O discurso do medo que fragiliza o enfrentamento da violência. Entrevista especial com Larissa Urruth Pereira

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Por: João Vitor Santos | 26 Setembro 2018

Há uma máxima popular que diz que o medo é inimigo da razão. Mas, no que diz respeito à segurança pública e ao enfrentamento da violência, isso parece não ser compreendido. “O discurso do medo acaba se tornando articulador de políticas de segurança impensadas, que tendem a manter privilégios e interesses corporativos no lugar de encarar a situação da violência”, aponta Larissa Urruth Pereira, advogada especialista no tema. Para ela, esse discurso não só inebria o franco debate sobre o tema, como ainda endossa segregações. “Esse medo passa a validar a segregação social, tornando legítima uma margem de indiferenciação que permite a barbárie comum em nossos presídios, bem como a normalização da ação violenta da polícia, como exemplos do expoente punitivo irracional”, completa.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Larissa ainda acrescenta que a resposta que atualmente se produz contra a violência é o encarceramento. “No entanto, o que sentimos é um aumento da violência, em um momento caracterizado pela privatização da segurança e do controle, pautado por uma coletiva sensação de medo”, analisa.

É por isso que defende uma ampla reforma em todo o sistema de segurança pública, passando pelas polícias civil e militar, Judiciário, Ministério Público, defensorias e gestores do sistema penitenciário. “Essas instituições estão cristalizadas em um passado autoritário, não tendo sido consolidada a passagem democrática por dois essenciais motivos”, aponta. E acrescenta: “Atualmente os maiores entraves para a efetivação das necessárias reformas estão nos interesses corporativos que permeiam essas instituições. Além disso, tendências conservadoras e autoritárias têm ganhado força no âmbito social e nos planos de governo para essa área, dificultando a implementação de medidas que atentem à garantia de direitos e à efetiva melhoria dos serviços prestados”.

A advogada profere na quinta-feira, dia 27 de setembro, às 17h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU, Campus Unisinos São Leopoldo a conferência Possibilidades e limites das candidaturas de 2018 a respeito das políticas de segurança pública, analisando as propostas dos candidatos à presidência da República. “Em busca dessas respostas instantâneas, governos e candidatos culpam pelo aumento da violência a falta de rigor normativo da legislação penal”, adianta.

Larissa Urruth - Foto: Arquivo pessoal

Larissa Urruth Pereira é graduada em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis, especialista em Ciências Penais e mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, e doutoranda em Ciências Sociais pela mesma universidade. Advogada com atuação no Direito Público e Administrativo, atua como professora no Centro Universitário Cenecista de Osório - UniCNEC e integra o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal - GPESC.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais os desafios para se compreender o estado de violência em que vivemos? Até que ponto podemos afirmar que o Estado é parte ativa nessa geração de violência?

Larissa Urruth Pereira – De acordo com o Atlas da Violência, versão 2018, no ano de 2016 o Brasil registrou 62.517 homicídios, atingindo a marca de 65,5 homicídios de jovens a cada 100 mil. Esses números colocam o país entre os dez países com maior ocorrência de homicídios no mundo. A criminalidade violenta não é consequência atribuída a uma única causa, desvelando suas características na base sociocultural de cada sociedade.

No caso específico do Brasil, alguns pontos são relevantes para a análise desse contexto. A violência urbana brasileira toma corpo ao mesmo passo em que surgem os esquadrões da morte no Rio de Janeiro, ou seja, em meados de 1950. Até então, havia certa normalização de comportamentos na sociedade brasileira. Os delitos mais frequentes caracterizam-se por pequenos furtos e crimes passionais. Uma estrutura hierarquizada ditava os papéis sociais e uma demanda por igualdade de direitos não se mostrava expressiva. A partir da segunda metade do século XX, assaltos à mão armada tornam-se mais frequentes, ganhando repercussão midiática e criando solo fértil para a constituição de grupos parapoliciais. Misse (2008, p. 372) atribui o processo de aumento da violência à urbanização acelerada ocorrida no país que, diferentemente dos países europeus, deu-se em um período de apenas 30 anos. Aí estaria se formando o que o autor passa a chamar de “acumulação social da violência”.

É importante perceber que há uma prevalência da chamada violência estrutural e institucional no cenário latino-americano (OLMO, 1974). O que quer dizer que a falta de assistência estatal bem como a tortura e o extermínio conduzido pelos agentes de repressão se mostram como fatores preponderantes na nossa realidade. Para além da prisão, esse extermínio também tem se mostrado como resposta, ainda que revestida de um caráter “confrontista”, às ações violentas, ilegais ou indesejáveis praticadas pelos indivíduos.

Tal violência é direcionada a grupos sociais específicos, que historicamente se constituem em um cenário de exploração nunca superado. A evangelização dos povos indígenas, a exterminação de sua cultura e a imposição de um forçado padrão europeu marcam o início de uma história de sofrimento que se perpetua na América Latina. A situação da Bolívia em relação ao contrabando e ao descaminho – muitas vezes única fonte de renda da paupérrima população -, a exploração dos diamantes na Venezuela e a tortura praticada durante todas as ditaduras do continente são exemplos que, para muito além do sistema jurídico, por décadas expressam a violência exercida sobre essas populações.

Brasil

No caso brasileiro, vivenciamos uma democracia recente, pós longos períodos de governo autoritário e ditatorial, além de termos perpassado por um longo período escravocrata, no qual os padrões europeus adotados pelas elites se fixaram como norma de conduta para a população, desde os meados da colonização. Analisando a atuação policial como exemplo da gestão da criminalidade, podemos perceber uma instituição que, desde o Brasil Império, tem se mostrado como instrumento opressor, sistematicamente voltado a determinados grupos da sociedade – à época os indígenas, em seguida os negros, depois os chamados “gatunos” e “velhacos” que ameaçavam as propriedades da elite (BRETAS, 2006, p. 15). Em se falando de períodos autoritários, o que se observou foi a consolidação da polícia como aparelho de mantença de poder, servindo a uns poucos, com enfoque de atuação definido e voltado para os “inimigos do governo”, cultura essa que ainda não se esvaziou por completo.

Outro ponto a ser destacado consiste na implementação de mecanismos não punitivos que puderam ser visualizados nos países capitalistas centrais, no período do pós-guerra. Uma onda de iniciativas no sentido de inclusão e incorporação social dos indivíduos em um sistema de produção se instituiu como forma includente de controle social formal. No entanto, na América Latina tais fenômenos não foram vivenciados, uma vez que não se pode falar em existência de um Estado de Bem-Estar Social. Assim, temos as políticas criminais se formando como institutos para a manutenção da ordem social hierarquizada, em um cenário de aumento da violência que se verifica em meio a uma urbanização desordenada e à falta de prestação estatal.

Efeitos da pena privativa

O uso imoderado da pena privativa de liberdade agrava esse cenário. Nesse ponto, impende destacar que, de acordo com os dados levantados pelo Ministério da Justiça, em junho de 2016 a população carcerária brasileira alcançou o número absoluto de 726.712 presos. O Brasil apresenta a terceira maior população carcerária do mundo, estando atrás apenas dos Estados Unidos e da China. O sistema penitenciário brasileiro possui uma taxa de ocupação nacional de 197,4% das vagas, ou seja, existe um déficit de 358.663 vagas no sistema.

Muitas são as pesquisas que vêm demonstrando que o encarceramento em massa e a subumana condição das casas prisionais brasileiras têm agido como fator de fortalecimento de grupos criminosos, que, em uma espécie de simbiose com a atuação das instituições de segurança, realizam uma cogestão dos espaços prisionais, estendendo, a partir desse fortalecimento, seus domínios territoriais nas cidades. As disputas entre esses grupos elevam o número de homicídios fora da prisão, sustentando um ciclo desvirtuoso, no qual o encarceramento fortalece a criminalidade e ao mesmo tempo é a resposta estatal imoderadamente utilizada que acaba por fortalecer os grupos responsáveis pela violência que se pretende combater (AZEVEDO; CIPRIANI, 2015).

Dessa forma, tanto pela ausência de políticas que possibilitem a diminuição da desigualdade e da hierarquização social, como pelo emprego de práticas violentas e criminógenas, o Estado é parte fundamental no combate à violência. Diante disso, é necessária e urgente a implementação de políticas de segurança pública que retirem a centralidade do encarceramento como medida de contenção, por meio, por exemplo, da adoção de medidas alternativas à prisão, especialmente para os delitos praticados sem o emprego de violência. Além disso, a reforma das instituições de segurança pública visando a regionalização do policiamento, o ciclo completo de ação policial, a integração institucional e a adoção de políticas de prevenção focadas nas áreas mais violentas são medidas aptas a impactar esse cenário caótico.

IHU On-Line – Quais os limites das políticas públicas de segurança de nosso tempo?

Larissa Urruth Pereira – As políticas públicas de segurança são executadas, majoritariamente, pelas polícias civis e militares, pelo Judiciário, pelo Ministério Público, pelas defensorias e pelos órgãos integrantes do sistema penitenciário. Toda e qualquer estratégia democraticamente pensada deve perpassar pela mudança nas práticas de tais instituições.

Essas instituições estão cristalizadas em um passado autoritário, não tendo sido consolidada a passagem democrática por dois essenciais motivos: I) Pela ausência de um quadro normativo pós-88, capaz de reformular o seu papel e a sua estrutura; e II) pelo seu uso político-governamental constituído na sua utilização para a defesa de interesses do Estado, muitas vezes em detrimento da garantia dos direitos das cidadãs e dos cidadãos. A alteração desse cenário tem sido de difícil implementação, esbarrando em interesses corporativos e em uma ascensão conservadora dos discursos políticos.

Vivenciamos o chamado período do grande encarceramento. Cada vez mais uma demanda punitiva se faz presente como resposta aos conflitos sociais, no entanto o que sentimos é um aumento da violência, em um momento caracterizado pela privatização da segurança e do controle, pautado por uma coletiva sensação de medo. Esse medo passa a validar a segregação social, tornando legítima uma margem de indiferenciação que permite a barbárie comum em nossos presídios, bem como a normalização da ação violenta da polícia, como exemplos do expoente punitivo irracional.

O “cidadão de bem” não quer por perto o bandido – ou pelos menos aquele que a sociedade assim considera, mesmo que não tenha cometido a conduta típica, mas que, por sua subjetividade integre um grupo social “de risco”, mais propenso a cometer delitos. Considerando a formação hierárquica da população brasileira e a acumulação social da violência distribuída a grupos historicamente constituídos, a gestão dessa população colocada à margem do corpo social elitista se dá por meio da aplicação penal excludente.

Justiça desigual

Em razão dessa hierarquia velada é que o sistema de Justiça criminal se aplica de forma desigual. Ele preserva privilégios e reproduz segregação, revalidando a ordem social hierárquica, conservando, assim, sua manutenção. Embora declaremo-nos explicitamente como uma sociedade igualitária e individualista, anseios holistas de supressão de direitos individuais em nome de uma coletividade (dada nos grupos sociais dominantes) se faz presente no discurso comum. Diante desse discurso generalizado de que determinados grupos sociais são a fonte inesgotável de riscos que devem ser contidos pelo Estado a resposta de fácil adesão social consiste na atuação violenta das instituições de segurança, culminando no aumento do encarceramento e dos confrontos entre a polícia e a população periférica.

Em busca dessas respostas instantâneas, governos e candidatos culpam pelo aumento da violência a falta de rigor normativo da legislação penal, apresentando como opção as posturas fadadas ao fracasso que culminam na superlotação de nossos presídios, dominados pelas facções criminais, deixando de investir na qualificação e no controle das instituições de segurança pública. As políticas punitivas que têm o encarceramento e a repressão violenta como cerne não vêm alcançando resultados satisfatórios, pelo contrário, hoje o Brasil conta com a Polícia que mais morre e que mais mata no mundo, além de ocupar a terceira posição mundial no número de pessoas encarceradas. Ainda assim, está entre os países que registram o maior número de homicídios.

A alteração desse cenário, como já dito, depende, principalmente, da reforma das instituições de segurança pública. Atualmente os maiores entraves para a efetivação das necessárias reformas estão nos interesses corporativos que permeiam essas instituições. Além disso, tendências conservadoras e autoritárias têm ganhado força no âmbito social e nos planos de governo para essa área, dificultando a implementação de medidas que atentem à garantia de direitos e à efetiva melhoria dos serviços prestados.

IHU On-Line – De que forma o discurso do medo, muito vezes insuflado pelas narrativas midiáticas, pode levar a uma abordagem equivocada acerca das políticas públicas de segurança? E como evitar esses equívocos e superar a narrativa do medo?

Larissa Urruth Pereira – Como visto, o discurso do medo acaba se tornando articulador de políticas de segurança impensadas, que tendem a manter privilégios e interesses corporativos no lugar de encarar a situação da violência. Sem dúvida, superar essas narrativas em busca de um projeto de reformas e de controle da atuação das instituições é um dos principais desafios de nosso tempo.

O fortalecimento da frágil e jovem democracia brasileira nos parece o caminho para a superação dos discursos e das práticas autoritárias. Para isso, em matéria de segurança pública, é necessário admitir que os dados de violência são reais e que, em que pese, sejam insuflados por narrativas sensacionalistas, fazem parte do cotidiano das populações, sobremaneira daqueles que vivem nas periferias do país.

Centrar o discurso somente na repulsa aos impulsos punitivos e autoritários, deixando de lado a realidade de que a violência é um problema endêmico e que vem aumentando significativamente, afasta aqueles atingidos por essa violência, impossibilitando o maior alcance do debate para além do medo. Os discursos autoritários ganham força pelas narrativas de negação da política, havendo necessidade de substituição desse espaço, normalmente por opções totalitárias, por exemplo, pela intervenção militar, como temos presenciado em recentes manifestações.

Diante disso, a reafirmação do político e das possibilidades democráticas de superação da violência são fundamentais para a saída desse paradoxo. Medidas outrora adotadas já foram capazes de impactar positivamente os índices de violência. Ao analisarmos a implementação do Programa Nacional de Segurança com Cidadania - Pronasci em 2007, aliado às políticas de controle de armas, podemos observar a estabilização das taxas de homicídios no país e a redução destes nos Estados de Pernambuco e do Rio de Janeiro, até o ano de 2010. Isso indica que o investimento em inteligência policial, a avaliação de indicadores de segurança pública e as políticas com foco específico nas demandas de maior gravidade podem reduzir o número de mortes e, por consequência, reduzir a sensação de insegurança.

IHU On-Line – O que está por trás da lógica da “guerra ao tráfico”, ainda muito presente nos debates acerca da segurança pública?

Larissa Urruth Pereira – A Lei 11.343/2006Lei de Drogas – foi um advento punitivo que despenalizou as condutas de uso, enrijecendo as penas em relação ao tráfico de entorpecentes. Exemplo disso foi o aumento da pena mínima prevista no art. 33 da referida lei e a equiparação aos crimes hediondos trazida pela Lei 8.072/90. Nesse sentido, o Brasil procurou, por meio da punição, diminuir o problema das drogas.

A tendência proibicionista adotada pelo Brasil teve forte influência norte-americana, notadamente voltada ao encarceramento da população negra, após a abolição da escravidão naquele país. O combate ao narcotráfico levou os Estados Unidos a ocupar o primeiro lugar no ranking mundial do encarceramento, situação insustentável que já vem sendo revista com a descriminalização de algumas drogas em alguns estados, bem como pela revisão das soluções de encarceramento.

Na realidade brasileira, dentro dessa direção punitiva trazida pelo mencionado regramento temos a presença do usuário como dependente e do traficante como delinquente. Ocorre que a diferenciação dessas condutas se dá por meio de critérios legais subjetivos aplicados pelas instituições policiais e judiciárias, na maioria das vezes amparadas por estereótipos, culminando na classificação pela traficância para aqueles que compreendem uma maior incidência de marcadores sociais da diferença (negros, pobres, moradores de periferia).

Ocorre que o tráfico de drogas, além de mobilizar mercados ilícitos, o que por sua vez desbanca em disputas violentas entre traficantes e entre traficantes e policiais, tem se mostrado como alternativa nas comunidades, principalmente para as mulheres, a fim de prover-lhes sustento. Dessa forma, como bem sustenta [Loïc] Wacquant, o que se tenta fazer é um desenvolvimento do Estado Penal, para suprir as lacunas deixadas pelo Estado Social. Tenta-se responder aos delitos suscitados pela “desregulamentação da economia, pela dessocialização do trabalho assalariado e pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes do proletariado urbano” (WACQUANT, 199, p. 6) com uma política de encarceramento, tirando do convívio social aquilo que a sociedade não quer ver, (r)estabelecendo uma ditadura sobre os pobres.

Assim, a ausência de políticas sociais e o impulsionamento de uma política de guerra instaurada contra o tráfico mascaram a situação da falta de empregos e de serviços públicos às populações periféricas, alavancado o encarceramento em massa dessas populações. Além disso, a centralidade penal da política de drogas rechaça as possibilidades de atenção da questão pelas instituições de saúde, notadamente aptas a acolher as situações ligadas ao abuso de tais substâncias. Dessa forma, boa parte do efetivo das forças de segurança está voltada à proibição seletiva desse comércio (em torno de 29% da população encarcerada no Brasil responde por crime de tráfico de entorpecentes), incrementando o superencarceramento que fortalece os grupos criminosos, hoje gestores da mercancia de entorpecentes.

IHU On-Line – Como conceber uma política de segurança pública que de fato enfrente o complexo problema da violência, indo além de casos pontuais e atingindo as questões de fundo?

Larissa Urruth Pereira – Como amplamente discutido acima, para que as instituições de segurança deixem de “enxugar gelo” (expressão recorrente na fala de policiais) é necessária uma reforma institucional, alinhada às pretensões democráticas previstas no texto constitucional de 1988. As instituições de segurança pública, além de deverem resguardar o monopólio legítimo do uso da força, devem ser garantidoras dos direitos das cidadãs e dos cidadãos.

Para isso, não devem agir em prol de interesses corporativos ou estarem à mercê de intervenções político-partidárias. Além disso, o controle e a avaliação de resultados são fundamentais para a implementação de políticas efetivas. Atualmente, cada instituição controla suas informações de forma regionalizada e – no mais das vezes – sigilosa. Os dados sobre as apreensões, as investigações policiais e o índice de solução dos inquéritos, por exemplo, não são públicos e tampouco medidos por meio de uma metodologia unificada que permita a avaliação de cada política posta em execução.

Os órgãos fiscalizadores, via de regra, ocupam papéis internos, tendo baixo índice de elucidação das denúncias. Esse cenário desponta na ausência de confiança da população. Baixo efetivo, demora decorrente da burocracia dos procedimentos, ações truculentas e a sensação de impunidade que paira no senso comum, são motivos apontados por pesquisa que divulga que 70% dos participantes não consideram a polícia uma instituição confiável. A polícia seria a terceira instituição menos confiável do Brasil (ALCADIPIANI, 2013).

Essa descrença trata-se de um dado extremamente preocupante. A polícia está legitimada justamente quando a sociedade vê nela a instituição legítima para conter os atos criminosos e zelar pela segurança pública. Muito embora exista uma legitimidade concedida pela lei, a polícia só irá gozá-la quando a população aceitar o seu mandato. Em um momento em que a comunidade não confia na sua polícia, esta resta fragilizada, torna-se mais violenta, uma vez que não se faz respeitar, já que está desacreditada.

Reforma e autonomia das instituições

Essa perspectiva se aplica às demais instituições. Sem a necessária legitimação sua atuação é fragilizada, sendo palco de desmandos e de descrédito que possibilita, como vimos, a ascensão de discursos autoritários. Diante disso, a reforma e autonomia das instituições representa um fortalecimento democrático capaz de viabilizar projetos efetivos de diminuição da violência. A implementação de políticas sociais voltadas à redução da desigualdade também é fator que impacta diretamente a redução da criminalidade.

Há que se afastar a cortina de fumaça da dominação, que vem ocultando um profundo e histórico gap que, por conta da desigualdade entre ricos e pobres, vem aumentando as dificuldades das novas democracias, tais como a nossa. Nesse sentido, ainda é importante que se perfectibilize uma discussão pública que aumente a confiabilidade da população nas instituições do Estado, para que a arena política não seja um reduto resguardado a poucos indivíduos e alheio à população que vive uma verdadeira indiferenciação em relação à tomada de decisões.

IHU On-Line – Qual deve ser o papel da força policial numa estratégia de política de segurança pública e como, de fato, se dá na prática a atuação da polícia hoje? Como conceber uma outra polícia?

Larissa Urruth Pereira – As polícias, em geral, possuem duas primordiais funções: I) função administrativa, que inclui a vigilância para prevenir a criminalidade e II) função judiciária, que inclui o auxílio investigativo ao Judiciário. A função administrativa, em um cenário democrático, está ligada a uma polícia de proximidade, ou seja, um efetivo policial voltado a conter atos violentos com o fim de proteger a população. A função judiciária, por sua vez, envolve a elucidação dos crimes. As investigações, além da punição do infrator, têm como objetivo evitar persecuções penais injustas, garantindo a isenção na apuração e – por consequência – na condenação.

O uso da violência, quanto mais da letal, em um modelo ideal de sociedade, são monopólio exclusivo das forças policiais, que devem se valer dele como medida de exceção e somente na proporção necessária a conter injustos e proteger a vida e a integridade das pessoas.

Hoje, o Brasil conta com duas instituições policiais, a Brigada Militar – que realiza o policiamento ostensivo – e a Polícia Civil – constitucionalmente definida como polícia judiciária. Como é sabido, a polícia judiciária é responsável pelas investigações no sentido de criar, por meio de um procedimento denominado inquérito policial, um juízo de probabilidade sobre a autoria e a materialidade de possíveis delitos informados na notitia criminis (boletim de ocorrência), com a função precípua de subsidiar a elaboração da denúncia pelo autor da ação penal.

Violência como regra

Ao contrário do que se espera, a violência não é a exceção na atuação das polícias brasileiras. Os dados (ainda que difusos e não tão precisos) sobre a letalidade da polícia brasileira são assustadores. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública – Versão 2013, ao menos cinco pessoas morrem vítimas da intervenção policial no Brasil todos os dias, ou seja, aproximadamente 1.890 vidas foram tiradas pela ação das polícias civis e militares em situações de “confronto”, no ano de 2013. Outro dado chocante é o de que, no período de dez anos, sete mil suspeitos foram mortos pela polícia do Rio de Janeiro. Quando comparados com números de outros países o Brasil apresenta índices consideravelmente altos de letalidade e vitimização policial, nos EUA, por exemplo, o número total de civis mortos no ano de 2012 foi de 410, embora sua população seja expressivamente maior que a brasileira. Em relação às investigações, o nível de elucidação dos inquéritos policiais é expressivamente baixo (estando em torno de 5% a taxa de homicídios julgados).

Violenta, corrupta, ineficiente, desacreditada e desrespeitada pela população: esse é o retrato da polícia brasileira. A crise da Segurança Pública é de amplo conhecimento, assim como muitos focos de reformas já foram identificados ao longo da degradação deste cenário. No entanto, o que se percebe é que nenhuma reforma foi de fato efetiva, atacando os tantos problemas que a instituição carrega, desde a sua criação. Para que se possa entender o porquê dessa estagnação do modelo policial, há que se ter em mente alguns fatores.

Polícia e política

A polícia trata-se de uma instituição de cunho político, ou pelo menos sensível às diversas pressões políticas. Assim, reformas ocasionais – como a maior parte das que foram tentadas – tendem a não ter valor para os policiais e para a população, uma vez que se espera que com o próximo governo as antigas práticas se reestabeleçam, já que há uma tendência à descontinuidade. O que acaba ocorrendo, na prática, são sutis ganhos incrementais que não possuem a força necessária para modificar a cultura organizacional.

No entanto, para que as mudanças sejam efetivas, e venham a afetar a cultura policial, elas precisam instaurar-se de forma radical e com verdadeiro apoio popular. A nova fundação da polícia é um encargo de toda a sociedade brasileira, que só será capaz de se efetivar quando o “mito” da ação policial restar claro para os cidadãos. A população precisa conhecer a polícia, os limites da sua ação para poder discutir e reivindicar por mudanças, que só serão realizadas se forem do interesse (eleitoral) dos candidatos.

Ou seja, só quando as massas compreenderem que a polícia tem servido a uns poucos e perseguido a muitos é que se poderá pensar em uma real melhoria. Enquanto o desinteresse pelas ilegalidades e pelo estudo das ações policiais for predominante, pouco se avançará.

IHU On-Line – Como tem observado o debate acerca dos temas da segurança pública entre os candidatos à presidência da República? Que propostas e que disputas têm sido postas em jogo?

Larissa Urruth Pereira – Em que pese os planos de governo apresentem diversas propostas em linhas distintas, dois debates têm sido majoritariamente acionados pelos candidatos: a revogação do estatuto do desarmamento e o recrudescimento das políticas penais. Como dito acima, o agravamento da violência e a falta de confiança nas instituições de segurança abrem margem para a proliferação de discursos autoritários e perigosos, tais quais as duas propostas aventadas.

Essas propostas apenas reiteram as políticas que têm levado o país à atual situação: esgotamento do sistema prisional, aumento dos homicídios cometidos pelo emprego de armas de fogo, aumento da letalidade policial e da seletividade penal. De outro lado, os candidatos que articulam alternativas ao modelo posto em prática caminham entre proposições utópicas, vagas e aquelas que aparentam enfrentar as questões centrais.

Bolsonaro e o discurso do medo

O plano de Jair Bolsonaro, sem dúvida, é aquele que mais articula os discursos de medo com posturas autoritárias, sem apresentar medidas que enfrentem a questão carcerária, ou o crime organizado, por exemplo. Está repleto de palavras de ordem, imiscuídas em soluções que já existem ou que historicamente ampliaram a violência. Faz ferrenhas críticas ao Foro de São Paulo e a uma “esquerda ideológica”, usando dados dos quais não apresenta a fonte, ou que foram veiculados em um documentário produzido pela Rede Globo.

Esse tipo de aclamação tende a utilizar como mercadoria política uma solução de fácil adesão (recrudescimento penal, aumento da repressão violenta), no entanto, de consequências assombrosas quando colocada em prática. A respeito da revogação do estatuto do desarmamento, o discurso articulado opera sobre a perspectiva de que o “cidadão de bem” deve ter a possibilidade de se defender do “bandido”. A dicotomia instaurada entre esses dois sujeitos por si só já revela a problemática da política defendida.

A culpa é só do outro

Como dito, no caso brasileiro, há que se considerar que existe um plano macro de acumulação social da violência que paira sobre grupos “sociais constituídos e representados por sujeitos criminais produzidos em contextos sócio-históricos determinados” (MISSE, 2010). Essa construção do sujeito bandido é aquilo que Misse denomina como sujeição criminal, ou seja, o processo social pelo qual se espera que certos indivíduos e tipos sociais sejam mais propensos a cometer crimes, uma vez que se acredita que a sociedade está dividida entre “pessoas de bem” e “pessoas do mal”, em um grau de generalização no qual a relação eu-outro se estabiliza como um sistema de crenças, de modo a reforçar a ideia mitológica de que o eu não faz parte do mundo do outro e, portanto, o culpado só pode ser ou é o outro.

Assim, partimos do ponto que o crime é uma construção social e que a figura do bandido se constitui por meio de estigmas e estereótipos normalmente atribuídos a grupos sociais específicos. Esses estigmas e estereótipos se distribuem de forma desigual na sociedade, sendo atribuídos tanto pelo controle social informal, como pelo formal, desde cedo, gerando identidades virtuais que fazem com que o sistema penal exerça uma ação seletiva que “busca” alcançar esses indivíduos estigmatizados.

Estamos falando desse distanciamento social que cria o “bandido ideal” no outro, que deve ser perseguido pela polícia. Um outro estranho, difuso, incerto – mas acima de tudo oposto a mim e que carece de uma concretização. Concretude que se constitui sobre essa base desigual, calcada, principalmente, no racismo e na vulnerabilidade econômica. Diante disso, a proposta pretende que o “cidadão de bem”, representado por aqueles possuírem condições econômicas e sociais de adquirir o armamento, possam se proteger dessa ameaça difusa, formada no imaginário social como o morador de periferia, pobre, jovem e negro.

Mais armas, mais homicídios

Além disso, a maior circulação de armamentos na sociedade aumenta o número potencial de homicídios, gerando mais insegurança do que proteção, além de delegar à população deveres que são próprios do Estado, notadamente, o dever de assegurar a integridade e a segurança dos cidadãos. A despeito do recrudescimento penal, o aumento nas políticas de encarceramento tem agravado a situação da violência no país, consolidando o poder de grupos criminosos, não sendo, portanto, medidas de segurança capazes de conter ou diminuir a violência.

Outras propostas

De outro lado, os planos que apresentam propostas concretas e com maior detalhamento para sua implementação são os de Marina Silva e de Ciro Gomes. Marina propõe a criação de uma Política Nacional de Medidas e Penas Alternativas, visando também a implementação de programas para a reinserção social de egressos do sistema prisional. Em uma postura mais realista reconhece a existência e as consequências do crime organizado.

Ciro Gomes, por sua vez, propõe a criação de um sistema nacional de inteligência criminal, a valorização dos profissionais de segurança e a criação da Escola Nacional de Segurança Pública. Ambos enfrentam a questão do encarceramento e da especialização das instituições de segurança pública, medidas necessárias ao enfrentamento da criminalidade violenta.

Excetuado o plano de Guilherme Boulos, os candidatos não enfrentam temas fundamentais, como o enfrentamento da violência contra a mulher e o extermínio da população jovem e negra.

IHU On-Line – Como observa a forma com que o tema do sistema carcerário tem aparecido entre os candidatos à presidência?

Larissa Urruth Pereira – O caos carcerário tem sido um relevante fator criminógeno na realidade brasileira. As propostas dos presidenciáveis se dividem entre aqueles que apostam em um alargamento da utilização da prisão como mecanismo de contenção da criminalidade (Jair Bolsonaro, Amoêdo e Cabo Daciolo) e aqueles que articulam a possibilidade de inserção de medidas alternativas à prisão, reservando esta aos crimes de maior gravidade (Boulos, Ciro Gomes, Marina Silva e Haddad). Meirelles e Geraldo Alckmin não apresentam propostas concretas para este ponto.

A aposta no aumento do encarceramento se trata de política inviável, tanto pelo deflagrado déficit de vagas, como pelo reconhecido fator criminógeno consequente do aprisionamento. Diante disso, a implementação de medidas alternativas à prisão e a descriminalização de condutas precisam, urgentemente, fazer parte dos planos de ação dos governos. Os delitos cometidos sem o emprego de violência (furtos, tráfico de entorpecentes, danos ao patrimônio) não possuem ofensividade social suficiente a justificar a adoção de sanções restritivas de liberdade, podendo receber tratamento diverso, a exemplo das penas restritivas de direito ou das medidas compensatórias.

No que diz respeito à política de drogas, repensar a postura proibicionista é fundamental. A regulação do consumo e do comércio dessas substâncias, a exemplo da recente política adotada pelo Uruguai, pode ser um caminho apto a diminuir a população carcerária, bem como a violência oriunda das disputas por territórios comum à prática dos grupos criminosos que comandam o tráfico de varejo.

IHU On-Line – Analistas e políticos apontam que a superação da crise no Brasil passa pela necessidade de conceber um projeto de nação. Nessa mesma linha, é possível conceber um projeto de nação no que diz respeito à política de segurança pública?

Larissa Urruth Pereira – A ideia de um “projeto de nação” de conteúdo aberto, na amplitude do termo, pode tender a nacionalismos antidemocráticos que possam sopesar a pluralidade e a diversidade tão caras e necessárias à consolidação da democracia. Nesse sentido, um projeto de nação no que diz respeito à política nacional de segurança pública deverá estar atento à necessidade de políticas regionalizadas.

Um projeto nacional de segurança pública é fundamental a fim de propiciar a integração da informação, das metodologias de controle e de avaliação das políticas implementadas e uma melhor distribuição dos recursos públicos. Um sistema unificado de segurança pública pode transformar órgãos avulsos e concorrentes em partes de um todo cooperativo e governável, visando garantir um pacto nacional de segurança. Mas isso não pode implicar na desordenada mobilização de indivíduos armados sem a necessária integração das instituições.

As polícias, por sua natureza de proximidade, devem atuar de forma local, comunitária e cidadã, partilhando, por sua vez, informações e dados com as demais polícias locais distribuídas pelo território. Nichos de corporativismo devem ser desarticulados, o que não implica em uma política desatenta às peculiaridades de cada localidade, capaz de efetivar políticas distintas para cada realidade de atuação.

Assim, um projeto nacional de segurança pública não só é possível, como é necessário. No entanto, a sua construção deve ter em mente a integração das instituições de segurança pública, sendo este um dos maiores desafios a ser enfrentado nesta área.

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O discurso do medo que fragiliza o enfrentamento da violência. Entrevista especial com Larissa Urruth Pereira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU