O movimento sindical e os partidos. Longe das frustrações diárias, desafiados pelo 'enxameamento'. Entrevista especial com Rudá Ricci

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29 Mai 2014

“A esquerda brasileira cometeu os mesmos erros que a europeia. Só espero que a tragédia das eleições para o parlamento europeu — em que vários partidos de extrema direita saíram vitoriosos das urnas — não se repita por aqui”, afirma o sociólogo. 

Do mesmo modo que as manifestações de junho impactaram os partidos políticos, as greves recorrentes, muitas das quais ocorrem sem acordos e negociações com os sindicatos, “criaram um grande alerta nas cúpulas sindicais do país”. Trata-se de “dois fenômenos de quebra de legitimidade das representações formais. Mas que não apontam alternativas”, avalia Rudá Ricci, em entrevista concedida à IHU On-Line, por e-mail. Para ele, não é possível prever qual será o impacto sindical e político das greves que têm ocorrido em muitos estados brasileiros, mas “a tendência será a luta pela recuperação da liderança perdida. E isto significará radicalização do discurso sindical, como medida de antecipação às oposições”, assinala.

Por enquanto, menciona, só é possível afirmar que um conjunto de fatores — entre eles, o fato de várias das organizações que nasceram com a reabertura democrática, nos anos 1980, terem esquecido “da sua origem anti-institucionalista” — dá sinais do que está acontecendo no atual cenário brasileiro. “Os sindicatos ingressaram nas arenas de tomada de decisão de políticas de governo e indicam, hoje, quem assumirá as secretarias do trabalho nos Estados. Abriu um hiato de representação, o que é grave num país onde a desigualdade ainda é a marca no cotidiano da maioria da população. O que significa dizer que as frustrações diárias não têm mais por onde se expressar. Os canais de escuta que forjavam pautas de demandas sociais, que facilitavam a vida dos governantes comprometidos com a superação das dificuldades das populações mais carentes foram interditados”, pontua.

Para Ricci, o resultado dessa situação é a “frustração diária”, que explodiu nas manifestações, e “é isto que estamos vendo desde junho de 2013 e que, agora, também envolve rupturas das bases sindicais com suas diretorias e movimentos sociais que demandam reforma urbana”. Na avaliação dele, as greves sinalizam um “retorno à desconfiança em relação ao plano institucional, como havia nos anos 1980”. Entretanto, explica, “naquele período, a desconfiança partia da arrogância e violência do regime militar. Agora, volta-se contra a arrogância, inoperância, tutela e ausência de diálogo dos governantes, sindicatos e partidos”.

Junto a isso, destaca, “a aristocratização de muitos dirigentes sindicais, que adotam uma carreira política cujo início é o sindicato, impacta fortemente a base sindical, aumentando o ressentimento. Esta fissura abre a temporada de disputa entre correntes sindicais”. 

Rudá Ricci (foto abaixo) é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara e colunista político da Band News. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto) e coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp), entre outros.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O senhor aponta o surgimento de uma outra política, que nasceu das ruas a partir das manifestações de junho. Em que consiste essa nova política e em que aspectos ela se diferencia do que vinha sendo feito até então?

Rudá Ricci - Ela leva a marca de uma nova geração de protagonistas, entre 20 e 30 anos de idade, que já manifestaram suas peculiaridades em muitas outras manifestações ao redor do mundo, como os confrontos ocorridos em Seattle, quando do encontro da Organização Mundial do Comércio, em 1999. A ela se seguiram outras, como as de Bolonha, Gênova, Praga e muitos confrontos em Londres. Mas em Seattle já havia uma articulação de forças e organizações (locais, nacionais e internacionais) que se repetirá várias vezes, incluindo ONGs ambientalistas e voltadas para o direito do consumidor e questões trabalhistas, sindicatos, grupos de estudantes, organizações religiosas (Jubileu 2000) e anarquistas. O que há de novo neste conjunto de manifestações que incluem as de junho de 2013 no Brasil?

Uma geração que desenvolveu valores entre seus "pares de idade", que se forjaram à sombra da diminuição gradativa do tempo de convívio familiar. Com a desmontagem da socialização primária que a partir do século XVII, segundo Ariès, passa a ser de responsabilidade das famílias, as tribos urbanas se constituíram em redes de proteção social de jovens, com fortíssimo caráter comunitário. As comunidades, vale destacar, não são afetas ao mundo público, já que desenvolvem identidade grupal, fechada e, não raro, se contrapõem ou ignoram outros grupos comunitários. As redes sociais reforçaram a lógica comunitária juvenil. 

A cultura que emerge daí é, portanto, grupal, afetiva, agressiva em relação à diferença, refratária às instituições e valores do mundo adulto, apoiada numa lógica de relação direta e horizontal, que nega hierarquias e vanguardas. O que vimos em junho de 2013 foi a somatória de muitos agrupamentos com suas inúmeras prioridades e demandas. Sem lideranças coletivas, sem vanguardas, anti-institucionalistas, autonomistas. Evidentemente, se confrontam com todas organizações de representação social e política que se consolidaram no século XX.

“O problema do lulismo é que ele avança em termos sociais e até econômicos, mas retrocede na dimensão política”

IHU On-Line - Quais são os discursos presentes nas manifestações?

Rudá Ricci - Inúmeros, marcados pela polifonia. Cheguei a pontuar que teriam como mote a "utopia no presente", absolutamente provisórias, de momento, realizando o que poderia ser a alternativa no momento da manifestação. Algo que existe até hoje no Occupy ou M15.

Foi um carnaval político (ou, uma transgressão dentro da ordem). Por este motivo que os partidos ficaram atônitos (não sabiam a quem se dirigir) e a grande imprensa procurou desesperadamente adiantar qual era a demanda mais importante. Utilizar o olhar do século XX, hierarquizado e organizado racionalmente, numa manifestação juvenil deste tipo é usar óculos escuros para enxergar na escuridão. Temos que alterar o paradigma das ações sociais para entender o que há de novo. Alguns autores espanhóis, que foram seguidos por norte-americanos, estão, inclusive, sugerindo desta nova prática o que denominam de "enxameamento": uma ação que lembra os enxames de abelhas, que surgem do nada e somem sem aviso prévio.

IHU On-Line - O que essas manifestações e, de modo geral as greves que estão ocorrendo, demonstram sobre a esquerda ou o que viria a ser um projeto de esquerda no Brasil?

Rudá Ricci – Que, nos últimos dez anos, várias das organizações que nasceram nos anos 1980, durante o processo de redemocratização do país, esqueceram a sua origem, muitas vezes anti-institucionalista e “basista”, valorizando mecanismos de democracia direta e utilizando a violência no confronto com a PM (como o uso de bolinhas de gude para derrubar os cavalos utilizados pelas polícias estaduais ou, ainda, utilizando mitsubishi para furar pneu de ônibus durante os piquetes). As ONGs, sindicatos e muitas pastorais sociais se voltaram para o Estado e se afastaram das ruas. Muitas dessas entidades assumiram serviços sociais terceirizados pelo Estado. É o caso da Pastoral do Menor, que assumiu a administração da FEBEM (hoje, Fundação Casa) em São Paulo. Ou tantas ONGs que assinaram convênios com governos para assumir atendimento a famílias em risco. Os sindicatos ingressaram nas arenas de tomada de decisão de políticas de governo e indicam, hoje, quem assumirá as secretarias do trabalho nos Estados. Abriu um hiato de representação, o que é grave num país onde a desigualdade ainda é a marca no cotidiano da maioria da população. O que significa dizer que as frustrações diárias não têm mais por onde se expressar. Os canais de escuta que forjavam pautas de demandas sociais, que facilitavam a vida dos governantes comprometidos com a superação das dificuldades das populações mais carentes foram interditados.

“Temo que um governo de origem de esquerda acabe ensinando como a direita brasileira deve governar na democracia”

Qual a resultante desta situação? A frustração diária, em algum momento, explode como um mosaico, sem lideranças, marcada pelo ressentimento em relação a quem deveria representá-los ou ouvi-los. É isto que estamos vendo desde junho de 2013 e que, agora, também envolve rupturas das bases sindicais com suas diretorias e movimentos sociais que demandam reforma urbana. Em suma: a esquerda brasileira cometeu os mesmos erros que a europeia. Só espero que a tragédia das eleições para o parlamento europeu — em que vários partidos de extrema direita saíram vitoriosos das urnas — não se repita por aqui.

IHU On-Line - Quais as implicações dessa outra política nos movimentos sociais?

Rudá Ricci - O retorno à desconfiança em relação ao plano institucional, como havia nos anos 1980. Naquele período, a desconfiança partia da arrogância e violência do regime militar.

Agora, volta-se contra a arrogância, inoperância, tutela e ausência de diálogo dos governantes, sindicatos e partidos. Presenciamos a pior geração de gestores públicos da nossa república. São governantes que não valorizam a prática política, da escuta, da habilidade e da negociação. Não nos lideram e não nos empolgam. Estamos às vésperas da Copa da FIFA e não há sinal de verde e amarelo nas ruas, o que é uma novidade na nossa história. Mas, aí, olhamos para os governantes e vemos que eles também não estão empolgados. O discurso deles é tecnocrático, se assustam com o imponderável, não criam fatos políticos, são omissos. Enfim, o discurso do Estado Mínimo e adoção de práticas empresariais para gestão do Estado chegou forte pelas mãos desses governantes sem alma, que não se forjaram na luta social. Esta tragédia tem este lado positivo: nos ensina que experimentação na política não dá bons frutos. A política é para líderes, para pessoas forjadas nesta prática da negociação, da antecipação que cola, ainda, corações e mentes. Competências que não encontramos em empresas.

IHU On-Line - Desde o ano passado aumentou o número de categorias profissionais fazendo greves sem o consentimento dos sindicatos, ou seja, literalmente passando por cima dessa organização. O que isso significa e como senhor avalia tais greves? Trata-se de manifestações pontuais por conta da atual conjuntura ou há sinais de mudanças em relação a algumas categorias, a exemplo da greve dos garis, no Rio de Janeiro, e a greve dos motoristas de ônibus em vários estados, especialmente em São Paulo?

Rudá Ricci - Acho que é uma conjunção de fatores. Sem dúvida, o cenário de euforia de 2010 está se diluindo a cada mês e isto cria uma situação de insegurança em relação ao futuro. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - DIEESE revela que as greves aumentam ano a ano, mas os resultados são gradativamente menos auspiciosos.

Também é fato que a aristocratização de muitos dirigentes sindicais, que adotam uma carreira política cujo início é o sindicato, impacta fortemente a base sindical, aumentando o ressentimento. Esta fissura abre a temporada de disputa entre correntes sindicais. A CUT está acuada porque adotou certo padrão governista, mais focado nos acordos de cúpula com o Estado e menos afeto ao conflito trabalhista. A Copa da FIFA apenas cria o ambiente ou oportunidade para que as diferenças e insatisfações se apresentem publicamente. A situação é ainda pior nos setores de serviços públicos, onde o governismo gera insatisfação ainda maior na base sindical.

“Presenciamos a pior geração de gestores públicos da nossa república”

IHU On-Line - A que atribui essa distância dos sindicatos de suas bases?

Rudá Ricci - Ao que Philippe Schmitter denomina de neocorporativismo, ou seja, quando as estruturas de representação corporativa se inserem na lógica de Estado, participando de fóruns e arenas de elaboração e tomada de decisão governamental. Já vimos o resultado em vários países europeus, como a Itália. Lá, as comissões de fábrica foram se autonomizando em relação às centrais e sindicatos. O fenômeno do neocorporativismo partidariza o sindicalismo e também o corrompe, tornando o dirigente sindical não um representante, mas um segmento social profissionalizado.

IHU On-Line - Quais são as razões das greves recentes e o que elas sinalizam em relação ao trabalho no Brasil, especialmente após um período em que houve aumento gradativo do salário mínimo e, por outro lado, um acesso maior à universidade?

Rudá Ricci - A pergunta parece sugerir o que alguns autores denominam de demandas pós-materialistas, tal como sugere Ronald Inglehart. Não me parece que tenhamos chegado a este ponto. Acredito, antes, que se trata de um clima de insegurança em relação ao futuro (não necessariamente ao presente). Como se a base sindical percebesse que há sinais de insustentabilidade dos ganhos dos últimos anos: inflação em alta, endividamento perturbador das famílias de renda baixa e média, diminuição da oferta de crédito, aumento da taxa de juros. Lembremos que em maio de 2013 um simples boato do fim do Bolsa Família deu o alerta para 920 mil beneficiários sacarem de suas contas na CEF. Justamente o público mais cativo do governo federal.

IHU On-Line - Como avalia a adesão da Central Única dos Trabalhadores – CUT à defesa da Copa do Mundo e declarações de que os protestos contra a Copa são eleitoreiros?

Rudá Ricci - Uma partidarização excessiva, que supera o limite da prudência num momento de aumento da disputa sindical na base. Reforça, ainda, a imagem governista, que a aproxima do sindicalismo peronista. Um alto risco que coloca por terra a origem da CUT, que nasceu valorizando as oposições sindicais como representantes legítimos da base, defendendo o fim do imposto sindical e a necessária organização no local do trabalho.

Lembremos, inclusive, que a CUT chegou a criar uma estrutura paralela à estrutura oficial do sindicalismo brasileiro, com os departamentos de categoria. O caso mais evidente foi o do Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais - DNTR/CUT que tentou criar um comando paralelo à CONTAG até meados dos anos 1990.

IHU On-Line - A CSP Conlutas, hegemonizada pelo PSTU e também com participação do PSOL vem crescendo? Ela pode ameaçar a hegemonia da CUT junto aos servidores?

Rudá Ricci - Cresce lentamente. Mas em alguns setores em que o conflito com o sindicalismo governista é mais agudo, em especial nas categorias do serviço público e em alguns conflitos da área da construção civil. É importante notar que a elite do movimento sindical vem se alterando. Os bancários perderam seu posto de liderança, que desde os anos 1990 esteve emparelhado com os metalúrgicos. Categorias do serviço público aumentam seu poder no mundo sindical. O caso ilustrativo é o da CUT Minas Gerais, onde a presidente é a coordenadora do sindicato estadual de professores, SindUTE. Não é um caso isolado. No campo do sindicalismo privado, cresce o poder dos comerciários. Perceba que há relação direta com o novo Brasil da agenda lulista-rooseveltiana: maior poder orientador do Estado e aumento do consumo popular.

IHU On-Line - Pode-se esperar uma nova etapa para o movimento sindical brasileiro? Em que sentido? Ou os sindicatos já fazem parte do passado?

Rudá Ricci - Ainda é muito cedo para vislumbrar impactos reais, tanto no mundo sindical como no mundo político. Acredito que a tendência será a luta pela recuperação da liderança perdida. E isto significará radicalização do discurso sindical, como medida de antecipação às oposições. Não há dúvidas de que as greves deste mês criaram um grande alerta nas cúpulas sindicais do país. Na mesma medida em que as manifestações de junho impactaram os partidos políticos e governantes. Dois fenômenos de quebra de legitimidade das representações formais. Mas que não apontam alternativas.

IHU On-Line - Recentemente o senhor declarou que estamos a um ponto de ter manifestação dos beneficiários do Bolsa Família. O que isso significa, considerando que o programa é bastante popular entre os que recebem?

Rudá Ricci - Esta declaração teve relação com duas percepções. A primeira, em função dos "novos brasileiros" estarem se projetando publicamente. Os brasileiros que se forjaram como novas comunidades a partir das mudanças sociais que ocorreram nos últimos dez anos, fruto das políticas lulistas. Os "meninos de junho" revelaram uma nova juventude, com valores realmente peculiares e novos. Os meninos do rolezinho revelaram o consumismo dos filhos dos emergentes, que alguns autores apressadamente denominaram de nova classe média. Agora, vemos se projetar uma nova base sindical. Todos se contrapondo à lógica das elites ou procurando ocupar um espaço que antes só era definido pelas elites (econômicas, políticas ou sindicais). Dos "novos brasileiros", só os beneficiários do Programa Bolsa Família - PBF não se apresentaram coletivamente.

“A CUT está acuada porque adotou certo padrão governista, mais focado nos acordos de cúpula com o Estado e menos afeto ao conflito trabalhista”

Mas a segunda percepção nasceu da leitura do livro de Walquiria Rego, "Vozes do Bolsa Família", um trabalho muito importante desta professora da Unicamp. O livro revela que as mulheres beneficiárias deste programa não são, nem de longe, clientela do Estado, como se lê na grande imprensa. Inclusive, afirmam que se trata de um direito e criticam o valor que recebem. Fico imaginando se não poderia ocorrer, numa versão mais politizada do que ocorreu quando do boato do fim do Bolsa Família em maio do ano passado, de essas beneficiárias articularem uma demanda coletiva por benefícios mais amplos, por uma rede de promoção que vá além da proteção à sua reprodução social. Porque o PBF não promove, apenas garante a reprodução daquele segmento como tal. Trata-se, portanto, de uma política liberal que, num país de cultura política conservadora como o nosso, é taxada de esquerda. Era uma mera especulação de minha parte.

IHU On-Line - Muitas das análises feitas ao governo Lula e Dilma nesses 12 anos destacam medidas importantes, como o aumento na distribuição de renda, aumento do salário mínimo, acesso a crédito, programas sociais de ingresso à universidade, etc. Diante desse quadro, como explicar as manifestações? Concorda com as análises de que há um mal-estar na sociedade? Esse mal-estar está associado a quê? Trata-se apenas a conjuntura da Copa?

Rudá Ricci - O problema do lulismo é que ele avança em termos sociais e até econômicos, mas retrocede na dimensão política. O lulismo parece refratário à gestão participativa e a qualquer mecanismo de cogestão ou educação para a cidadania ativa. Veja que não houve nenhuma novidade em termos curriculares, tanto no ensino básico quanto no universitário. O Programa Mais Médicos existe porque o projeto curricular para a medicina brasileira é conservador e elitista. Ouvi de um amigo médico que o padrão brasileiro é o norte-americano, em que embaixo do jaleco se usa terno e gravata. O lulismo não confrontou com a cultura fundamentalista e conservadora do país porque necessitava criar um ambiente de investimentos a partir do pacto desenvolvimentista de inspiração rooseveltiana. O problema é que este modelo foi implantado numa conjuntura de crise econômica internacional. Em suma, Lula implantou um fordismo tardio ou modelo rooseveltiano fora do seu tempo. As oscilações econômicas são inevitáveis. E somente um líder carismático pode domar o mar revolto. O que Lula fez magistralmente, quando, num gesto de ousadia, disse que a crise de 2008 era uma mera marolinha. Os brasileiros ouviram e confiaram, gastando naquele final de ano o que a prudência diria para não fazerem. E o país conseguiu tempo para fazer ajustes que acabaram por enfrentar o impacto da crise internacional.

Mas, desde 2011, a crise externa se agravou e não temos mais uma liderança carismática liderando o país. Enfim, o problema do lulismo é o campo político. Centrado na tutela estatal, dependemos do sinal do líder a cada percalço. E a população beneficiada por políticas de transferência de renda e incentivo ao consumo popular aguarda o sinal seguro do governo para lhe garantir estabilidade e até mesmo ascensão social constante. Quando isto não ocorre, o medo de voltar à pobreza se instala. E não há como se manifestar porque não foram criados mecanismos de organização ou canais institucionais de participação popular. Só resta uma saída: as ruas.

IHU On-Line - O que, especificamente, os protestos contra a Copa significam?

Rudá Ricci - Um constrangimento aos governos. Nada mais que isso. E os governos parecem que morderam a isca. Estão se armando desproporcionalmente. O que infla os manifestantes mais engajados. Aliás, algo que ocorreu na juventude da Presidente da República, já que o AI-5 não a fez retornar à sua casa. Muito pelo contrário. Temo que um governo de origem de esquerda acabe ensinando como a direita brasileira deve governar na democracia.

IHU On-Line - O que é possível vislumbrar para o mês da Copa? Mais protestos?

Rudá Ricci - Sim. Protestos diários, em cada localidade onde ocorrer um jogo da Copa, com poucos manifestantes e alta intensidade. Se os manifestantes adotarem o padrão dos grandes eventos internacionais que citei no início desta entrevista, cercarão hotéis onde as delegações e jornalistas internacionais estarão hospedados, imediações dos aeroportos e estádios. Mas não deverão envolver muita gente, já que estamos no país do futebol.

Contudo, se a seleção brasileira fracassar precocemente, a humilhação nacional poderá ter um lugar para se manifestar, já que os protestos estarão lá, todos os dias. Se isto ocorrer, poderemos ver novamente as multidões tomando as ruas das capitais brasileiras.

IHU On-Line - E em relação às eleições, que resultados e atitudes são possíveis vislumbrar tendo em vista esse cenário de protestos? Algum dos candidatos saberá dialogar com o público que está nas ruas?

Rudá Ricci - Se a seleção brasileira vencer o torneio da FIFA, o evento agraciará a reeleição de Dilma. Não haverá muito clima para críticas ácidas num momento em que o país estará de bem consigo mesmo. Estaremos nos redimindo de 1950, inclusive. Mas, se a seleção fracassar, a humilhação será quase insuportável, abrindo caminho para o ressentimento que já citei anteriormente. O problema é mais grave porque nenhum dos candidatos de outubro possui histórico que lhes dê condições para explorar esta insatisfação possível. Qualquer um parecerá oportunista. Mas dois personagens da política possuem tal histórico e legitimidade. Justamente os dois que não serão titulares do jogo, o que demonstra o quanto nosso sistema político-partidário está desorientado: Lula e Marina, os dois Silva.

(Por Patricia Fachin)

Fotos: (1)www.jornaldaparaiba.com.br (2)www.rodrigovianna.com.br

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O movimento sindical e os partidos. Longe das frustrações diárias, desafiados pelo 'enxameamento'. Entrevista especial com Rudá Ricci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU