Contingência e liberdade. A aporia fundamental do sistema hegeliano. Entrevista especial com Manfredo Araújo de Oliveira

Para Manfredo de Oliveira, a negação do caráter abrangente da Filosofia é uma característica fundamental das tendências filosóficas não-analíticas no pensamento contemporâneo

Foto: Pixabay

Por: Márcia Junges e Patricia Fachin | 03 Julho 2020

“Para Cirne-Lima, a Filosofia está profundamente ligada às questões fundamentais da vida humana e não é ela que cria as perguntas básicas do ser humano, embora essas o acompanhem em sua vida”, considera Manfredo Araújo de Oliveira, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o pesquisador analisa alguns aspectos da produção intelectual do filósofo gaúcho e afirma que, como herança, Cirne-Lima deixa “certamente sua insistência no pensamento da totalidade e o enorme esforço para pensar a totalidade de tal forma que a contingência e a liberdade sejam elementos centrais”.

 

Manfredo Araújo de Oliveira. (Foto: Youtube/Reprodução)

 

Manfredo Araújo de Oliveira é graduado em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza, mestre em Teologia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, e doutor em Filosofia, pela Universität München Ludwig Maximilian. Atualmente, atua como docente da Universidade Federal do Ceará (UFC). Entre seus livros mais recentes, citamos O Deus dos filósofos contemporâneos (Petrópolis: Vozes, 2003) e Dialética hoje: lógica, metafísica e historicidade (São Paulo: Loyola, 2004).

 

A entrevista foi publicada originalmente na revista IHU On-Line, Nº. 261, 09-06-2008.

 

Confira a entrevista.

  

IHU On-Line – Qual é a sua interpretação sobre a correção que Cirne-Lima propõe ao sistema de Hegel? O necessitarismo realmente desaparece após essa correção?

Manfredo Araújo de Oliveira - Para Cirne-Lima, o sistema de Hegel é fundamentalmente incapaz de pensar a contingência e a liberdade, apesar de pretender, pois a necessidade perpassa todo o sistema de tal modo que a primeira parte do sistema e a última são vinculadas por um nexo necessário e, com isto, a história é destituída de qualquer contingência, já que nada mais é do que o desdobramento necessário da ideia absoluta. Cirne-Lima pretende escapar ao necessitarismo atribuído ao sistema hegeliano, repensando-o de tal forma que sejam compatíveis as duas afirmações básicas do sistema: a necessidade do engendramento de novos aspectos e o caráter não-necessário dos aspectos engendrados, assim que o primeiro princípio é absoluto, na medida em que, numa análise regressiva, não é condicionado por nenhum princípio anterior a ele, mas, sim, para frente, pois precisa, tem que (necessidade) engendrar o outro de si. Escapa ele da aporia fundamental que marca o sistema hegeliano? Em seu sistema alternativo, a passagem da primeira parte para a segunda parte do sistema, do primeiro princípio para a natureza, continua necessária sob um aspecto (ela precisa existir), mas é não-necessária sob outros aspectos (os aspectos podem ser os mais variados possíveis). Isto é uma forma de necessitarismo. A resposta adequada a esta pergunta implicaria pelo menos um confronto mais profundo com as teorias modais atuais e com as novas teorias ontológicas.

 

IHU On-Line – Cirne-Lima e Klaus Düsing, de Colônia, Alemanha, chegaram à mesma teoria independentemente, sustentando que, quando fala em contradição, Hegel quer dizer contrariedade? Qual a importância desta descoberta para os estudos de Hegel?

Manfredo Araújo de Oliveira - Cirne-Lima tem consciência de não ter propriamente descoberto esta solução, porque ela já se encontra no pensamento de Kant, portanto anterior a Hegel, e na discussão entre os discípulos de Hegel da primeira geração. Para compreender a importância da retomada desta problemática no pensamento de Cirne-Lima, é fundamental levar em consideração que é lugar comum entre os críticos do pensamento dialético a afirmação do caráter irracional da dialética, por não aceitar, segundo eles, o princípio de não-contradição, o que a levaria fatalmente à autodestruição. Isto significa dizer que se trata de um pensamento que não precisa ser levado a sério. Cirne-Lima, com isto, repõe sua credibilidade.

 

 

IHU On-Line – Em seu ponto de vista, em que reside a importância e a originalidade desse filósofo gaúcho?

Manfredo Araújo de Oliveira - Para Cirne-Lima, a Filosofia está profundamente ligada às questões fundamentais da vida humana e não é ela que cria as perguntas básicas do ser humano, embora essas o acompanhem em sua vida. E a filosofia é a tentativa sempre recomeçada de dar uma resposta racional a estas perguntas. Como se trata de questões que dizem respeito à vida humana em sua totalidade, a filosofia emerge como o saber, cuja especificidade é tematizar os princípios universalmente válidos que regem todo o universo, ou seja, tanto o pensar como o ser. Como ele diz em Dialética para principiantes (Porto Alegre: Edipucrs, 1996, p. 13): “Fazer filosofia hoje é como montar um grande quebra-cabeça. As ciências (...) são recortes parciais do grande quebra-cabeça que é a Filosofia, a Ciência Universalíssima. Cada uma das ciências particulares monta o seu pedaço particular, ou seja, cada uma delas trata de algumas figuras. Nenhuma delas se preocupa e se encarrega da composição total do grande mosaico que é a Filosofia, a razão, o sentido do universo (...) Fazer Filosofia significa jogar o jogo até o fim, isto é, montar as peças, de sorte que se possa ver a imagem global”.

 

Daí porque um postulado básico perpassa todo o esforço especulativo de Cirne-Lima: Filosofia tem a ver com o Universo, com a Totalidade do real. Numa palavra, tem a ver com o que constitui a realidade enquanto tal, que é uma Totalidade de configurações de relações em movimento. Por isto, ela é “o sistema que pretende abarcar cientificamente todo o Universo”, como ele afirma em seu último livro. Seu domínio de objetos é a totalidade dos seres. Nada há, portanto, que esteja fora do domínio de objetos de uma Filosofia entendida enquanto teoria do Universo. É isto que desde a Antigüidade se entendeu como Filosofia. De um modo geral, se pode afirmar que a negação do caráter abrangente da Filosofia é uma característica fundamental das tendências filosóficas não-analíticas no pensamento contemporâneo. A filosofia analítica, por sua vez, é fundamentalmente sempre sistemática, no sentido de que trata as questões não de modo histórico, mas em si mesmas. De modo geral, pode-se afirmar que também aqui a tendência hegemônica é a de rejeição de uma teoria abrangente da totalidade do real, sobretudo em virtude da aceitação implícita ou explícita do abismo entre teoria e realidade. Neste contexto, o empreendimento de Cirne-Lima é algo de imponente e notável.

 

 

IHU On-Line – De que modo o meio acadêmico hegeliano vê as empreitadas de Cirne-Lima, como a correção do sistema de Hegel e a formação da Ciência da Lógica?

Manfredo Araújo de Oliveira - Não há propriamente, que eu saiba, tomadas de posição a respeito do empreendimento de Cirne-Lima da parte do meio acadêmico hegeliano. Os debates foram feitos no interior do grupo que pertence ao GT-Dialética e seus resultados foram publicados já em três volumes. As críticas nem sempre procedem de filósofos ligados ao pensamento de Hegel. É importante lembrar que o debate filosófico não é algo muito cultivado no Brasil. Dificilmente, de modo geral, os filósofos brasileiros conhecem os trabalhos de seus colegas e, conseqüentemente, o debate se torna impossível. No último volume destes debates que acaba de sair com o título Dialética e natureza (Caxias do Sul: Educs), o professor Paulo Margutti, de Belo Horizonte, publicou um longo artigo em que apresenta hipóteses extremamente interessantes para a compreensão desta situação do pensamento filosófico brasileiro.

 

IHU On-Line – Como você percebe a relação que Cirne-Lima faz entre o conceito de complexidade, teoria da Evolução, caos e sistemas, segundo suas próprias palavras “uma continuação do sistema hegeliano”?

Manfredo Araújo de Oliveira - Não é unânime a avaliação que se pode fazer desta tentativa de Cirne-Lima de vincular o sistema hegeliano às ciências atuais. Dois exemplos significativos podem ilustrar esta afirmação. Cirne-Lima é de opinião de que os cientistas de hoje reconstroem as teses básicas do neoplatonismo sem terem consciência plena disto. As teorias citadas são, para ele, um bom exemplo. No entanto, não é aceita sem mais esta sua tese fundamental. Assim, por exemplo, contra esta tese, o professor Margutti defende a posição, em artigo publicado no volume Dialética e auto-organização (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003), de que “a abordagem sistêmica enquanto tal não é compatível com a ideia de um universo auto-organizado no sentido de um sistema circularmente fechado em si mesmo, sem um ambiente exterior com o qual interagir”. Por outro lado, no horizonte em que pensa Cirne-Lima, no que diz respeito à teoria da evolução, V. Hösle, em seu livro Hegelssytem, é de opinião de que a ciência da natureza atual, em contraposição ao que existia no tempo de Hegel, atingiu também materialmente um nível que a põe em condições de reconstruir em suas estruturas fundamentais no próprio nível da ciência a concepção idealista-objetiva da unidade da natureza. Assim, pela primeira vez na história da humanidade, se começou a articular a concepção de uma evolução geral da natureza, desde a explosão inicial até o espírito, dos primeiros átomos de água à vida e à consciência. A filosofia da natureza de Hegel persegue exatamente isto, ou seja, o desenvolvimento da natureza enquanto um processo unitário a partir da indeterminidade do espaço à vida e ao espírito.

 

 

IHU On-Line – Como essa visão de que a vida é um sistema dinâmico em funcionamento pode oportunizar ao sujeito o exercício pleno de sua autonomia?

Manfredo Araújo de Oliveira – Evidentemente, depende muito de como se entende esta tese. Caso se tenha ela em mira a Teoria dos Sistemas, a controvérsia ressurge. Margutti, por exemplo, é de opinião de que a Teoria dos Sistemas só tem aplicação na esfera dos fenômenos físicos. Com dificuldades ela se aplicaria aos fenômenos biológicos e de nenhuma forma aos fenômenos humanos, individuais e culturais. Esta é uma das razões pelas quais ele considera sem sentido a tentativa de Cirne-Lima de traduzir as teses básicas da Dialética, hoje através da Teoria dos Sistemas. Uma outra interpretação desta teoria poderia levar a uma posição menos radical. Portanto, estamos aqui diante de uma questão aberta à espera do avanço no debate.

 

IHU On-Line – Tendo em vista a obra de Cirne-Lima como um todo, que aspecto deveria ser particularmente destacado quando pensamos em possíveis desdobramentos e aprofundamentos pelas próximas gerações?

Manfredo Araújo de Oliveira – Certamente, sua insistência no pensamento da totalidade e o enorme esforço para pensar a totalidade de tal forma que a contingência e a liberdade sejam elementos centrais.

Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel. Revista IHU On-Line, Nº 261

 

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