força das próprias circunstâncias que vivemos hoje. Os limites da sociedade conhecida já foram dados. Vivemos o fim de uma época e estamos no limiar de outra, que já nasce com algumas percepções fortes: cooperação, igualdade, solidariedade, ciência”, conclui.

Luiz Werneck Vianna (Foto: Acervo IHU)

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu novo livro intitulado Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), que é composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O seu diagnóstico é o de que a democracia está em risco não somente por causa do governo, mas porque a sociedade adoeceu, perdeu-se de si mesma. Desde quando estamos doentes política e socialmente? 

Luiz Werneck Vianna – Tudo que acontece hoje só foi possível porque a sociedade adoeceu antes e permitiu a vitória dos que estão aí. Eles não chegaram ao poder pelo golpe, mas pelo voto. Como os anos dos governos petistas não favoreceram a organização da vida popular, não favoreceram a organização da cidadania, a política ficou desamparada de sustentação cidadã. Se acumulou, na sociedade, por força disso, um tipo de comportamento em setores sociais bem determinados – que chamo de ralé de camadas médias -, dirigido inteiramente ao consumo, ao culto idiota às personalidades midiáticas independentemente dos seus valores. Criou-se uma personalidade em torno da Sara Giromini, que usa o codinome Sara Winter, nome de uma espiã inglesa em favor do nazismo. Não importa, para eles, a história; importa a exibição, o espetáculo e eles tiveram uma votação impressionante nas últimas eleições. Quantos deles estão nas casas parlamentares? Pessoas que vieram de lugares inexpressivos da vida social conquistaram posições e estão aí hoje, emperrando a resistência democrática no Congresso.

 

A criação de um abismo

 

Nada do que nos ocorreu foi fruto de um acaso; não havia nenhuma fatalidade que nos empurrasse para essa situação. Nós criamos este abismo diante dos nossos pés com o tipo de política que praticamos nos últimos tempos. Não quero arrumar culpados, mas fomos todos que perdemos uma herança importantíssima; deixamos que se dilapidasse diante dos nossos olhos a Carta de 88, que é de inspiração social-democrata – é débil, mas é uma social-democracia e tinha possibilidade de desenvolvimento futuro. Para que isso ocorresse, precisávamos ter entendido que democracia política e democracia social deveriam andar juntas. No entanto, a partir de determinado momento, a esquerda hegemônica, no caso o PT, conduziu o tema do social sem política, sem amparar o social em instituições democráticas e sem fortalecer a democracia.

Um caso exemplar disso foi a não subscrição por parte do PT da Constituição de 88. A distância que o partido toma – o partido representava naquele momento a questão social na sua forma mais visível no Brasil – e o fato de não ter assinado a Carta é muito sintomático deste posicionamento de que ele iria procurar avançar na agenda social por fora das instituições, e isso foi debilitando a democracia entre nós. Inclusive, porque – eu tenho prurido em falar assim e no artigo eu falo em “blasfêmia” – foi um partido de esquerda com representação no mundo sindical, que é o coração pulsante da esquerda. O PT fez isso por falta de orientação e, quando acabou conquistando o governo, quis fazer dele um instrumento do seu programa da questão social com independência das instituições, sem organizar, sem atentar para a distância que a cidadania tomava das instituições, do Estado, porque tudo vinha de cima para baixo. Isso foi tornando a democracia debilitada

 

Ralé de novo tipo

 

A derrota que tivemos é eleitoral e não um golpe como em 64. E mais: não foi só a eleição presidencial, foi um tsunami de votos de uma ralé de novo tipo que surgiu na política brasileira sem que nos déssemos conta disso.

Nós perdemos, mas não perdemos tudo. Uma parte da nossa herança democrática conquistada em 88 ficou e algumas instituições também. Essas instituições ainda têm a memória do que se conquistou naquele tempo. Como o governo que aí está é um governo que vem realizar um programa há muito tempo ansiado e esperado pela alta burguesia brasileira, de reformar a sociedade de uma forma tal que ela se tornasse mais compatível, propensa e favorável à penetração do capitalismo em todas as suas instâncias, as instituições aparecem como um obstáculo a ser removido. A marca neoliberal da política econômica foi anunciada e atraiu setores muito poderosos da elite econômica, especialmente do capitalismo agrário, do agronegócio e do setor financeiro do capitalismo brasileiro, para que agora não se tenha obstáculos para avançar: sem legislação trabalhista, sem legislação social, sem a social-democracia que trava e obriga a certas concessões.

É por isso que se quer entrar em terras indígenas e fazer delas mineração, trazer os cassinos para as grandes cidades, fazer com que o capital na sua forma pura venha a prevalecer em todas as instâncias da vida social. Este foi o projeto. Este projeto, contudo, não quer nenhum obstáculo pela frente, como as instituições herdadas da democracia anterior. A luta, então, se estabeleceu: remova-se o Supremo Tribunal Federal - STF, remova-se o Congresso, para fazer da sociedade brasileira um território limpo e acessível para a extensão do capital onde for possível. O capital quer tornar a sociedade totalmente domesticada e as instituições têm recusado isso com energia, criatividade, coragem, mas elas não têm instrumentos de defesa poderosos, salvo os da ordem moral. Então, elas foram sitiadas e pretende-se ou maculá-las ou erradicá-las, e estamos nesta disputa em que o governo avança contra as instituições e as instituições se defendem. Por ora, graças a Deus, a defesa tem sido efetiva. A sociedade está em crise, não há um desenlace para isso e não podemos acumular forças nas ruas por causa da pandemia; nós temos que defender nossas vidas. E com esta circunstância, o apoio externo que poderia vir às instituições fica fraco. Até agora a linha de resistência tem sido efetiva. Mas até quando? 

IHU On-Line – Quais instituições reagem e lideram a resistência? 

Luiz Werneck Vianna – O Judiciário tem posto uma linha de resistência segura e tem sido uma trincheira importante das conquistas de 88. Até quando, não sabemos. Estamos numa guerra de posições, mas a essa altura, este governo tenta transformar essa guerra de posição em guerra de movimento, isto é, avançar sobre o nosso sistema defensivo a fim de destruí-lo.  

O que se diz, como ficou claro na reunião ministerial de 22 de abril, é que se quer aproveitar desta pandemia para avançar com garimpo, com distribuição de terras, com a expansão do agronegócio para colocar vaca no lugar da mata.  

IHU On-Line – Está claro como as Forças Armadas estão se posicionando nesta crise ou por que não se posicionam?

Luiz Werneck Vianna – Não tenho informações confiáveis do que se passa na cabeça da oficialidade que está nos quartéis. A que está nos palácios, sabemos, porque eles demonstram as iniciativas que o governo está tomando. Agora, irão eles abandonar as instituições e ir para uma ditadura aberta? Será que toparão isso? É um mundo de risco para eles também. Tendo a achar que não. Há um sentimento de autodefesa da corporação diante desses riscos, das circunstâncias em que o mundo se encontra. O STF encontrou uma linha de resistência sóbria, firme e segura. No limite, que removam o STF e corram esse risco. O mundo não está favorável para isto e Trump não deve ganhar as eleições.

Irão eles [militares] abandonar as instituições e ir para uma ditadura aberta? Será que toparão isso? É um mundo de risco para eles também. Tendo a achar que não - Luiz Werneck Vianna

IHU On-Line – Por que a democracia não é um valor incondicional na sociedade brasileira? 

Luiz Werneck Vianna – Porque a nossa sociedade formou-se à margem da vida democrática. Como nós nos criamos enquanto Estado, nação e sociedade independente? Foi por uma revolução social libertadora? Não, foi por um movimento de cúpulas: o herdeiro da monarquia se torna imperador no Brasil. Como chegamos à República? Foi por um movimento popular visando à participação? Não, foi por um golpe militar. Como chegamos à abolição? Bom, com um certo movimento popular; o movimento abolicionista foi importante, mas foi por um ato imperial da princesa Isabel. Não houve um embate que fizesse com que setores mais reacionários fossem deslocados. O que havia de mais reacionário na sociedade imperial, com a abolição, não foi muito afetado. Portanto, a nossa tradição de formação histórica é uma tradição conservadora, quando não reacionária. Como fizemos a nossa revolução burguesa? Por cima, com Vargas, no Estado Novo. Como se deu todo o processo da modernização? Se deu com alguns institutos liberais funcionando, mas com a Lei de Segurança Nacional do Estado Novo ainda vigendo, com a concepção reacionária de ordem social, de repressão à vida popular nos anos 1950 e 1960.

Nos anos 60, o cenário começa a mudar – aí deu pânico na direita brasileira – no terreno mais sensível, que é o campo, a vida agrária, de onde nós saímos, de onde começamos a nossa história, com as Ligas camponesas. A organização da vida popular no campo se tornou uma ameaça e foi preciso interrompê-la para manter o padrão conservador, reacionário, que é a nossa tradição. O golpe de 64 vem nessa linha. Temos uma história pesada de autoritarismo, de domínio burguês autoritário. Não conhecemos uma revolução democrática burguesa; a nossa revolução foi por cima, pelo Estado. Quer dizer, os heróis empresários brasileiros tiveram um destino muito triste: Monteiro Lobato chegou a ser preso pelo Estado Novo por suas lutas em torno do petróleo e do aço; o projeto dele era se tornar um Henry Ford do Brasil. Não tivemos um Henry Ford vindo da sociedade, como nos EUA. As mudanças ocorreram via Estado e isso deixou marcas de autoritarismo muito profundas; enfrentá-las demandava uma inteligência que não tivemos, não soubemos ter. Cavamos um abismo aos nossos pés, como diz a música do Cartola. E agora, como sair disso? Estamos tentando, restabelecendo caminhos já percorridos, como o da Frente Ampla, que fazem com que o diverso possa se encontrar, independentemente das suas diferenças. Tudo isso é um replantio. Vamos ver se frutifica.   

IHU On-Line -  Direita, centro e esquerda vão conseguir vencer as diferenças em prol de um pacto para deter a extrema direita, como alguns sugerem? 

Luiz Werneck Vianna – Diante da ameaça do fascismo – porque é disso que se trata – devemos procurar uma unidade de todos. Agora, isso é difícil, porque a nossa sociedade não é muito sábia, não tem história de sabedoria. Mas estamos tentando.

Isso vai depender da política, que depende da ciência e da arte também. Vai depender do artista, de um político que seja senhor da arte de fazer esta composição difícil. No momento, este artista não está disponível, não temos um Ulysses Guimarães, um Tancredo Neves, que eram artistas desta arte de fazer política, de tecer, a partir das ideias das pessoas, uma coisa comum. Pode ser que esteja aparecendo aí e ainda não vimos. Tem muita movimentação importante na nossa sociedade, inclusive nos setores subalternos, com novos intelectuais vivendo no mundo subalterno, como o Emicida, que é músico, um intelectual finíssimo, um jovem. O conheço apenas da televisão, de entrevistas, e me impressiona muito. Como ele, há muitos e muitos outros que estão se apresentando agora.

 

Vida popular

 

Na vida popular há instituições, como a da organização popular de Paraisópolis, em São Paulo, que conseguiu estabelecer estratégias de defesa contra a pandemia. Ela é muito interessante como auto-organização. Está havendo movimentos positivos na crise atual que estamos vivendo. Além de Paraisópolis, há uma série de outros casos. Na Rocinha, que é uma favela importante no Rio de Janeiro, há um movimento de auto-organização muito interessante. As coisas estão fermentando, aparecendo, mas é claro que no mundo da política são necessárias outras qualidades: é preciso de alguém com perfil de estadista, que pense a partir da ciência, mas tenha a arte de realizar as suas concepções, que seja ouvido, capaz de ter audiência. Isso está nos faltando, mas vai aparecer. Sempre aparecem esses personagens.

IHU On-Line - O senhor tem chamado o governo de “fascismo tabajara”.  Mesmo sendo tabajara, ele representa ameaças à democracia? Há algo comparável a este momento na história do Brasil? 

Luiz Werneck Vianna – Que é fascista, não tenho dúvidas. É tabajara porque as circunstâncias são as nossas, brasileiras, daqui deste pedaço escondido do mundo, que é o Brasil. O fascismo aparece como um projeto bem mais sofisticado. Não dá para esquecer que no nazismo alemão, [Martin] Heidegger aderiu, Carl Schmitt aderiu; não foi um fenômeno com a ausência do grande pensamento, de grandes intelectuais. Aqui temos quadros de pobres personagens e, por isso, tabajara. Mas é fascismo.  

O próprio integralismo no Brasil era um movimento de grandes intelectuais. Para mencionar alguns que me ocorrem agora: Santiago Dantas e Helder Câmara. Eles são homens que se aproximaram do liberalismo depois, mas que tiveram este momento de adesão ao fascismo. Miguel Reale, cujo filho está aí e é um liberal importante, também se tornou um liberal no final da vida. Afora a penetração do integralismo nos círculos militares, especialmente na Marinha. Portanto, é inteiramente distinto do que está ocorrendo aqui. É um movimento de pessoas muito rudes, toscas, despreparadas. Algumas, pouco alfabetizadas e dependentes do trumpismo. Essa armação de política externa desamparada, com Trump à frente, está sob ameaça. Trump, a esta altura, dificilmente vencerá as eleições e, sem Trump, o que será deles? 

Eles precisam remover as trincheiras, mas removê-las nas circunstâncias do mundo atual não é fácil. Como o Brasil vai reagir à opinião pública internacional em relação a isso? Ainda mais que vivemos de vender mercadorias para fora. E se nossos compradores começarem a enjoar de nós e não quiserem mais comprar as nossas mercadorias? E se a China resolve diversificar os seus vendedores, diminuindo ou rebaixando a presença brasileira no fluxo comercial? Como vai ficar se a União Europeia fizer a mesma coisa? São ideias muito anacrônicas, em um momento em que a sociedade humana enfrenta a pandemia.

A pandemia trouxe o tema da ciência como um dos mais relevantes da cena contemporânea, porque esta pandemia põe no horizonte outras que poderão vir. A sociedade humana precisa se defender e só pode se defender com a ciência, e ciência só se faz com liberdade.

IHU On-Line – A prisão de Fabrício Queiroz poderá reorganizar a cena política? Qual é o significado político dessa prisão para o governo, especialmente para o presidente Bolsonaro? 

Luiz Werneck Vianna – Faz parte do tipo de gente que veio com este governo: a ralé, o mundo das milícias. Deixamos a sociedade tão vulnerável, que ela não só foi apropriada por essa gente que está no governo, como criamos espaço para a penetração das milícias no meio popular. Qual é a presença real da Igreja Católica na vida popular, nas favelas cariocas, que eu conheço relativamente bem? Muito pequena. Qual foi a presença do PT na vida periférica e das favelas? Muito pequena. Deixamos espaço para que esses aventureiros armados ocupassem essas posições e se tornassem presentes nos processos eleitorais, com candidatos, apoio, financiamento. Eles controlam setores das classes periféricas. Isso tem que ser combatido e a sociedade começou a acordar para isso.

A sociedade está muito doente. Está doente com a pandemia e socialmente doente; precisa se curar. Ela está em processo de cura, vamos ver se dá tempo. O mundo está curando suas feridas numa direção muito boa: da paz, da ciência, da defesa do meio ambiente. Basta ver o que houve na juventude americana há duas semanas. Isso é de uma importância fundamental. 

Queiroz é um homem das milícias. O que pode fazer o Queiroz? A partir da prisão dele, pode-se puxar um fio que irá expor as vísceras das milícias, se ele quiser falar. 

IHU On-Line – Uma delação premiada seria um caminho?

Luiz Werneck Vianna – Ele pode inventar isso e aí vai tudo embora... sei lá. 

IHU On-Line – Qual é o significado da aproximação do governo com o Centrão?

Luiz Werneck Vianna – É uma tentativa de sair das dificuldades em que ele se encontra pela política, evitando o caminho do golpe, que é um caminho arriscadíssimo para eles. O Centrão é a tentativa de encontrar um caminho na política, o que qualquer estrategista diria que é o mais aconselhável para eles porque, inclusive, no horizonte está a derrota de Trump. Se há alguma lucidez entre eles, o caminho é a política, é encontrar um caminho para levar este governo até o seu término. A saída de [Abraham] Weintraub, que é um destrambelhado, fortalece essa possibilidade. Vamos ver se esse governo aprende a fazer política. 

Na opinião pública, Bolsonaro já perdeu. Não dá para saber ainda em que medida perdeu, porque a sociedade está assustada em suas casas, com medo da pandemia, com razão.

IHU On-Line – As recentes manifestações que ocorreram contra o presidente indicam alguma novidade? 

Luiz Werneck Vianna – Aqui as manifestações foram pouquinhas; na América [EUA] foi todo mundo. Elas foram positivas, apesar de darem apenas uma parte do que poderiam ser se não tivesse a pandemia. As manifestações de São Paulo foram expressivas, algumas no Rio de Janeiro também. A sociedade adoeceu, mas não toda ela; uma parte continua resistindo, continua com valores. Uma parte da Igreja Católica adoeceu, aquela que foi fazer acordos com o governo para ter recursos para televisão. Mas há setores dentro da Igreja que não estão doentes, lutam e resistem. 

Foram anos de uma sociedade formada a partir da dominação autoritária, da escravidão. Queríamos ter o que como resultado? Essa milícia que está aí. Estão tentando fazer milagres de cauterizar as feridas, de encontrar um caminho. 

IHU On-Line – Como será o Brasil depois da pandemia?

Luiz Werneck ViannaDepois da pandemia, vai ser um mundo bom (risos). Não gosto de pensar nisso; é um futuro tão desejado que é melhor deixar ele se impor, se ele se impuser. Esperamos que isso termine para que possamos encontrar os amigos, os filhos, os netos. A sociedade que vai sair disso será melhor. 

IHU On-Line – Mesmo com o aumento da pobreza, da crise econômica? 

Luiz Werneck Vianna – A economia sempre se resolve. 

IHU On-Line - Os intelectuais estão refletindo sobre o momento que estamos vivendo e fazendo projeções de como será o futuro pós-pandemia. Como o senhor tem pensado sobre este momento, sobre os impactos deste período para a sociedade? Que pensamentos a pandemia de covid-19 tem lhe suscitado? 

Luiz Werneck Vianna – O planeta está também sob ameaça na questão ambiental, das pandemias, então, a ideia de cooperação, de uma sociedade mais solidária, igual, está se impondo por força das próprias circunstâncias que vivemos hoje. Os limites da sociedade conhecida já foram dados. Vivemos o fim de uma época e estamos no limiar de outra, que já nasce com algumas percepções fortes: cooperação, igualdade, solidariedade, ciência. O nosso planeta é muito pequeno e não pode mais ser depredado pela ação dos homens como foi e vem sendo feito.

Há um sentimento de autodefesa da espécie que vem se manifestando a partir de seus intelectuais, da sociedade, das grandes organizações, dos países democráticos, da igreja, na ação do papa Francisco, muito especialmente, que é o horizonte com o qual vamos nos defrontar – aqueles que conseguirem sair desta pandemia vivos. Espero ser um deles; mas, enfim, eu sou do grupo de risco. 

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